Language of document : ECLI:EU:C:2022:570

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

14 de julho de 2022 (*)

«Reenvio prejudicial — Aproximação das legislações — Regulamento (CE) n.o 715/2007 — Homologação dos veículos a motor — Artigo 3.o, ponto 10 — Artigo 5.o, n.os 1 e 2 — Dispositivo manipulador — Veículos a motor — Motor diesel — Emissões de poluentes — Sistema de controlo das emissões — Programa informático integrado na calculadora de controlo do motor — Válvula para recirculação dos gases de escape (válvula EGR) — Redução das emissões de óxido de azoto (NOx) limitada por uma “janela térmica” — Proibição da utilização de dispositivos manipuladores que reduzem a eficácia dos sistemas de controlo das emissões — Artigo 5.o, n.o 2, alínea a) — Exceção a esta proibição»

No processo C‑128/20,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Landesgericht Klagenfurt (Tribunal Regional de Klagenfurt, Áustria), por Decisão de 19 de fevereiro de 2020, que deu entrada no Tribunal de Justiça no mesmo dia, no processo

GSMB Invest GmbH & Co. KG

contra

Auto Krainer GesmbH,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, L. Bay Larsen, vice‑presidente, A. Arabadjiev, A. Prechal, K. Jürimäe, C. Lycourgos e I. Ziemele, presidentes de secção, M. Ilešič, J.‑C. Bonichot, F. Biltgen, P. G. Xuereb (relator), N. Piçarra e N. Wahl, juízes,

advogado‑geral: A. Rantos,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da GSMB Invest GmbH & Co. KG, por T. Kainz, Rechtsanwalt,

–        em representação da Auto Krainer GesmbH, por H. Gärtner, F. Gebert, F. Gonsior, C. Harms, N. Hellermann, F. Kroll, M. Lerbinger, S. Lutz‑Bachmann, L.‑K. Mannefeld, K.‑U. Opper, H. Posser, J. Quecke, K. Schramm, W. F. Spieth, J. von Nordheim, K. Vorbeck, B. Wolfers e B. Wollenschläger, Rechtsanwälte,

–        em representação do Governo alemão, por J. Möller e D. Klebs, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por M. Huttunen e M. Noll‑Ehlers, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 23 de setembro de 2021,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 3.o, ponto 10, e do artigo 5.o, n.os 1 e 2, do Regulamento (CE) n.o 715/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2007, relativo à homologação dos veículos a motor no que respeita às emissões dos veículos ligeiros de passageiros e comerciais (Euro 5 e Euro 6) e ao acesso à informação relativa à reparação e manutenção de veículos (JO 2007, L 171, p. 1).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a GSMB Invest GmbH & Co. KG à Auto Krainer GesmbH, a propósito do pedido de anulação de um contrato de compra e venda relativo a um veículo a motor equipado com um programa informático que reduz a recirculação dos gases poluentes desse veículo em função da temperatura e da altitude detetadas.

 Quadro jurídico

 Direito da União

 Regulamento n.o 715/2007

3        Nos termos dos considerandos 1 e 6 do Regulamento n.o 715/2007:

«(1)      […] Os requisitos técnicos para a homologação dos veículos a motor no que respeita às emissões deverão […] ser harmonizados a fim de evitar que os Estados‑Membros apliquem requisitos divergentes e de assegurar um nível elevado de proteção do ambiente.

[…]

(6)      A fim de melhorar a qualidade do ar e de respeitar os valores limite de poluição atmosférica, afigura‑se, sobretudo, necessária uma redução considerável das emissões de óxido de azoto dos veículos equipados com motor diesel. […]»

4        O artigo 1.o, n.o 1, deste regulamento prevê:

«O presente regulamento estabelece requisitos técnicos comuns para a homologação de veículos a motor (“veículos”) e de peças de substituição, tais como dispositivos de controlo da poluição de substituição, no que respeita às respetivas emissões.»

5        O artigo 3.o, ponto 10, do referido regulamento enuncia:

«Para efeitos do presente regulamento e das respetivas medidas de execução, entende‑se por:

[…]

10)      “Dispositivo manipulador” (defeat device), qualquer elemento sensível à temperatura, à velocidade do veículo, à velocidade do motor (RPM), às mudanças de velocidade, à força de aspiração ou a qualquer outro parâmetro e destinado a ativar, modular, atrasar ou desativar o funcionamento de qualquer parte do sistema de controlo das emissões, de forma a reduzir a eficácia desse sistema em circunstâncias que seja razoável esperar que se verifiquem durante o funcionamento e a utilização normais do veículo.»

6        O artigo 4.o, n.os 1 e 2, do mesmo regulamento tem a seguinte redação:

«1.      Os fabricantes devem demonstrar que todos os novos veículos vendidos, matriculados ou postos em circulação na Comunidade estão homologados em conformidade com o disposto no presente regulamento e nas respetivas medidas de execução. Os fabricantes devem igualmente demonstrar que todos os novos dispositivos de controlo da poluição de substituição sujeitos a homologação e que sejam vendidos ou entrem em circulação na Comunidade estão homologados em conformidade com o disposto no presente regulamento e respetivas medidas de execução.

Estas obrigações abrangem a observância dos limites de emissão definidos no anexo I e das medidas de execução referidas no artigo 5.o

2.      Os fabricantes devem garantir que sejam respeitados os procedimentos de homologação destinados a verificar a conformidade da produção, a durabilidade dos dispositivos de controlo da poluição e a conformidade em circulação.

