CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL
JULIANE KOKOTT
de 26 de Maio de 2005 1(1)
Processo C‑94/03
Comissão das Comunidades Europeias
contra
Conselho da União Europeia
«Produtos químicos e pesticidas perigosos – Convenção de Roterdão – Escolha da base jurídica – Política comercial comum, política ambiental»
I – Introdução
1. No presente processo, a Comissão das Comunidades Europeias está em litígio com o Conselho da União Europeia relativamente à escolha da base jurídica correcta para a celebração de um acordo internacional, a Convenção de Roterdão, relativa ao Procedimento de Prévia Informação e Consentimento para determinados Produtos Químicos e Pesticidas Perigosos no Comércio Internacional (2) (a seguir «Convenção»).
2. Enquanto a Comissão defende que a política comercial comum (artigo 133.° CE) deve ser a base jurídica para a Comunidade Europeia aprovar esta convenção, o Conselho defende a celebração da Convenção que acabou por ocorrer com base na política ambiental (artigo 175.°, n.° 1, CE) e tem, para esse efeito, o apoio do Parlamento Europeu e de cinco Estados‑Membros.
3. O processo C‑178/03 (3), que decorre em paralelo, tem por objecto a escolha da base jurídica para o Regulamento (CE) n.° 304/2003 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de Janeiro de 2003, relativo à exportação e importação de produtos químicos perigosos (4). Este regulamento destina‑se sobretudo a aplicar a Convenção na ordem jurídica comunitária (5).
II – A Convenção
A – Excerto dos considerandos
4. Do preâmbulo da Convenção são especialmente importantes para o presente litígio as seguintes passagens (primeiro, segundo, terceiro, sexto, sétimo, oitavo e décimo primeiro considerandos):
«Conscientes dos impactos nocivos para a saúde humana e para o ambiente de certos produtos químicos e pesticidas perigosos no comércio internacional,
Recordando as disposições pertinentes da Declaração do Rio sobre Ambiente e Desenvolvimento e o capítulo 19 da Agenda 21 sobre‘Gestão ambientalmente racional de produtos químicos tóxicos, incluindo a prevenção do tráfego internacional ilegal de produtos tóxicos e perigosos’,
Atentas ao trabalho desenvolvido pelo programa das Nações Unidas para o ambiente (PNUA) e pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), relativamente ao funcionamento do procedimento voluntário de Prévia Informação e Consentimento, conforme estabelecido pelas Linhas de Orientação de Londres Alteradas do PNUA sobre o Intercâmbio de Informação relativa a Produtos Químicos no Comércio Internacional (a seguir designadas por‘Linhas de Orientação de Londres Alteradas’) e do Código Internacional de Conduta da FAO sobre distribuição e utilização de pesticidas (a seguir designado por‘Código Internacional de Conduta’),
[...]
Reconhecendo que, em todos os países, deverão ser promovidas práticas de boa gestão de produtos químicos, tomando em consideração, inter alia, as regras de conduta voluntárias estabelecidas no Código Internacional de Conduta e no Código de Ética do PNUA sobre Comércio Internacional de Produtos Químicos,
Desejando assegurar que os produtos químicos perigosos que sejam exportados do seu território sejam embalados e rotulados de uma forma que proteja adequadamente a saúde humana e o ambiente, consistente com os princípios constantes das Linhas de Orientação de Londres Alteradas e do Código Internacional de Conduta,
Reconhecendo que as políticas comerciais e ambientais devem apoiar‑se mutuamente com o objectivo de atingir o desenvolvimento sustentável,
[...]
Determinadas a proteger a saúde humana, incluindo a saúde dos consumidores e trabalhadores, e o ambiente contra potenciais impactos nocivos provenientes de certos produtos químicos perigosos e pesticidas no comércio internacional».
5. Além disso, cabe fazer igualmente referência ao terceiro considerando da Decisão 2003/106/CE do Conselho, de 19 de Dezembro de 2002, que aprova, em nome da Comunidade Europeia, a Convenção de Roterdão relativa ao Procedimento de Prévia Informação e Consentimento para determinados Produtos Químicos e Pesticidas Perigosos no Comércio Internacional (6) (a seguir também «decisão impugnada»). Este tem o seguinte teor:
«A convenção constitui um passo importante na melhoria da regulamentação internacional sobre comércio de determinados produtos químicos e pesticidas perigosos, com vista a proteger a saúde humana e o ambiente de danos potenciais e a contribuir para a utilização correcta dessas substâncias do ponto de vista ambiental».
