Language of document : ECLI:EU:C:2024:348

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

25 de abril de 2024 (*)

«Reenvio prejudicial — Artigos 49.o e 54.o TFUE — Liberdade de estabelecimento — Sociedade com sede num Estado‑Membro mas que exerce as suas atividades noutro Estado‑Membro — Funcionamento e gestão da sociedade — Regulamentação nacional que prevê a aplicação da lei do Estado‑Membro no qual uma sociedade exerce as suas atividades — Restrição à liberdade de estabelecimento — Justificação — Proteção dos interesses dos credores, dos sócios minoritários e dos trabalhadores — Luta contra as práticas abusivas e os expedientes artificiais — Proporcionalidade»

No processo C‑276/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pela Corte suprema di cassazione (Supremo Tribunal de Cassação, Itália), por Decisão de 11 de abril de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 22 de abril de 2022, no processo

Edil Work 2 Srl,

S.T. Srl

contra

STE Sàrl,

sendo intervenientes:

CM,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: K. Jürimäe (relatora), presidente de secção, L. Bay Larsen, vice‑presidente do Tribunal de Justiça, exercendo funções de juiz da Terceira Secção, N. Piçarra, N. Jääskinen e M. Gavalec, juízes,

advogado‑geral: L. Medina,

secretário: M. Krausenböck, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 11 de julho de 2023,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Edil Work 2 Srl e S.T. Srl, por R. Vaccarella, avvocato,

–        em representação de STE Sàrl, por A. Pontecorvo e P. Sammarco, avvocati,

–        em representação do Governo Italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por F. Meloncelli, avvocato dello Stato,

–        em representação da Comissão Europeia, por G. Braun, L. Malferrari e M. Mataija, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 19 de outubro de 2023,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 49.o e 54.o TFUE.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Edil Work 2 Srl e S.T. Srl à STE Sàrl a respeito da legalidade da transferência de propriedade do complexo imobiliário designado Castello di Tor Crescenza (a seguir «Castelo») a favor das duas primeiras sociedades.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        O considerando 2 da Diretiva (UE) 2019/2121 do Parlamento Europeu e do Conselho de 27 de novembro de 2019, que altera a Diretiva (UE) 2017/1132 na parte que respeita às transformações, fusões e cisões transfronteiriças (JO 2019, L 321, p. 1), enuncia:

«A liberdade de estabelecimento é um dos princípios fundamentais do direito da União. Do artigo 49.o [segundo parágrafo, TFUE], conjugado com o artigo 54.o [TFUE], decorre que a liberdade de estabelecimento de sociedades compreende, nomeadamente, a constituição e a gestão dessas sociedades nas condições estabelecidas pelas disposições legislativas do Estado‑Membro de estabelecimento. Essa liberdade tem sido interpretada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia como incluindo o direito de uma sociedade constituída de acordo com a legislação de um Estado‑Membro se transformar numa sociedade regida pela legislação de outro Estado‑Membro, desde que sejam cumpridas as condições fixadas pelo direito de outro Estado‑Membro e, em especial, o critério seguido por este último Estado‑Membro para efeitos de determinar a ligação de uma sociedade à sua ordem jurídica nacional.»

 Direito italiano

4        O artigo 25.o da legge n.o 218 — Riforma del sistema italiano di diritto internazionale privato (Lei n.o 218, que reforma o Sistema Italiano de Direito Internacional Privado), de 31 de maio de 1995 (GURI n.o 128, de 3 junho de 1995, p. 1, a seguir «Lei n.o 218/1995»), prevê:

«1.      As sociedades, associações, fundações e quaisquer outras entidades, públicas ou privadas, mesmo que não possuam caráter associativo, regem‑se pela lei do Estado em cujo território foi concluído o processo de constituição. Porém, a lei aplicável será a italiana se a sede da administração se situar em Itália, ou se o objeto principal dessas entidades estiver localizado em Itália.