Além disso, as medidas técnicas adotadas pelos fabricantes deverão ser adequadas para garantir que as emissões do tubo de escape e resultantes da evaporação sejam eficazmente limitadas, nos termos do presente regulamento, ao longo da vida normal dos veículos e em condições de uso normais. […]

[…]»

7        O artigo 5.o, n.os 1 e 2, do Regulamento n.o 715/2007 dispõe:

«1.      O fabricante deve equipar os veículos de forma a que os componentes suscetíveis de afetar as emissões sejam concebidos, construídos e montados de modo a permitir que o veículo cumpra, em utilização normal, o disposto no presente regulamento e nas respetivas medidas de execução.

2.      A utilização de dispositivos manipuladores que reduzam a eficácia dos sistemas de controlo das emissões é proibida. A proibição não se aplica:

a)      Se se justificar a necessidade desse dispositivo para proteger o motor de danos ou acidentes e para garantir um funcionamento seguro do veículo.

b)      Se esse dispositivo não funcionar para além do necessário ao arranque do motor;

ou

c)      Se as condições estiverem substancialmente incluídas nos processos de ensaio para verificação das emissões por evaporação e da média das emissões pelo tubo de escape.»

8        O anexo I deste regulamento, intitulado «Limites de emissão», prevê, nomeadamente, os valores limite de emissão de óxido de azoto (NOx).

 Regulamento n.o 692/2008

9        O Regulamento (CE) n.o 692/2008 da Comissão, de 18 de julho de 2008, que executa e altera o Regulamento n.o 715/2007 (JO 2008, L 199, p. 1), foi alterado pelo Regulamento (UE) n.o 566/2011 da Comissão, de 8 de junho de 2011 (JO 2011, L 158, p. 1) (a seguir «Regulamento n.o 692/2008»). A partir de 1 de janeiro de 2022, o Regulamento n.o 692/2008 foi revogado pelo Regulamento (UE) 2017/1151 da Comissão, de 1 de junho de 2017, que completa o Regulamento n.o 715/2007, que altera a Diretiva 2007/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, o Regulamento n.o 692/2008 e o Regulamento (UE) n.o 1230/2012 da Comissão e revoga o Regulamento n.o 692/2008 (JO 2017, L 175, p. 1). No entanto, tendo em conta a data dos factos do litígio no processo principal, o Regulamento n.o 692/2008 continua a ser‑lhe aplicável.

10      O artigo 1.o do Regulamento n.o 692/2008 previa:

«O presente regulamento institui medidas de aplicação dos artigos 4.o, 5.o e 8.o do Regulamento (CE) n.o 715/2007.»

11      O artigo 2.o, ponto 18, do Regulamento n.o 692/2008 tinha a seguinte redação:

«Para efeitos do disposto no presente regulamento, entende‑se por:

[…]

18.      “Sistema de controlo das emissões”, no contexto do sistema OBD [(sistemas de diagnóstico a bordo)], o sistema eletrónico de controlo responsável pela gestão do motor e qualquer componente do sistema de escape ou do sistema de evaporação relacionado com as emissões que envie ou receba sinais a esse/ou desse sistema de controlo.»

12      O artigo 3.o, n.o 9, deste regulamento dispunha:

«As emissões medidas no ensaio do tipo 6 a baixas temperaturas, conforme descrito no anexo VIII, não são aplicáveis aos veículos a gasóleo.

Todavia, com o pedido de homologação, os fabricantes devem apresentar à entidade homologadora informações comprovativas de que o dispositivo de pós‑tratamento de [óxido de azoto (NOx)] atinge uma temperatura suficientemente elevada para um funcionamento eficaz no espaço de 400 segundos após um arranque a frio a -7 [graus Celsius], conforme descrito no ensaio do tipo 6.

Além disso, o fabricante deve fornecer à entidade homologadora informações sobre a estratégia de funcionamento do sistema de recirculação dos gases de escape (EGR), incluindo o seu funcionamento a baixas temperaturas.

Esta informação deve incluir ainda uma descrição dos eventuais efeitos nas emissões.

A entidade homologadora não deve conceder a homologação se a informação fornecida for insuficiente para demonstrar que o dispositivo de pós‑tratamento atinge realmente uma temperatura suficientemente elevada para um funcionamento eficaz dentro do período determinado.

[…]»

13      O artigo 10.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Dispositivos de controlo da poluição», previa, no seu n.o 1:

«O fabricante deve garantir que os dispositivos de substituição para controlo da poluição destinados a equiparem veículos com homologação CE abrangidos pelo âmbito de aplicação do Regulamento (CE) n.o 715/2007 também recebam a homologação CE, enquanto unidades técnicas na aceção do n.o 2 do artigo 10.o da Diretiva 2007/46/CE [do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de setembro de 2007, que estabelece um quadro para a homologação dos veículos a motor e seus reboques, e dos sistemas, componentes e unidades técnicas destinados a serem utilizados nesses veículos (“Diretiva‑Quadro”) (JO 2007, L 263, p. 1)], nos termos dos artigos 12.o e 13.o e do anexo XIII do presente regulamento.

Para efeitos do presente regulamento, os catalisadores e os filtros de partículas são considerados dispositivos de controlo da poluição.

[…]»

14      O anexo I do Regulamento n.o 692/2008, intitulado «Disposições administrativas relativas à homologação CE», enunciava, no ponto 3.3, intitulado «Extensões relativas à durabilidade dos dispositivos de controlo da poluição (ensaio de tipo 5)»:

«3.3.1.      A homologação deve ser objeto de extensão a diferentes modelos de veículos, desde que os parâmetros abaixo enunciados relativos ao veículo, ao motor ou ao sistema de controlo da poluição sejam idênticos ou respeitem as tolerâncias previstas:

3.3.1.1.      Veículo:

[…]

3.3.1.2.      Motor

[…]

3.3.1.3.      Parâmetros relativos ao sistema de controlo da poluição:

a)      Catalisadores e filtros de partículas:

[…]

[…]

c)      Recirculação dos gases de escape (EGR):

com ou sem

Tipo (arrefecidos ou não, controlo ativo ou passivo, alta pressão ou baixa pressão).