B – Resumo das disposições pertinentes da Convenção
6. As disposições pertinentes da Convenção resumem‑se – simplificadamente – do seguinte modo:
7. O objectivo da Convenção é, nos termos do seu artigo 1.°, «promover a responsabilidade partilhada e os esforços de cooperação entre as partes no comércio internacional de determinados produtos químicos perigosos, por forma a proteger a saúde humana e o ambiente dos perigos potenciais e a contribuir para a sua utilização ambientalmente racional, facilitando o intercâmbio de informação sobre as suas características, promovendo um processo nacional de tomada de decisão sobre as suas importações e exportações e divulgando estas decisões pelas partes» (7).
8. Para o efeito, a Convenção submete o comércio internacional de determinados produtos químicos, classificados unanimemente pelas partes como perigosos, ao chamado procedimento de Prior Informed Consent (procedimento de prévia informação e consentimento, a seguir «procedimento PIC»). A lista dos produtos químicos em causa encontra‑se anexa à Convenção como Anexo III (8). Este procedimento PIC encontra‑se melhor descrito nos artigos 10.° e 11.° da Convenção. No essencial, prevê uma troca de informações entre as partes na Convenção sobre as práticas de importação respectivas para os produtos químicos em causa (9). Além disso, cada parte obriga‑se a transmitir as informações assim obtidas relativamente às práticas de importação da outra parte aos operadores económicos no respectivo território e a assegurar que tais práticas são observadas.
O artigo 10.°, n.° 9, da Convenção contém a seguinte regra a este respeito:
«Uma parte que [...] decida tomar a decisão de não consentir a importação de um produto químico ou de consentir a sua importação apenas sob certas condições específicas, compromete‑se, caso ainda não o tenha feito, a proibir ou sujeitar simultaneamente às mesmas condições, as seguintes situações:
a) A importação do produto químico proveniente de qualquer fonte;
b) A produção nacional do produto químico para uso interno.»
9. Para outros produtos químicos, ou seja, para os que nos termos do Anexo III não estão sujeitos ao procedimento PIC, a Convenção prevê, no seu artigo 5.°, n.os 1 a 4, um processo de informação recíproca das partes sobre as proibições nacionais e as restrições severas para produtos químicos (10). O artigo 12.° da Convenção obriga cada parte a fornecer uma notificação de exportação ao país de destino (a chamada parte importadora), quando um produto químico proibido ou severamente restringido por uma parte é exportado do seu território (notificação de exportação).
10. O artigo 13.° da Convenção determina, no essencial, que a exportação de produtos químicos está sujeita a requisitos de rotulagem que assegurem a difusão adequada de informação relativa aos riscos e/ou perigos para a saúde humana ou para o ambiente (11).
11. O artigo 14.° da Convenção exige às partes o intercâmbio de informações sobre os produtos químicos no âmbito de aplicação da Convenção, enquanto o artigo 11.°, n.° 1, alínea c) e o artigo 16.° da Convenção exortam as partes a prestar assistência técnica, em particular a países em desenvolvimento e a países com economias em transição; o objectivo desta assistência técnica é o desenvolvimento das infra‑estruturas e das capacidades necessárias para o manuseamento dos produtos químicos em todo o seu ciclo de vida.
12. Nos termos do artigo 15.°, n.° 2, cada parte compromete‑se a assegurar, na medida do possível, que o público tenha acesso adequado à informação sobre o manuseamento de produtos químicos, sobre a gestão de acidentes e sobre alternativas mais seguras para a saúde humana e para o ambiente, aos produtos químicos incluídos no anexo III, classificados como particularmente perigosos e sujeitos ao procedimento PIC.
13. Segundo o artigo 15.°, n.° 4, a Convenção não afecta o direito de as partes tomarem acções mais rigorosas na protecção da saúde humana ou do ambiente, desde que tais acções sejam compatíveis com as disposições da convenção e conformes ao direito internacional.