2.      Em especial, regem se pela lei que regula a entidade:

a)      a natureza jurídica;

b)      a denominação ou firma;

c)      a constituição, transformação e extinção;

d)      a capacidade;

e)      a formação, as competências e as regras de funcionamento dos órgãos sociais;

f)      a representação da sociedade;

g)      as regras relativas à aquisição e perda da qualidade de associado ou sócio, bem como os direitos e obrigações que dessa qualidade decorrem;

h)      a responsabilidade pelas obrigações da entidade;

i)      as consequências decorrentes da violação da lei ou do ato constitutivo.

3.      A transferência da sede social para outro Estado e a fusão de entidades com sede em diferentes Estados só produzem efeitos se forem efetuadas de acordo com a legislação dos Estados em causa.»

5        O artigo 2381.o, segundo parágrafo, do Codice civile (Código Civil), tem a seguinte redação:

«Se os estatutos ou a assembleia geral o permitirem, o conselho de administração pode delegar os seus poderes numa comissão executiva composta por alguns dos seus membros ou num ou vários dos seus membros.»

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

6        O Castelo, situado nos arredores de Roma (Itália), constituía o único bem do património da Agricola Torcrescenza Srl, sociedade cuja atividade consistia na gestão desse bem imóvel. Durante o ano de 2004, essa sociedade, antes de mais, mudou a sua denominação tornando‑se STA Srl e, em seguida, transferiu a sua sede social para o Luxemburgo, onde se transformou numa sociedade luxemburguesa, a STE, continuando a explorar o Castelo.

7        Em 2010, numa assembleia geral extraordinária da STE, realizada no Luxemburgo, S.B. foi nomeada administradora única. Nessa ocasião, a S.B. nomeou F.F., que não era acionista nem membro do conselho de administração da STE, como mandatário geral, atribuindo‑lhe o poder de praticar «todos os atos e operações necessários, sem exceção nem exclusão, no respeito dos limites do objeto social» (a seguir «atribuição de poderes controvertida»).

8        Em 2012, F.F., agindo em nome e por conta da STE, transferiu a propriedade do Castelo para a S.T., que, posteriormente, a transferiu para a Edil Work 2. Em 2013, a STE intentou no Tribunale di Roma (Tribunal de Primeira Instância de Roma, Itália) uma ação contra a ST e a Edil Work 2, a fim de obter a anulação das duas transferências da propriedade do Castelo com o fundamento de que a atribuição de poderes controvertida era, segundo o direito italiano, ilegal.

9        Considerando esta atribuição regular, o Tribunale di Roma (Tribunal de Primeira Instância de Roma) julgou o pedido improcedente. Uma vez que o acórdão desse órgão jurisdicional foi revogado pela Corte d’appello di Roma (Tribunal de Recurso de Roma, Itália), a Edil Work 2 e a S.T. interpuseram recurso para a Corte suprema di cassazione (Supremo Tribunal de Cassação, Itália), que é o órgão jurisdicional de reenvio.

10      Este órgão jurisdicional observa que resulta do artigo 25.o, n.o 3, da Lei n.o 218/1995 que o direito italiano autoriza a transformação, realizada através da transferência da sede social para outro Estado‑Membro, das sociedades italianas em sociedades estrangeiras, desde que a transferência seja válida tanto no Estado‑Membro de origem como no Estado‑Membro de destino.

11      Todavia, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, coloca‑se a questão de saber se a constituição da STE enquanto sociedade luxemburguesa implica submeter os atos de gestão desta sociedade, que, no entanto, manteve o centro das suas atividades em Itália, à lei luxemburguesa.

12      A este respeito, esse órgão jurisdicional salienta, por um lado, que o critério geral que permite determinar a lei aplicável à atribuição de poderes controvertida é, na aceção do artigo 25.o, n.o 1, da Lei n.o 218/1995, a do lugar onde a sociedade foi constituída.

13      Ora, em conformidade com o segundo período desta disposição, a lei italiana aplica‑se às sociedades cujo «objeto principal» se situe em Itália. Uma vez que o centro de atividade da STE, a saber, o Castelo, que é o seu único ativo, se encontra em Itália, a lei aplicável à atribuição de poderes controvertida é a lei italiana.