[…]»

 Direito austríaco

15      O § 879, n.o 1, do Allgemeines bürgerliches Gesetzbuch (Código Civil Geral), na sua versão aplicável ao processo principal (a seguir «ABGB»), prevê:

«É nulo o contrato contrário à lei ou aos bons costumes.»

16      O § 932, n.os 1 e 4, do ABGB dispõe:

«(1)      Em caso de defeito do bem, o comprador pode exigir a correção do defeito (reparação ou entrega do que estiver em falta), a substituição do bem, uma redução adequada da contrapartida (redução do preço) ou a anulação do contrato (redibição).

[…]

(4)      Se a reparação ou a substituição do bem não forem possíveis ou implicarem um custo desproporcionado para o vendedor, o comprador tem o direito de reduzir o preço e, se o defeito não for de menor importância, pode anular o contrato. […]»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

17      Em 9 de janeiro de 2011, a GSMB Invest celebrou com a Auto Krainer um contrato de compra e venda relativo a um veículo automóvel da marca Volkswagen, modelo Caddy Maxi Comfortline 4 Motion TDI, equipado com um motor diesel do tipo EA 189 da classe Euro 5, e com uma cilindrada de 2 litros, que dispunha de uma válvula para a recirculação dos gases de escape (a seguir «válvula EGR»).

18      Em 27 de dezembro de 2017, a GSMB Invest intentou no Landesgericht Klagenfurt (Tribunal Regional de Klagenfurt, Áustria), o órgão jurisdicional de reenvio, uma ação com vista a obter a anulação desse contrato de compra e venda, com fundamento no § 879, n.o 1, e no § 932, n.o 4, do ABGB, mediante o pagamento de uma indemnização pelo uso do bem.

19      Em apoio da sua ação, a GSMB Invest alega que, ao comprar o veículo em causa, acreditava ter adquirido um veículo novo, respeitador do ambiente e, nomeadamente, cujos gases de escape cumpriam o disposto na legislação em vigor. Ora, na sequência da atualização do programa informático integrado na calculadora de controlo do motor que equipa o referido veículo, realizada pela Volkswagen em 9 de maio de 2017, a purificação dos gases de escape apenas estava operacional quando a temperatura exterior se situa entre 15 e 33 graus Celsius e a altitude de circulação é inferior a 1 000 metros (a seguir «janela térmica»). Esta janela térmica constitui um sistema de comutação ilícito, uma vez que não pode ser justificado por nenhuma das derrogações previstas no artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007. Em especial, uma redução da purificação dos gases de escape provocada pela janela térmica não serve para proteger o motor do veículo em causa de danos diretos.

20      A Auto Krainer alega que essa janela térmica é utilizada por todos os fabricantes de veículos com motor diesel da categoria Euro 5 e que o Kraftfahrt‑Bundesamt (Organismo federal de controlo da circulação de veículos automóveis, Alemanha), a autoridade competente em matéria de homologação na Alemanha, considerou que esta janela térmica era uma medida lícita, à luz do Regulamento n.o 715/2007. Além disso, ao controlar a atualização do programa informático em causa, a referida autoridade constatou que esta atualização não tinha nenhum impacto negativo na durabilidade dos dispositivos de redução da poluição.

21      O órgão jurisdicional de reenvio considera que resulta do artigo 3.o, ponto 10, e do artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007 que a janela térmica é um dispositivo manipulador ilícito. Com efeito, na maior parte dos países da União Europeia, em especial na Alemanha, na Áustria e na Suíça, a temperatura ambiente é, na maioria das vezes, inferior a 15 graus Celsius ao longo do ano e, tendo em conta o relevo destes países, os veículos circulam muitas vezes a altitudes superiores a 1 000 metros, pelo que se pode razoavelmente esperar que essas condições de circulação ocorram durante o funcionamento e a utilização normais dos veículos, na aceção deste artigo 3.o, ponto 10.

22      Ora, segundo esse órgão jurisdicional, a derrogação prevista no artigo 5.o, n.o 2, alínea a), do Regulamento n.o 715/2007 não pode servir de fundamento jurídico para dispositivos manipuladores que são ativados em condições «normais» de utilização dos veículos.

23      O referido órgão jurisdicional acrescenta que o artigo 3.o, n.o 9, do Regulamento n.o 692/2008 determina o período durante o qual um funcionamento eficaz do motor deve ser atingido após um arranque a frio. Nos termos desta disposição, o dispositivo de pós‑tratamento de óxido de azoto (NOx) deve atingir uma temperatura suficientemente elevada para um funcionamento eficaz no espaço de 400 segundos após um arranque a frio a -7 graus Celsius. As autoridades de homologação não podem emitir uma homologação CE se os requisitos enunciados na referida disposição não estiverem suficientemente demonstrados. Decorre deste ónus da prova que o legislador da União estabeleceu claramente que uma janela térmica não podia ser justificada se não cumprisse esses requisitos.

24      O órgão jurisdicional de reenvio salienta, todavia, que o Tribunal de Justiça ainda não se pronunciou sobre as questões de interpretação das disposições do Regulamento n.o 715/2007 suscitadas no litígio que lhe foi submetido.