III – Antecedentes, pedidos das partes e tramitação processual
A – Antecedentes do litígio
14. A Convenção foi adoptada em Roterdão em 10 de Setembro de 1998 e assinada em nome da Comunidade em 11 de Setembro de 1998.
15. Em 24 de Janeiro de 2002, a Comissão propôs ao Conselho aprovar a Convenção, tendo baseado a sua proposta no artigo 133.°, em conjugação com o artigo 300.°, n.° 2, primeiro parágrafo, primeiro período, e n.° 3 (12).
16. Em 19 de Dezembro de 2002, o Conselho aprovou a Convenção em nome da Comunidade Europeia. Contrariamente ao proposto pela Comissão, o Conselho deliberou, no entanto, nessa ocasião, por unanimidade e depois de ouvido o Parlamento Europeu, em aplicação do artigo 300.°, n.° 3, CE, substituir o artigo 133.° CE pelo artigo 175.°, n.° 1, CE, como base jurídica da sua aprovação.
17. Conforme previsto no artigo 25.°, n.° 3, da Convenção, a Comunidade Europeia, juntamente com o seu instrumento de aprovação, apresentou uma declaração sobre o âmbito das suas competências no que respeita às matérias reguladas pela Convenção (13). Nessa declaração também se faz referência ao artigo 175.°, n.° 1, CE e não ao artigo 133.° CE.
18. A par da Comunidade Europeia, a maioria dos Estados‑Membros da União Europeia também são partes na Convenção (14). A questão de saber se, nos termos da «jurisprudência AETR» (15), a Comunidade naquele momento já não teria possivelmente competência exclusiva para a celebração da Convenção (16), vai além do objecto do recurso da Comissão, não sendo portanto necessário apreciá‑la no presente processo.
B – Pedidos das partes e tramitação processual no Tribunal de Justiça
19. A Comissão, com o recurso de anulação que interpôs em 27 de Fevereiro de 2003, pede, nos termos do artigo 230.° CE, que o Tribunal de Justiça se digne
– anular a Decisão 2003/106/CE do Conselho, de 19 de Dezembro de 2002 que aprova, em nome da Comunidade Europeia, a Convenção de Roterdão relativa ao Procedimento de Prévia Informação e Consentimento para determinados Produtos Químicos e Pesticidas Perigosos no Comércio Internacional,
– condenar o Conselho nas despesas.
20. O Conselho, por seu turno, pede que o Tribunal de Justiça se digne
– negar provimento ao recurso,
– condenar a recorrente no pagamento das despesas.
21. Por despacho do Presidente do Tribunal de Justiça de 16 de Julho de 2003, o Parlamento Europeu, a República Francesa, o Reino dos Países Baixos, a República da Áustria, a República da Finlândia e o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte foram admitidos como intervenientes em apoio do Conselho.
22. Todas as partes apresentaram alegações escritas no processo, a Comissão, o Parlamento, o Conselho e o Reino Unido apresentaram igualmente alegações na audiência de 7 de Abril de 2005, realizada em conjunto com o processo C‑178/03.
IV – Apreciação
23. No seu recurso, a Comissão invoca um único fundamento de anulação, ou seja, a escolha da base jurídica errada para a aprovação da convenção. A Comissão invoca uma violação do Tratado CE, na acepção do artigo 230.°, n.° 2, CE.
24. A escolha da base jurídica adequada reveste grande importância prática e institucional, inclusivamente de natureza constitucional (17). Dela depende, evidentemente, não apenas o processo legislativo aplicável (direitos de participação do Parlamento, unanimidade ou maioria qualificada no Conselho) (18), mas também saber se a competência legislativa da Comunidade é exclusiva ou deve ser partilhada com os Estados‑Membros (19).
A – Critérios para a escolha da base jurídica
25. No que respeita aos critérios abstractos para a escolha da base jurídica correcta para a aprovação da Convenção, as partes estão, no essencial, de acordo.
26. Segundo jurisprudência assente, a escolha da base jurídica de um acto deve assentar em elementos objectivos susceptíveis de fiscalização jurisdicional. Entre esses elementos figuram, designadamente, a finalidade e o conteúdo do acto (20).