14      Ora, nos termos do artigo 2381.o, segundo parágrafo, do Código Civil, o conselho de administração de uma sociedade de responsabilidade limitada só pode delegar os seus poderes nos membros desse conselho. Assim, a atribuição destes poderes a um terceiro é ilegal.

15      O órgão jurisdicional de reenvio observa, por outro lado, que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a liberdade de estabelecimento abrange o direito de uma sociedade constituída em conformidade com o direito de um Estado‑Membro de se transformar numa sociedade de outro Estado‑Membro, desde que se verifiquem os pressupostos previstos pela legislação desse outro Estado‑Membro e, nomeadamente, que o critério de conexão fixado por este último esteja preenchido. Consequentemente, o facto de apenas a sede social ser transferida, e não a administração central ou o estabelecimento principal, não exclui, por si só, a aplicabilidade da liberdade de estabelecimento ao abrigo do artigo 49.o TFUE.

16      Por outro lado, segundo esta disposição, a liberdade de estabelecimento compreende não só a constituição, mas também a «gestão de empresas». As atividades de gestão devem ser exercidas, em conformidade com o considerando 2 da Diretiva 2019/2121, nas condições estabelecidas pela legislação do Estado‑Membro de estabelecimento, a saber, no presente processo, o Luxemburgo.

17      Nestas condições, a Corte suprema di cassazione (Supremo Tribunal de Cassação) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Os artigos 49.o e 54.o [TFUE] obstam a que um Estado‑Membro, no qual foi originariamente constituída uma sociedade (sociedade de responsabilidade limitada), aplique a essa sociedade as disposições do seu próprio [direito nacional] relativas ao funcionamento e à gestão [dessa] sociedade quando a [referida] sociedade, após ter transferido a sua sede social e se ter reconstituído de acordo com a legislação do Estado‑Membro de destino, mantém o centro da sua atividade no Estado‑Membro de partida e o ato de gestão em questão tem um impacto decisivo na atividade da sociedade?»

 Quanto à questão prejudicial

18      A título preliminar, há que recordar que, segundo jurisprudência constante, no âmbito do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça instituído pelo artigo 267.o TFUE, cabe a este dar ao juiz nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Nesta ótica, incumbe ao Tribunal de Justiça reformular, se for caso disso, a questão que lhe é submetida. Para esse efeito, o Tribunal de Justiça pode extrair do conjunto dos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional nacional, designadamente da fundamentação da decisão de reenvio, os elementos do referido direito que requerem uma interpretação, tendo em conta o objeto do litígio no processo principal (Acórdão de 16 de fevereiro de 2023, Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Nascituro no momento do pedido de asilo), C‑745/21, EU:C:2023:113, n.o 43).

19      No presente processo, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal de Justiça se os artigos 49.o e 54.o TFUE se opõem a que os atos de gestão de uma sociedade que se encontra na situação da STE sejam regulados pelo direito italiano, referindo‑se à circunstância de essa sociedade ter sido constituída como sociedade de um Estado‑Membro, a saber, a República Italiana, e de ter, em seguida, transferido a sua sede social e se ter constituído segundo a legislação de outro Estado‑Membro, a saber, o Grão‑Ducado do Luxemburgo, conservando o centro das suas atividades no primeiro Estado‑Membro.

20      Ora, resulta das informações de que o Tribunal de Justiça dispõe que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar que não foi imposta nenhuma restrição no momento dessa transferência e dessa transformação societária.

21      Como a transferência da sede social e a transformação da sociedade italiana STA na sociedade luxemburguesa STE não fazem, portanto, parte das circunstâncias relevantes para responder à questão suscitada pelo órgão jurisdicional de reenvio, há que reformular a questão prejudicial no sentido de que esse órgão jurisdicional pergunta, em substância, se os artigos 49.o e 54.o TFUE se opõem a uma legislação de um Estado‑Membro que prevê, de maneira geral, a aplicação do seu direito nacional aos atos de gestão de uma sociedade com sede noutro Estado‑Membro mas que exerça a parte principal das suas atividades no primeiro Estado‑Membro.

22      A este respeito, importa, em primeiro lugar, determinar se a situação em causa no litígio no processo principal está abrangida pela liberdade de estabelecimento.