25      Nestas condições, o Landesgericht Klagenfurt (Tribunal Regional de Klagenfurt) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve o artigo 5.o, n.o 1, do [Regulamento n.o 715/2007] ser interpretado no sentido de que não é permitido equipar um veículo com um dispositivo, na aceção do artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento n.o 715/2007, através do qual a válvula [EGR], que é um componente do veículo que visa condicionar as emissões, é configurada para que a percentagem de circulação de gases de escape, ou seja, a quantidade de gases que são circulados, seja regulada de forma a só assegurar o funcionamento em modo de baixas emissões [dentro da janela térmica e], fora desta [janela térmica], a 10 graus Celsius e a mais de 1 000 metros de altitude e no decurso dos 250 metros de altitude seguintes é reduzido linearmente a 0, conduzindo a um aumento das emissões de [óxido de azoto (NOx)] para valores acima do limite previsto no Regulamento n.o 715/2007?

2)      Deve a frase “para proteger o motor de danos ou acidentes” do artigo 5.o, n.o 2, do [Regulamento n.o 715/2007] ser interpretada no sentido de que uma estratégia de emissões que visa principalmente proteger componentes do veículo, como as válvulas [E]GR, o refrigerador [E]GR e o filtro de partículas [d]iesel, não preenche as condições da exceção?

3)      Deve o artigo 5.o, n.o 1, do [Regulamento n.o 715/2007] ser interpretado no sentido de que uma estratégia de emissões que consiste em apenas assegurar a plena funcionalidade dos dispositivos de redução de emissões em condições de temperatura [dentro da janela térmica] […], de tal forma que na Europa, e especialmente na Áustria, durante a maior parte do ano não estão aptos a funcionar plenamente, não cumpre o previsto no artigo 5.o, n.o 1, [deste regulamento] — funcionamento do veículo em utilização normal — e é por isso um dispositivo manipulador ilegal?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira e terceira questões

26      A título preliminar, importa recordar que, segundo jurisprudência constante, no âmbito do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça instituído pelo artigo 267.o TFUE, cabe a este dar ao juiz nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Por conseguinte, embora, no plano formal, o órgão jurisdicional de reenvio tenha limitado a sua questão à interpretação de uma disposição específica do direito da União, tal circunstância não obsta a que o Tribunal de Justiça lhe forneça todos os elementos de interpretação deste direito que possam ser úteis para a decisão do processo que lhe foi submetido, quer esse órgão jurisdicional lhes tenha ou não feito referência no enunciado das suas questões. A este respeito, cabe ao Tribunal de Justiça extrair do conjunto dos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional nacional, designadamente da fundamentação da decisão de reenvio, os elementos do direito da União que requerem uma interpretação, tendo em conta o objeto do litígio no processo principal (Acórdão de 15 de julho de 2021, DocMorris, C‑190/20, EU:C:2021:609, n.o 23 e jurisprudência referida).

27      No caso em apreço, a primeira e terceira questões, às quais há que responder conjuntamente, fazem referência ao artigo 5.o, n.o 1, do Regulamento n.o 715/2007. No entanto, resulta do pedido de decisão prejudicial que o órgão jurisdicional de reenvio pretende determinar se a janela térmica constitui um «dispositivo manipulador» na aceção do artigo 3.o, ponto 10, deste regulamento, cuja utilização é, em princípio, proibida por força do artigo 5.o, n.o 2, do referido regulamento.

28      Importa salientar que, nas suas observações escritas, a Auto Krainer sustenta que o órgão jurisdicional de reenvio apresenta de uma forma errada o funcionamento do programa informático em causa. Com efeito, afirma que este programa informático implica uma redução da taxa de recirculação dos gases de escape quando a temperatura do ar de admissão no motor, e não a temperatura ambiente, é inferior a 15 graus Celsius. Ora, é pacífico, no plano técnico, que esta temperatura do ar de admissão no motor é, em média, superior em 5 graus Celsius à temperatura ambiente. Por conseguinte, todos os gases de escape recirculam quando a temperatura ambiente é superior ou igual não a 15 graus Celsius mas a 10 graus Celsius, ou seja, dentro do intervalo da temperatura ambiente anual média na Alemanha, a saber, 10,4 graus Celsius. Além disso, esse órgão jurisdicional não indica que, quando a temperatura ambiente é inferior a 10 graus Celsius, é apenas de forma progressiva que a taxa de recirculação dos gases de escape se reduz linearmente a 0, e isso até uma temperatura ambiente de -5 graus Celsius.

29      No entanto, importa recordar que, no âmbito de um processo nos termos do artigo 267.o TFUE, que se baseia numa nítida separação de funções entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, o juiz nacional tem competência exclusiva para apurar e apreciar os factos do litígio no processo principal, assim como para interpretar e aplicar o direito nacional (Acórdão de 9 de julho de 2020, Raiffeisen Bank e BRD Groupe Société Générale, C‑698/18 e C‑699/18, EU:C:2020:537, n.o 46).

30      Nestas condições, para responder utilmente ao órgão jurisdicional de reenvio, há que considerar que, com a sua primeira e terceira questões, esse órgão jurisdicional pergunta, em substância, se o artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007, lido em conjugação com o artigo 5.o, n.o 1, deste regulamento, deve ser interpretado no sentido de que um dispositivo que só garante o respeito dos valores‑limite de emissão previstos no referido regulamento quando dentro da janela térmica constitui um «dispositivo manipulador» na aceção desse artigo 3.o, ponto 10.

31      O artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007 define um «dispositivo manipulador» como «qualquer elemento sensível à temperatura, à velocidade do veículo, à velocidade do motor (RPM), às mudanças de velocidade, à força de aspiração ou a qualquer outro parâmetro e destinado a ativar, modular, atrasar ou desativar o funcionamento de qualquer parte do sistema de controlo das emissões, de forma a reduzir a eficácia desse sistema em circunstâncias que seja razoável esperar que se verifiquem durante o funcionamento e a utilização normais do veículo».