27. Se a análise de um acto comunitário demonstrar que ele prossegue uma dupla finalidade ou que tem uma dupla componente e se uma destas for identificável como principal ou preponderante, enquanto a outra é apenas acessória, o acto deve ter por base um único fundamento jurídico, ou seja, o que for exigido pela finalidade ou componente principal ou preponderante (21).
28. Neste sentido, a aprovação de um acto jurídico comunitário pode ser baseada na política comercial comum (artigo 133.° CE), mesmo nos casos em que, a par da finalidade principal de política comercial, também prossegue outros objectivos, como objectivos de política de desenvolvimento (22), objectivos de política externa (23) e de segurança, interesses de protecção ambiental (24) ou de protecção da saúde (25). Isto é tanto mais válido quanto as disposições de política comercial comum têm por base uma concepção aberta e dinâmica que não se limita, de modo algum, apenas aos aspectos tradicionais do comércio externo (26). No que respeita em especial à protecção do ambiente e à protecção da saúde, os artigos 6.° CE e 152.°, n.° 1, primeiro parágrafo, CE, demonstram que neles estão em causa acções transversais que devem ser tomadas em consideração em todas as restantes políticas da Comunidade e, como tal, também na política comercial comum.
29. Pelo contrário, os actos jurídicos comunitários que prosseguem principalmente objectivos de política ambiental também podem, ao mesmo tempo, produzir efeitos sobre o comércio. Desde que seja dominante a sua orientação de política ambiental, a aprovação de tais convenções deve basear‑se no artigo 175.°, n.° 1, CE e não no artigo 133.° CE (27).
30. O Tribunal de Justiça estabeleceu o critério do efeito directo e imediato para fazer a distinção entre política comercial comum (artigo 133.° CE) e política ambiental (artigo 175.° CE), como possíveis bases jurídicas de convenções internacionais (28). Deste modo, se uma convenção internacional com finalidades de política ambiental não produzir efeitos directos e imediatos sobre o comércio, deve basear‑se no artigo 175.° CE; caso contrário, deve basear‑se no artigo 133.° CE (29). Para tanto, para que se possa considerar que uma convenção internacional se enquadra no âmbito de aplicação do artigo 133.° CE, os efeitos directos e imediatos sobre o comércio não têm necessariamente de consistir em promover ou facilitar as trocas comerciais; basta que essa convenção seja «um instrumento destinado essencialmente […] a promover, a facilitar ou a regular as trocas comerciais» (30).
31. Neste contexto, importa antes determinar qual é, no caso presente, o ponto fulcral da Convenção, tendo em conta os seus conteúdo, finalidade e contexto e se os eventuais efeitos da Convenção sobre o comércio têm natureza directa e imediata (a este respeito, v. infra, parte B). Em complemento, serão também discutidas quais seriam as consequências que para a validade da aprovação da Convenção se se concluísse que esta deveria ter não uma única duas bases jurídicas (a este respeito, infra, parte C).
B – Conteúdo, objectivos e contexto da Convenção
32. As partes discutem em que âmbito político a Convenção deve ser classificada, tendo em conta o seu conteúdo, os seus objectivos e o seu contexto. Enquanto a Comissão defende que a Convenção se enquadra, atendendo ao seu ponto fulcral, no âmbito de aplicação da política comercial comum, o Conselho, apoiado pelos intervenientes, considera tratar‑se de um instrumento de natureza predominantemente de política ambiental. Para o efeito, as partes invocam no presente processo, essencialmente, os mesmos pontos de vista que no processo C‑178/03, que corre os seus termos em paralelo.
33. Adianto desde já que a tese não Comissão não me convence.
34. É certo que o teor da Convenção não está isento de referências à política comercial. Tanto o título como o preâmbulo (31), como também alguns artigos da Convenção falam de comércio internacional, de política comercial, bem como de importação e exportação. Contudo, a redacção da Convenção apresenta referências igualmente fortes à política ambiental. Assim, o preâmbulo (32) e, em particular, o artigo 1.° tratam da protecção do ambiente, do desenvolvimento sustentável, da promoção de práticas de boa gestão de produtos químicos e da utilização ambientalmente racional destes produtos químicos; no artigo 16.° fala‑se de administração dos produtos químicos durante o seu ciclo de vida.