23      O artigo 49.o TFUE, lido em conjugação com o artigo 54.o TFUE, concede o benefício da liberdade de estabelecimento às sociedades constituídas em conformidade com a legislação de um Estado‑Membro que tenham a sua sede estatutária, a sua administração central ou o seu estabelecimento principal no interior da União Europeia (Acórdão de 25 de outubro de 2017, Polbud — Wykonawstwo, C‑106/16, EU:C:2017:804, n.o 32).

24      De acordo com o artigo 49.o, segundo parágrafo, TFUE, em conjugação com o artigo 54.o TFUE, a liberdade de estabelecimento das sociedades a que se refere este último artigo abrange, nomeadamente, a constituição e a gestão dessas sociedades nas condições definidas pela legislação do Estado‑Membro de estabelecimento para as suas próprias sociedades (Acórdão de 25 de outubro de 2017, Polbud — Wykonawstwo, C‑106/16, EU:C:2017:804, n.o 33).

25      Por outro lado, as referidas sociedades têm o direito de exercer a sua atividade noutro Estado‑Membro, servindo a localização da sua sede social, da sua administração central ou do seu estabelecimento principal para determinar, à semelhança da nacionalidade das pessoas singulares, a sua subordinação à ordem jurídica de um Estado‑Membro (v., neste sentido, Acórdão de 5 de novembro de 2002, Überseering (C‑208/00, EU:C:2002:632, n.o 57).

26      Na falta de uniformização do direito da União, a definição do elemento de conexão que determina o direito nacional aplicável a uma sociedade, nos termos do artigo 54.o TFUE, é da competência Estados‑Membros, artigo que coloca no mesmo plano a sede estatutária, a administração central e o estabelecimento principal de uma sociedade como elemento de conexão (Acórdão de 25 de outubro de 2017, Polbud — Wykonawstwo, C‑106/16, EU:C:2017:804, n.o 34).

27      No caso vertente, resulta da decisão de reenvio, primeiro, que a STE foi constituída em 2004 como sociedade luxemburguesa, segundo, que esta sociedade tem a sua sede estatutária no Luxemburgo e, terceiro, que exerce a parte principal das suas atividades noutro Estado‑Membro, a saber, a República Italiana.

28      Tendo em conta a jurisprudência referida nos n.os 23 a 26 do presente acórdão, há que considerar que a situação desta sociedade e, em especial, os atos de gestão que adota a propósito das atividades que exerce em Itália, estão abrangidos pela liberdade de estabelecimento.

29      Nestas condições, há que determinar, em segundo lugar, se a legislação de um Estado‑Membro que prevê a aplicação do seu direito nacional aos atos de gestão de uma sociedade com sede noutro Estado‑Membro, pelo facto de essa sociedade exercer a parte principal das suas atividades no primeiro Estado‑Membro, constitui uma restrição à liberdade de estabelecimento.

30      Devem ser consideradas restrições à liberdade de estabelecimento, na aceção do artigo 49.o TFUE, todas as medidas que proíbam, perturbem ou tornem menos atrativo o exercício dessa liberdade (Acórdãos de 5 de outubro de 2004, CaixaBank France, C‑442/02, EU:C:2004:586, n.o 11, e de 25 de outubro de 2017, Polbud— Wykonawstwo, C‑106/16, EU:C:2017:804, n.o 46).

31      Ora, importa salientar que uma regulamentação de um Estado‑Membro que preveja que as sociedades com sede noutro Estado‑Membro que exercem a parte principal das suas atividades no primeiro Estado‑Membro devem respeitar, no âmbito da realização dos seus atos de gestão, além das obrigações decorrentes do direito do seu Estado‑Membro de estabelecimento, o direito do primeiro Estado‑Membro, poderia tornar mais difícil a gestão dessas sociedades, uma vez que poderia obrigá‑las a conformar‑se com as exigências impostas por esses dois ordenamentos jurídicos.

32      Daqui resulta que tal regulamentação é suscetível de tornar menos atrativo o exercício da liberdade de estabelecimento e constitui, por conseguinte, um entrave ao exercício dessa liberdade.