32      O Tribunal de Justiça declarou que essa definição de dispositivo manipulador confere um amplo alcance ao conceito de «elemento», que abrange tanto as peças mecânicas como os elementos eletrónicos que comandam a ativação de tais peças, desde que atuem sobre o funcionamento do sistema de controlo das emissões e reduzam a sua eficácia [Acórdão de 17 de dezembro de 2020, CLCV e o. (Dispositivo manipulador em motor diesel), C‑693/18, EU:C:2020:1040, n.o 64].

33      O Tribunal de Justiça declarou igualmente que o conceito de «sistema de controlo das emissões», na aceção do artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007, abrange tanto as tecnologias e a estratégia dita «de pós‑tratamento dos gases de escape», que reduzem as emissões a jusante, ou seja, depois da sua formação, como as que, à semelhança do sistema EGR, reduzem as emissões a montante, ou seja, durante a sua formação [Acórdão de 17 de dezembro de 2020, CLCV e o. (Dispositivo manipulador em motor diesel), C‑693/18. EU:C:2020:1040, n.o 90].

34      No caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que o veículo em causa está equipado com uma válvula EGR e com um programa informático integrado na calculadora de controlo do motor. Esta válvula é uma das tecnologias utilizadas pelos fabricantes de veículos para controlar e reduzir as emissões de óxido de azoto (NOx) geradas pela combustão incompleta do combustível. A eficácia da despoluição está ligada à abertura da válvula EGR, que é comandada pelo programa informático acima referido. Fora da janela térmica estabelecida pela atualização desse programa informático e referida no n.o 19 do presente acórdão, a taxa de recirculação dos gases de escape é reduzida linearmente a 0, o que conduz a uma ultrapassagem dos valores‑limite de emissão fixados para o óxido de azoto (NOx) pelo Regulamento n.o 715/2007.

35      Assim, o programa informático em causa no processo principal, programado segundo a janela térmica, deteta a temperatura do ar, bem como a altitude de circulação, com vista «a ativar, modular, atrasar ou desativar o funcionamento de qualquer parte do sistema de controlo das emissões», na aceção do artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007.

36      Consequentemente, uma vez que atua sobre o funcionamento do sistema de controlo das emissões e reduz a sua eficácia, esse programa informático constitui um «elemento» na aceção da referida disposição [v., neste sentido, Acórdão de 17 de dezembro de 2020, CLCV e o. (Dispositivo manipulador em motor diesel), C‑693/18, EU:C:2020:1040, n.o 66].

37      A fim de determinar se o programa informático em causa no processo principal constitui um dispositivo manipulador na aceção do artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007, importa ainda examinar se esse programa informático reduz a eficácia do sistema de controlo das emissões «em circunstâncias que seja razoável esperar que se verifiquem durante o funcionamento e a utilização normais do veículo».

38      O Regulamento n.o 715/2007 não define o conceito de «funcionamento e […] utilização normais do veículo» e não remete para o direito dos Estados‑Membros para determinar o seu sentido e alcance.

39      Por conseguinte, esse conceito constitui um conceito de direito da União que deve ser objeto, em toda a União, de uma interpretação autónoma e uniforme, que deve ser procurada tendo em conta não só os termos das disposições em que figura mas também o contexto dessas disposições e o objetivo por elas prosseguido (v., por analogia, Acórdão de 26 de janeiro de 2021, Hessischer Rundfunk, C‑422/19 e C‑423/19, EU:C:2021:63, n.o 45).

40      Como resulta da própria redação do artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007, o conceito de «funcionamento e […] utilização normais» de um veículo remete para a sua utilização em condições normais de condução, ou seja, não apenas, como afirma, em substância, a Auto Krainer nas suas observações escritas, para a sua utilização nas condições previstas para o teste de homologação, aplicável à época dos factos do litígio no processo principal, denominado «New European Driving Cycle» (NEDC), efetuado em laboratório e que consiste na repetição de quatro ciclos urbanos, seguidos de um ciclo extraurbano. Assim, este conceito remete para a utilização desse veículo em condições reais de condução, como existem habitualmente no território da União [v., neste sentido, Acórdão de 17 de dezembro de 2020, CLCV e o. (Dispositivo manipulador em motor diesel), C‑693/18, EU:C:2020:1040, n.os 96 e 101]. Com efeito, os ciclos de testes para as emissões dos veículos durante o procedimento de homologação não se baseiam nas condições reais de circulação [v., neste sentido, Acórdão de 17 de dezembro de 2020, CLCV e o. (Dispositivo manipulador em motor diesel), C‑693/18, EU:C:2020:1040, n.o 92].

41      Esta interpretação é confirmada pelo contexto em que se inscreve o artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007. Com efeito, nos termos do artigo 4.o, n.o 2, deste regulamento, as medidas técnicas adotadas pelos fabricantes deverão ser adequadas para garantir, nomeadamente, que as emissões do tubo de escape sejam eficazmente limitadas ao longo da vida normal dos veículos, e em condições de uso normais. Além disso, o artigo 5.o, n.o 1, do referido regulamento prevê que o fabricante deve equipar os veículos de modo que os componentes que afetam as emissões, como o programa informático em causa no processo principal, permitam que o veículo cumpra, em utilização normal, os limites de emissão previstos pelo mesmo regulamento e pelas suas medidas de execução [Acórdão de 17 de dezembro de 2020, CLCV e o. (Dispositivo manipulador em motor diesel), C‑693/18, EU:C:2020:1040, n.o 97].