35. Do ponto de vista do conteúdo, deve, de facto, concordar‑se com a Comissão e com o Conselho quando afirmam que o procedimento PIC – melhor descrito nos artigos 10.° e 11.° – constitui o ponto fulcral da Convenção. No entanto, contrariamente ao entendimento da Comissão, um procedimento PIC não é, de modo algum, em primeira linha um instrumento de política comercial, mas, como o Tribunal de Justiça já declarou no seu parecer 2/00, um instrumento característico da política ambiental (33). Diversamente do que é afirmado pela Comissão, a apreciação feita no parecer 2/00 relativamente ao procedimento PIC no Protocolo de Cartagena pode ser transposta para o procedimento PIC do caso em apreço. De facto, também no que respeita aos produtos químicos perigosos relevantes para o presente caso o procedimento PIC se destina prioritariamente à «troca de informações sobre os benefícios e sobre os perigos relacionados com a utilização de produtos químicos e têm por finalidade promover uma gestão adequada dos produtos químicos mediante a troca de informações científicas, técnicas, económicas e jurídicas» (34).
36. Assim, o comércio internacional de determinados produtos químicos (35) unanimemente classificados como perigosos pelas partes é somente o ponto de contacto externo do procedimento PIC. De facto, a finalidade deste procedimento não é, em primeira linha, promover, facilitar ou até simplesmente regulamentar as trocas comerciais de produtos químicos perigosos (36), mas apenas a prestação recíproca de informações às partes sobre as respectivas práticas de importação (artigo 10.°, n.os 7 e 10, da Convenção (37)), conjugada com a transmissão das informações obtidas daquele modo aos operadores económicos afectados [artigo 11.°, n.° 1, alínea a), da Convenção].
37. Com o procedimento PIC e com as notificações de exportação de determinados produtos químicos (artigo 12.° da Convenção), pretende‑se sobretudo evitar que uma parte – em particular um país em desenvolvimento – se veja confrontada com a importação de produtos químicos perigosos sem ter antes tido a oportunidade de adoptar as precauções necessárias para a protecção do ambiente e da saúde humana (38).
38. Ainda que indirectamente, o procedimento PIC pode contribuir para uma maior transparência das disposições aplicáveis nos diversos países, através da já referida informação aos operadores económicos interessados [artigo 11.°, n.° 1, alínea a), da Convenção] e assim facilitar, eventualmente, a comercialização de produtos químicos perigosos. Por outro lado, a Convenção também pode agravar os custos de comercialização para o exportador, por exemplo, quando lhe é exigido o preenchimento das formalidades necessárias para uma notificação de exportação (artigo 12.° da Convenção) (39).
39. Abstraindo destes efeitos indirectos sobre o comércio, a Convenção não tem, no entanto, por objecto, na sua essência, regras de política comercial. Em particular, a Convenção não prevê regras comuns das partes para a importação e a exportação de produtos químicos perigosos. Não contém disposições sobre a questão de saber se e em que condições se deve ou pode permitir ou recusar a importação de produtos químicos perigosos.Tão‑pouco se estabelecem regras sobre o reconhecimento recíproco de produtos. Cada parte é totalmente livre de autorizar a importação de um produto químico perigoso, de não autorizar ou de autorizar apenas quando sujeita a condições específicas [artigo 10.°, n.os 1, 2, 4, alínea a) e 6 da Convenção]. As outras partes prestam‑lhe assistência, apenas ao contribuir («garantir») para que os exportadores cumpram o direito em vigor no respectivo país de destino [artigo 11.°, n.° 1, alínea b), da Convenção]. De resto, a Convenção, enquanto tal, apenas associa à prática de importação de cada parte uma consequência acessória com efeitos directos sobre o comércio, na medida em que estabelece uma proibição de discriminação (40) em razão da origem dos produtos químicos perigosos, e impõe uma obrigação de tratamento igual ao que é conferido aos produtos químicos perigosos nacionais (41) (artigo 10.°, n.° 9, da Convenção).