33      No caso vertente, resulta da decisão de reenvio que a STE é uma sociedade de direito luxemburguês cuja sede estatutária se situa no Luxemburgo. No entanto, também resulta da decisão de reenvio que, no que respeita aos atos de gestão, a aplicação do artigo 25.o, n.o 1, da Lei n.o 218/1995, sujeita esta sociedade ao direito italiano unicamente porque exerce a parte principal das suas atividades em Itália.

34      Nestas condições, uma sociedade que se encontre na situação da STE pode estar sujeita, cumulativamente, tanto ao direito luxemburguês como ao direito italiano. Ora, essa aplicação cumulativa do direito de dois Estados‑Membros pode tornar mais difícil a gestão dessa sociedade.

35      Por conseguinte, há que analisar, em terceiro lugar, se uma restrição à liberdade de estabelecimento resultante de uma regulamentação como a que está em causa no processo principal pode, não obstante, ser justificada.

36      Resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que uma restrição à liberdade de estabelecimento só pode ser admitida se for justificada por razões imperiosas de interesse geral. Nesta hipótese, impõe‑se ainda que seja adequada a garantir a realização do objetivo assim prosseguido e que não vá além do necessário para o atingir (v., neste sentido, Acórdãos de 13 de dezembro de 2005, Marks & Spencer, C‑446/03, EU:C:2005:763, n.o 35, e de 25 de outubro de 2017, Polbud — Wykonawstwo, C‑106/16, EU:C:2017:804, n.o 52).

37      A este respeito, importa salientar, antes de mais, que o órgão jurisdicional de reenvio não indica as razões que justificam a restrição à liberdade de estabelecimento que decorre da aplicação do artigo 25.o, n.o 1, segundo período, da Lei n.o 218/1995 aos atos de gestão de uma sociedade validamente constituída ao abrigo da legislação de outro Estado‑Membro e que exerce a parte principal das suas atividades no território italiano. Tais indicações também não resultam da redação desta disposição nem da redação do artigo 2381.o do Código Civil.

38      Em contrapartida, resulta dos articulados do Governo Italiano, primeiro, que a restrição à liberdade de estabelecimento em causa se justifica pelo objetivo da proteção dos acionistas, dos credores, dos trabalhadores e de terceiros.

39      A este respeito, há que recordar que a proteção dos interesses dos credores, dos trabalhadores e dos sócios minoritários se conta entre as razões imperiosas de interesse geral reconhecidas pelo Tribunal de Justiça (v., neste sentido, Acórdão de 25 de outubro de 2017, Polbud— Wykonawstwo, C‑106/16, EU:C:2017:804, n.o 54 e jurisprudência referida).

40      Assim, os artigos 49.o e 54.o TFUE não se opõem, em princípio, a medidas de um Estado‑Membro que pretendam que os interesses dos credores, dos sócios minoritários e dos trabalhadores de uma sociedade, que foi constituída em conformidade com a legislação de outro Estado‑Membro mas que exerce a parte principal das suas atividades no território nacional, não sejam indevidamente afetados.

41      Todavia, em conformidade com a jurisprudência constante referida no n.o 36 do presente acórdão, a restrição em causa no processo principal deve ser adequada para garantir a realização do objetivo de proteção dos interesses dos credores, dos sócios minoritários e dos trabalhadores e não deve ir além do necessário para o atingir.

42      Ora, se o artigo 25.o, n.o 1, segundo período, da Lei n.o 218/1995 fosse interpretado no sentido de que implica que qualquer ato de gestão de uma sociedade validamente constituída segundo a legislação de outro Estado‑Membro mas que exerça a parte principal das suas atividades em Itália estivesse sujeito à legislação italiana, não seria possível verificar a existência, num caso concreto, de um risco de prejuízo dos interesses dos credores, dos acionistas minoritários ou dos trabalhadores. Com efeito, importa especificar que esse risco pode depender, nomeadamente, do tipo de ato adotado e variar em função da composição da estrutura acionista da sociedade em causa. Além disso, a legislação do Estado‑Membro onde a sociedade em causa se constituiu pode ter tomado em consideração os interesses acima referidos, circunstância que a aplicação automática da legislação italiana não permite ter em conta.