42      Ora, estas disposições não revelam nenhum elemento que permita estabelecer uma distinção entre o funcionamento de um dispositivo como o programa informático em causa no processo principal durante a fase de teste de homologação e durante a condução em condições de utilização normais dos veículos. Pelo contrário, a instalação de um dispositivo que apenas permite assegurar o respeito dos valores limite de emissão previstos pelo Regulamento n.o 715/2007 durante a fase de teste de homologação, quando essa fase de teste não permite reproduzir as condições de utilização normais de um veículo, seria contrária à obrigação de assegurar uma limitação efetiva das emissões em tais condições de utilização [v., neste sentido, Acórdão de 17 de dezembro de 2020, CLCV e o. (Dispositivo manipulador em motor diesel), C‑693/18, EU:C:2020:1040, n.os 97 e 98]. O mesmo sucede no que respeita à instalação de um dispositivo que apenas permite assegurar esse respeito no âmbito de uma janela térmica que, embora abranja as condições em que ocorre a fase de teste de homologação, não corresponde às condições de condução normais, conforme definidas no n.o 40 do presente acórdão.

43      A interpretação que figura no n.o 40 do presente acórdão, segundo a qual o conceito de «funcionamento e […] utilização normais» de um veículo remete para a sua utilização em condições reais de condução, como existem habitualmente no território da União, é igualmente corroborada pelo objetivo prosseguido pelo Regulamento n.o 715/2007, que consiste, como resulta dos seus considerandos 1 e 6, em assegurar um nível elevado de proteção do ambiente e, mais especificamente, em reduzir consideravelmente as emissões de óxido de azoto (NOx) dos veículos com motor diesel a fim de melhorar a qualidade do ar e de respeitar os valores‑limite de poluição [v., neste sentido, Acórdão de 17 de dezembro de 2020, CLCV e o. (Dispositivo manipulador em motor diesel), C‑693/18, EU:C:2020:1040, n.os 67, 86 e 87].

44      Quanto à questão de saber se um programa informático como o que está em causa no processo principal reduz a eficácia do sistema de controlo das emissões em condições normais de condução, é pacífico que as temperaturas ambiente inferiores a 15 graus Celsius, bem como a condução em estradas situadas a uma altitude superior a 1 000 metros, são habituais no território da União.

45      Além disso, importa salientar que o Regulamento n.o 692/2008, aplicável aos factos no processo principal, que, nos termos do seu artigo 1.o, institui medidas de aplicação dos artigos 4.o, 5.o e 8.o do Regulamento n.o 715/2007, prevê, no seu artigo 3.o, n.o 9, segundo parágrafo, que os fabricantes devem apresentar à entidade homologadora informações comprovativas de que o dispositivo de pós‑tratamento do óxido de azoto (NOx) dos seus veículos atinge uma temperatura suficientemente elevada para um funcionamento eficaz no espaço de 400 segundos após um arranque a frio a -7 graus Celsius. Segundo este artigo 3.o, n.o 9, quinto parágrafo, a entidade homologadora não deve conceder a homologação se a informação fornecida for insuficiente para demonstrar que o dispositivo de pós‑tratamento atinge realmente uma temperatura suficientemente elevada para um funcionamento eficaz dentro do período determinado. Esta última disposição confirma a interpretação segundo a qual os valores‑limite de emissão previstos no Regulamento n.o 715/2007 devem ser respeitados quando as temperaturas são claramente inferiores a 15 graus Celsius.

46      Assim, há que considerar que um programa informático como o que está em causa no processo principal reduz a eficácia do sistema de controlo das emissões «em circunstâncias que seja razoável esperar que se verifiquem durante o funcionamento e a utilização normais do veículo», na aceção do artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007 e que constitui, portanto, um dispositivo manipulador na aceção desta disposição.

47      Por conseguinte, há que responder à primeira e terceira questões que o artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007, lido em conjugação com o artigo 5.o, n.o 1, deste regulamento, deve ser interpretado no sentido de que um dispositivo que só garante o respeito dos valores‑limite de emissão previstos no referido regulamento dentro da janela térmica constitui um «dispositivo manipulador», na aceção deste artigo 3.o, ponto 10.

 Quanto à segunda questão

48      Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 5.o, n.o 2, alínea a), do Regulamento n.o 715/2007 deve ser interpretado no sentido de que um dispositivo manipulador, que só garante o respeito dos valores‑limite de emissão previstos por este regulamento dentro da janela térmica, pode ser abrangido pela exceção à proibição de utilização desses dispositivos prevista nesta disposição se esse dispositivo contribuir para a proteção de componentes, como a válvula EGR, o refrigerador EGR e o filtro de partículas diesel.

49      Nos termos do artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007, a utilização de dispositivos manipuladores que reduzam a eficácia dos sistemas de controlo das emissões é proibida. No entanto, há três exceções a esta proibição, entre as quais a que figura neste artigo 5.o, n.o 2, alínea a), designadamente, «[s]e se justificar a necessidade desse dispositivo para proteger o motor de danos ou acidentes e para garantir um funcionamento seguro do veículo».

50      Na medida em que enuncia uma exceção à proibição de utilização de dispositivos manipuladores que reduzem a eficácia dos sistemas de controlo das emissões, esta disposição deve ser objeto de interpretação estrita [v., neste sentido, Acórdão de 17 de dezembro de 2020, CLCV e o. (Dispositivo manipulador em motor diesel), C‑693/18, EU:C:2020:1040, n.os 111 e 112].