40. Se também forem tomadas em conta na apreciação as restantes disposições da Convenção, confirma‑se a impressão de que se trata, no essencial, de um instrumento de política em matéria de ambiente e não de política comercial. Tanto a troca de informações entre as partes (artigo 14.° da Convenção), como a assistência técnica recíproca [artigo 11.°, n.° 1, alínea c) e artigo 16.° da Convenção] e ainda o acesso do público à informação (artigos 15.°, n.° 2, da Convenção) não se destinam a promover, a facilitar ou até apenas a regular as trocas comerciais de produtos químicos perigosos. Conforme já resulta do seu teor, estas disposições destinam‑se antes, em primeira linha, à protecção do ambiente, além da protecção da saúde humana.
41. De resto, diversamente do que aparentam à primeira vista, as disposições do artigo 13.° da Convenção, relativas à rotulagem e às informações que acompanham os produtos químicos, também não constituem disposições de política comercial, mas de política ambiental. De facto, estas não têm como prioridade a equiparação ou o reconhecimento mútuo das embalagens de produtos e das informações que as acompanham, que são comuns, a fim de garantir a comercialização dos produtos químicos ou de melhorar o seu acesso ao mercado (42). Pretende‑se antes satisfazer apenas a necessidade de informação do público sobre os riscos e/ou os perigos para a saúde humana e para o ambiente resultantes do manuseamento dos produtos químicos em causa. Em consequência, a Convenção estabelece apenas o objectivo de política ambiental de identificar os produtos químicos e de fornecer as informações que os devem acompanhar, enquanto a determinação dos requisitos concretos de conteúdo destas embalagens e das informações que as acompanham é deixada ao direito nacional das partes.
42. Quanto aos objectivos da Convenção, e nos termos do seu artigo 1.°, estão em primeiro plano preocupações de política ambiental, como promover a responsabilidade partilhada, proteger a saúde humana e o ambiente contra os perigos potenciais e facilitar o intercâmbio de informação sobre as características dos produtos químicos perigosos, bem como a sua utilização ambientalmente racional. A grande importância que é dada às preocupações de política ambiental também é confirmada pelo preâmbulo da Convenção que refere, logo no seu primeiro considerando, os impactos nocivos para a saúde humana e para o ambiente de certos produtos químicos e pesticidas perigosos e, nos sétimo, nono e décimo primeiro considerandos, aborda, no essencial, questões relativas à protecção do ambiente. No mesmo sentido apontam os sexto e oitavo considerandos, relativos à promoção de práticas de boa gestão de produtos químicos e ao desenvolvimento sustentável.
43. De facto, as disposições relativas aos objectivos também fazem referência ao comércio internacional, como acontece, em particular, com os segundo, oitavo e nono considerandos e com o texto do artigo 1.° da Convenção. No entanto, também neste caso o comércio se destina a servir de ponto de conexão para os verdadeiros objectivos de política ambiental da Convenção, não lhe sendo atribuída nenhuma importância significativa autónoma no âmbito destes objectivos. Trata‑se de uma convenção ambiental com referências de política comercial, não de uma Convenção de política comercial com referências ambientais (43).
44. Impõe‑se a mesma conclusão se se considerar o contexto no qual a Convenção se insere. A Convenção não foi celebrada no quadro da Organização Mundial do Comércio (OMC), mas resulta do trabalho desenvolvido pelo Programa das Nações Unidas para o Ambiente (PNUA) e pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) (44). Estas duas instituições deram o impulso para as negociações da Convenção e assumem presentemente, nos termos do artigo 19.°, n.° 3, as funções de secretariado das partes. Além disso, na própria Convenção também se considera a sua adopção como o resultado da Conferência das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento (45), que teve lugar em 1992 no Rio de Janeiro (Brasil); a Convenção refere‑se expressamente à Declaração do Rio sobre Ambiente e Desenvolvimento e ao capítulo 19 da «Agenda 21» (46) (47). Mais recentemente, é ainda de salientar o plano de acção que resultou da cimeira mundial sobre desenvolvimento sustentável em Joanesburgo (África do Sul), e que apela à rápida ratificação e aplicação da Convenção de Roterdão (48). A nível da Comunidade, o sexto programa comunitário de acção em matéria de ambiente também é importante (49). Este programa que, por seu turno, se baseou no artigo 175.° CE, tem tematicamente vários pontos de contacto com a Convenção (50) e inclui a rápida ratificação da Convenção entre as acções prioritárias da Comunidade em matéria de política ambiental (51).