43      Nestas condições, uma regulamentação nacional como a que está em causa no processo principal vai além do necessário para atingir o objetivo de proteção dos interesses mencionados no n.o 39 do presente acórdão.

44      Segundo, o Governo Italiano alega que a regulamentação nacional em causa visa lutar contra as práticas abusivas, impedindo comportamentos que consistam em criar expedientes puramente artificiais, desprovidos de efetividade económica.

45      A este respeito, convém recordar que os Estados‑Membros têm a possibilidade de tomar medidas aptas a prevenir ou a sancionar as fraudes (v., neste sentido, Acórdãos de 9 de março de 1999, Centros, C‑212/97, EU:C:1999:126, n.o 38, e de 25 de outubro de 2017, Polbud — Wykonawstwo, C‑106/16, EU:C:2017:804, n.o 61).

46      Por outro lado, a luta contra a evasão fiscal e a fraude pode justificar uma restrição à liberdade de estabelecimento prevista no artigo 49.o TFUE, desde que o objetivo específico dessa restrição seja impedir comportamentos que consistam em criar expedientes puramente artificiais, desprovidos de efetividade económica, com o objetivo de eludir o imposto normalmente devido sobre os lucros gerados por atividades realizadas no território nacional (v., neste sentido, Acórdãos de 12 de setembro de 2006, Cadbury Schweppes e Cadbury Schweppes Overseas, C‑196/04, EU:C:2006:544, n.o 55, e de 20 de janeiro de 2021, Lexel, C‑484/19, EU:C:2021:34, n.o 49).

47      Todavia, o Tribunal de Justiça declarou, por um lado, que o facto de se estabelecer a sede, estatutária ou efetiva, de uma sociedade em conformidade com a legislação de um Estado‑Membro com o objetivo de beneficiar de uma legislação mais vantajosa não constitui, em si, um abuso (v., neste sentido, Acórdãos de 9 de março de 1999, Centros, C‑212/97, EU:C:1999:126, n.o 27, e de 25 de outubro de 2017, Polbud — Wykonawstwo, C‑106/16, EU:C:2017:804, n.o 40).

48      Por outro lado, a mera circunstância de uma sociedade, sediada num Estado‑Membro, exercer a parte principal das suas atividades noutro Estado‑Membro, não permite estabelecer uma presunção geral de fraude e justificar uma medida que afeta o exercício de uma liberdade fundamental garantida pelo Tratado (v., por analogia, Acórdão de 25 de outubro de 2017, Polbud— Wykonawstwo, C‑106/16, EU:C:2017:804, n.o 63).

49      Ora, no presente processo, se a regulamentação em causa no processo principal devesse ser interpretada no sentido de que impõe a aplicação sistemática da lei italiana a qualquer ato de gestão de uma sociedade com sede noutro Estado‑Membro mas que exerça a parte principal das suas atividades em Itália, equivaleria a criar uma presunção segundo a qual os comportamentos dessa sociedade seriam abusivos. Tal regulamentação, tendo em conta as considerações expostas nos n.os 47 e 48 do presente acórdão, seria desproporcionada (v., por analogia, Acórdão de 25 de outubro de 2017, Polbud— Wykonawstwo, C‑106/16, EU:C:2017:804, n.o 64).

50      Nestas condições, há que responder à questão submetida que os artigos 49.o e 54.o TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação de um Estado‑Membro que prevê, de maneira geral, a aplicação do seu direito nacional aos atos de gestão de uma sociedade com sede noutro Estado‑Membro, mas que exerça a parte principal das suas atividades no primeiro Estado‑Membro.

 Quanto às despesas

51      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

Os artigos 49.o e 54.o TFUE

devem ser interpretados no sentido de que:

se opõem a uma legislação de um EstadoMembro que prevê, de maneira geral, a aplicação do seu direito nacional aos atos de gestão de uma sociedade com sede noutro EstadoMembro, mas que exerça a parte principal das suas atividades no primeiro EstadoMembro.

Assinaturas


*      Língua do processo: italiano.