51      No que respeita, antes de mais, ao conceito de «motor», como salientou o advogado‑geral nos n.os 118 e 119 das suas conclusões, o anexo I do Regulamento n.o 692/2008 estabelece uma diferenciação explícita entre o motor e o sistema de controlo da poluição. Com efeito, os requisitos relativos ao «Motor» são enunciados no ponto 3.3.1.2 deste anexo, ao passo que os requisitos relativos aos «Parâmetros do sistema de controlo da poluição» são enunciados no ponto 3.3.1.3 do referido anexo. Este último ponto, alíneas a) e c), inclui expressamente os filtros de partículas e a recirculação dos gases de escape. Além disso, nos termos do artigo 10.o, n.o 1, segundo parágrafo, deste regulamento, para efeitos deste último, os filtros de partículas são considerados dispositivos de controlo da poluição.

52      Por conseguinte, a válvula EGR, o refrigerador EGR e o filtro de partículas diesel são componentes distintos do motor. Com efeito, a válvula EGR situa‑se à saída do motor, a seguir ao coletor de escape. Quando é aberta, esta válvula permite que os gases de escape passem para o coletor de admissão, para serem queimados uma segunda vez e arrefecidos através de um permutador térmico, o refrigerador EGR. O filtro de partículas, que se situa antes do tubo de escape, permite, por sua vez, filtrar o ar a fim de reter partículas finas poluentes.

53      No que respeita, em seguida, aos conceitos de «acidente» e de «danos», que figuram no artigo 5.o, n.o 2, alínea a), do Regulamento n.o 715/2007, o Tribunal de Justiça declarou que, para poder ser justificado à luz desta disposição, um dispositivo manipulador que reduz a eficácia do sistema de controlo das emissões deve permitir proteger o motor de danos súbitos e excecionais [Acórdão de 17 de dezembro de 2020, CLCV e o. (Dispositivo manipulador em motor diesel), C‑693/18, EU:C:2020:1040, n.o 109)].

54      Assim, a acumulação de sujidade e o envelhecimento do motor não podem, em todo o caso, ser considerados um «acidente» ou um «dano» na aceção da referida disposição, uma vez que esses acontecimentos são, em princípio, previsíveis e inerentes ao funcionamento normal de um veículo [Acórdão de 17 de dezembro de 2020, CLCV e o. (Dispositivo manipulador em motor diesel), C‑693/18, EU:C:2020:1040, n.o 110].

55      Esta interpretação é corroborada pelo objetivo do Regulamento n.o 715/2007, que consiste, conforme salientado no n.o 43 do presente acórdão, em assegurar um nível elevado de proteção do ambiente e melhorar a qualidade do ar na União, o que implica uma redução efetiva das emissões de óxido de azoto (NOx) ao longo da vida normal dos veículos. Com efeito, a proibição prevista no artigo 5.o, n.o 2, alínea a), deste regulamento ficaria esvaziada da sua substância e privada de todo o efeito útil se os fabricantes fossem autorizados a equipar os veículos automóveis com tais dispositivos manipuladores com o único objetivo de proteger o motor contra a acumulação de sujidade e o envelhecimento [Acórdão de 17 de dezembro de 2020, CLCV e o. (Dispositivo manipulador em motor diesel), C‑693/18, EU:C:2020:1040, n.o 113].

56      Apenas os riscos imediatos de danos ou de acidente no motor que geram um perigo concreto durante a condução de um veículo são, assim, suscetíveis de justificar a utilização de um dispositivo manipulador, nos termos do artigo 5.o, n.o 2, alínea a), do Regulamento n.o 715/2007.

57      A interpretação do termo «dano», dada pelo Tribunal de Justiça no Acórdão de 17 de dezembro de 2020, CLCV e o. (Dispositivo manipulador em motor diesel) (C‑693/18, EU:C:2020:1040), não é posta em causa pelo argumento do Governo alemão e da Auto Krainer segundo o qual resulta das versões deste termo nas línguas inglesa («damage») e alemã («Beschädigung») que o referido termo não abrange apenas acontecimentos súbitos e imprevisíveis.

58      Com efeito, por um lado, como salientou, em substância, o advogado‑geral no n.o 115 das suas conclusões, embora, diferentemente da definição desse termo na língua francesa, as definições do mesmo nas línguas inglesa e alemã não impliquem necessariamente que o dano seja devido a um acontecimento «súbito», não infirmam a interpretação do termo «dano» adotada pelo Tribunal de Justiça. Por outro lado, importa recordar que a interpretação estrita adotada pelo Tribunal de Justiça se baseia nos motivos recordados nos n.os 50 e 55 do presente acórdão.

59      No entanto, o Governo alemão e a Auto Krainer alegam que o dispositivo manipulador em causa é justificado, uma vez que, em caso de temperaturas demasiado baixas ou demasiado elevadas, podem formar‑se depósitos, durante a recirculação dos gases de escape, suscetíveis de conduzir a um mau posicionamento da válvula EGR, designadamente, por exemplo, uma válvula que deixa de abrir ou de fechar corretamente, ou mesmo a um bloqueio total dessa válvula. Ora, uma válvula EGR danificada ou mal posicionada pode causar danos ao próprio motor e conduzir, nomeadamente, a perdas de potência do veículo. Além disso, é impossível prever e calcular o momento em que o limiar de falha da válvula EGR é atingido, dado que este limiar pode ser ultrapassado de forma súbita e imprevisível, mesmo que se efetue uma manutenção regular dessa válvula. As perdas de potência do veículo que ocorram de modo súbito e imprevisível afetariam o seu funcionamento seguro, por exemplo, aumentando consideravelmente o risco de acidente grave da circulação durante uma manobra de ultrapassagem.

60      Além disso, a Auto Krainer alega que a acumulação de sujidade nos componentes do sistema de recirculação dos gases de escape, ao provocar um mau funcionamento da válvula EGR que pode conduzir até ao seu bloqueio, é suscetível de causar a combustão do filtro de partículas e o incêndio do motor, ou mesmo, consequentemente, o incêndio de todo o veículo, o que comprometeria o funcionamento seguro do veículo.