45. Em resumo: se se tomarem em consideração o conteúdo e os objectivos da Convenção, bem como o seu contexto, o seu ponto fulcral não se encontra no sector da política comercial comum mas no sector da política ambiental. Os efeitos – perfeitamente possíveis – da Convenção sobre o comércio internacional de produtos químicos perigosos têm natureza indirecta e não directa (52). Nesta acepção, partilho do entendimento do Conselho e dos intervenientes em apoio desta de que a Convenção, no que respeita à base jurídica para a sua aprovação, tem mais semelhanças com o Protocolo de Cartagena sobre segurança biológica (53) do que com o Acordo Energy Star (54). Foi, portanto, correcto, basear a aprovação da Convenção no artigo 175.°, n.° 1, CE e não no artigo 133.° CE (55).
46. A Comissão alega ainda que são de recear graves prejuízos para o mercado interno e distorções do comércio caso se aceite o artigo 175.°, n.° 1, CE e não o artigo 133.° CE como base jurídica. Isto porque, desse modo, os Estados‑Membros, em virtude da falta de competência exclusiva da Comunidade, poderiam adoptar unilateralmente disposições mais exigentes relativas à importação e à exportação de produtos químicos perigosos e também contornar as disposições existentes ao nível comunitário relativamente à classificação, à embalagem e à rotulagem de substâncias perigosas.
47. A este respeito, importa assinalar, em primeiro lugar, que no domínio da política ambiental, de acordo com a «jurisprudência AETR», pode sempre existir uma competência externa exclusiva da Comunidade (56). No entanto, pode, em última análise, colocar‑se a questão de saber se foi isto que aconteceu no que respeita à adopção da Convenção aqui em causa. Na verdade, mesmo no âmbito das competências partilhadas, os Estados‑Membros, no exercício das competências que conservam, devem respeitar o direito comunitário aplicável. Não podem, assim, contrariar o direito derivado em vigor nem o direito primário nem, em particular, as liberdades fundamentais do Tratado CE e o artigo 9.°, n.os 4 a 10, CE. Tal resulta do princípio do primado do direito comunitário. A objecção da Comissão é, em consequência, infundada.
48. Em suma, concluo que o recurso da Comissão é infundado e que, em consequência, lhe deve ser negado provimento.
C – Quanto à questão da dupla base jurídica
49. Esta conclusão em nada seria alterada se se admitisse que a Convenção não deveria ter‑se baseado numa única, mas sim numa dupla base jurídica, ou seja, simultaneamente, no artigo 175.°, n.° 1, CE e no artigo 133.° CE.
50. De facto, é possível assentar um acto jurídico em diferentes bases jurídicas pertinentes, nomeadamente se, a título excepcional, se provar que o acto prossegue simultaneamente vários objectivos, que se encontram ligados de forma indissociável, sem que um seja subordinado e indirecto em relação ao outro (57).
51. No presente caso, a utilização de uma dupla base jurídica poderia ser tomada em consideração se se admitisse que, na Convenção, os aspectos de política comercial e de política ambiental têm o mesmo peso (58) e que, em consequência, a Convenção – contrariamente ao entendimento acima defendido – não pode ser enquadrada de um modo evidente em nenhuma das duas políticas.
52. A este respeito, importa assinalar, em primeiro lugar, que as diferenças no processo de celebração de convenções de política comercial, por um lado, e de convenções de política ambiental, por outro, não são inultrapassáveis (59). De facto, o Parlamento, no domínio das convenções de política comercial, regra geral, apenas é informado de forma não oficial (60), não lhe sendo atribuído, nos termos do Tratado, nenhum direito de participação formal; a sua consulta antes da celebração de convenções de política ambiental é, pelo contrário, obrigatória, nos termos do artigo 300.°, n.° 3, primeiro parágrafo, CE. Contudo, nada impede o Conselho de, também em relação às Convenções de política comercial, ouvir o Parlamento, facultativamente (61).
53. Aliás, é determinante que a anulação da aprovação da Convenção só pode ocorrer quando a alegada irregularidade na escolha da base jurídica não constitua mais do que um vício meramente formal.
54. O Tribunal de Justiça considerou existir um vício meramente formal numa situação em que um acto jurídico foi erradamente adoptado utilizando uma dupla e não apenas uma única base jurídica (62). O mesmo deveria acontecer no caso contrário, em que se censura o legislador comunitário por ter utilizado não uma única mas antes uma dupla base jurídica. Na verdade, para que um acto jurídico comunitário seja anulado não basta a mera referência da base jurídica ou das bases jurídicas nos seus considerandos, sendo necessário que o erro na escolha da base jurídica tenha produzido efeitos mais amplos, designadamente no que respeita à aplicação de um processo de adopção do acto (63) ou se se tiver prejudicado a posição jurídica das instituições envolvidas.
55. No caso em apreço, o Parlamento foi consultado, nos termos do artigo 300.°, n.° 3, primeiro parágrafo, CE. Os direitos processuais do Parlamento foram, portanto, garantidos. A utilização do artigo 133.° CE como segunda base jurídica não lhe conferiria direitos suplementares; pelo contrário, o teor do artigo 300.°, n.° 3, primeiro parágrafo, CE revela que os direitos processuais do Parlamento no âmbito das convenções de política comercial são menores do que eventualmente nas convenções em matéria de política ambiental (64).
56. Também não há indicações concretas de que o facto de o artigo 133.° CE não ter sido utilizado como segunda base jurídica enfraquecesse o papel da Comissão como condutora das negociações (65). De facto, a Comunidade tem competência exclusiva relativamente à política comercial comum (66) (artigo 133.° CE), ao passo que, no domínio da política ambiental, partilha a sua competência, em princípio, com os Estados‑Membros (67); só neste último caso é que os Estados‑Membros se sentam com a Comissão à mesa das negociações, enquanto, no primeiro caso, a condução das negociações compete exclusivamente à Comissão. A utilização adicional do artigo 133.° CE como base jurídica pode, portanto, reforçar a posição jurídico‑processual da Comissão, nos casos em que a convenção em causa abranja diversos sectores parciais distintos, um dos quais, pelo menos, seja da competência exclusiva da Comunidade (68). Contudo, num caso como este, nada indica que as diversas disposições da Convenção pudessem distinguir‑se desse modo. Pelo contrário, a Convenção constitui um conjunto uniforme, de modo que a utilização do artigo 133.° CE como segunda base jurídica, a par do artigo 175.°, n.° 1, CE, não poderia ter melhorado a posição negocial da Comissão nem a sua falta poderia ter enfraquecido essa posição.
57. Ainda que se presumisse que na Convenção controvertida os aspectos de política comercial e de política ambiental têm a mesma importância, a não utilização do artigo 133.° CE como segunda base jurídica não seria mais do que um mero vício formal, insusceptível de justificar a anulação do acto jurídico impugnado. A decisão do Conselho de adoptar a Convenção com base no artigo 175.°, n.° 1, CE, conjuntamente com o artigo 300.°, n.° 2, primeiro parágrafo, primeiro período e n.° 3, primeiro parágrafo, CE, também não pode ser anulada deste ponto de vista.
V – Despesas
58. Por força do artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão sido vencida, há que condená‑la nas despesas do processo, conforme requerido pelo Conselho.
59. Por outro lado, resulta do artigo 69.°, n.° 4, do Regulamento de Processo que o Parlamento Europeu, na qualidade de instituição interveniente no processo, bem como os cinco Estados‑Membros que também intervieram no processo, devem suportar as respectivas despesas.
VI – Conclusão
60. Tendo em conta as considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que:
1. Negue proviemento ao recurso.
2. Declare que o Parlamento Europeu, a República Francesa, o Reino dos Países Baixos, a República da Áustria, a República da Finlândia e o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte devem suportar as respectivas despesas. Quanto ao restante que a Comissão das Comunidades Europeias seja condenada nas despesas do processo.