61      A este respeito, há que salientar que resulta da própria redação do artigo 5.o, n.o 2, alínea a), do Regulamento n.o 715/2007 que, para ser abrangida pela exceção prevista nesta disposição, a necessidade de um dispositivo manipulador deve ser justificada não só em termos de proteção do motor contra danos ou acidentes mas também para o funcionamento seguro do veículo. Com efeito, como salientou o advogado‑geral no n.o 106 das suas conclusões, tendo em conta a utilização, na referida disposição, da conjunção «e», esta deve ser interpretada no sentido de que os requisitos que prevê são cumulativos.

62      Por conseguinte, e tendo em conta, conforme sublinhado no n.o 50 do presente acórdão, a interpretação estrita que deve ser dada a esta exceção, um dispositivo manipulador como o que está em causa no processo principal só pode ser justificado ao abrigo da referida exceção caso se demonstre que esse dispositivo responde estritamente à necessidade de evitar os riscos imediatos de danos ou de acidente no motor, ocasionados por um mau funcionamento de um componente do sistema de recirculação dos gases de escape, de uma gravidade tal, que gerem um perigo concreto durante a condução do veículo equipado com o referido dispositivo. No entanto, como sublinhou o advogado‑geral no n.o 126 das suas conclusões, essa verificação está abrangida, no litígio no processo principal, pela apreciação dos factos que incumbe exclusivamente ao órgão jurisdicional de reenvio.

63      Além disso, embora seja verdade que o artigo 5.o, n.o 2, alínea a), do Regulamento n.o 715/2007 não impõe formalmente outros requisitos para efeitos da aplicação da exceção prevista nesta disposição, não é menos verdade que um dispositivo manipulador que deva, em condições normais de circulação, funcionar durante a maior parte do ano para que o motor seja protegido contra danos ou um acidente e o funcionamento seguro do veículo seja assegurado seria manifestamente contrário ao objetivo prosseguido por este regulamento, que a referida disposição apenas permite derrogar em circunstâncias muito específicas, e conduziria a uma violação desproporcionada do próprio princípio da limitação das emissões de óxido de azoto (NOx) pelos veículos.

64      Tendo em conta a interpretação estrita que deve ser dada a este artigo 5.o, n.o 2, alínea a), tal dispositivo manipulador não pode, portanto, ser justificado ao abrigo desta disposição.

65      Admitir que um dispositivo manipulador como o descrito no n.o 63 do presente acórdão possa estar abrangido pela exceção prevista no artigo 5.o, n.o 2, alínea a), do Regulamento n.o 715/2007 levaria a tornar esta exceção aplicável durante a maior parte do ano nas condições reais de condução existentes no território da União, de modo que o princípio da proibição desses dispositivos manipuladores, estabelecido neste artigo 5.o, n.o 2, poderia, na prática, ser aplicado menos frequentemente do que a referida exceção.

66      Por outro lado, a Auto Krainer e o Governo alemão alegam que o conceito de «necessidade» de um dispositivo manipulador não exige a melhor técnica disponível e que há que ter em conta o estado da técnica à data da homologação CE para apreciar se essa necessidade se justifica em termos de proteção do motor e de funcionamento seguro do veículo na aceção do artigo 5.o, n.o 2, alínea a), do Regulamento n.o 715/2007. Ora, não é contestado que a utilização de um sistema EGR que funciona segundo uma janela térmica, numa medida diferente consoante a data de homologação, corresponde ao estado da técnica. Além disso, a interpretação do termo «necessidade», que figura nesta disposição, deve ter em conta a necessidade de ponderar os interesses em matéria de ambiente com os interesses económicos dos fabricantes.

67      A este respeito, importa sublinhar, como salientou o advogado‑geral no n.o 129 das suas conclusões, por um lado, que resulta do considerando 7 do Regulamento n.o 715/2007 que o legislador da União, quando determinou os valores‑limite da emissão de poluentes, teve em conta os interesses económicos dos fabricantes, nomeadamente os custos impostos às empresas pela necessidade de respeitarem esses valores. Assim, incumbe aos fabricantes adaptarem‑se e aplicarem dispositivos técnicos adequados para respeitar os referidos valores, sendo que este regulamento não impõe o recurso a uma tecnologia específica.

68      Por outro lado, conforme foi referido no n.o 55 do presente acórdão, o objetivo visado pelo Regulamento n.o 715/2007, que consiste em assegurar um nível elevado de proteção do ambiente e melhorar a qualidade do ar na União, implica uma redução efetiva das emissões de óxido de azoto (NOx) ao longo da vida normal dos veículos [Acórdão de 17 de dezembro de 2020, CLCV e o. (Dispositivo manipulador em motor diesel), C‑693/18, EU:C:2020:1040, n.o 113]. Ora, autorizar um dispositivo manipulador ao abrigo do artigo 5.o, n.o 2, alínea a), deste regulamento apenas porque, por exemplo, as despesas de investigação são elevadas, o dispositivo técnico é dispendioso ou as operações de manutenção do veículo são mais frequentes e mais caras para o utilizador poria em causa esse objetivo.

69      Nestas circunstâncias, tendo em conta o facto de que esta disposição deve, conforme recordado nos n.os 50 e 62 do presente acórdão, ser objeto de uma interpretação estrita, há que considerar que a «necessidade» de um dispositivo manipulador, na aceção da referida disposição, só existe quando, no momento da homologação CE desse dispositivo ou do veículo com ele equipado, nenhuma outra solução técnica permite evitar riscos imediatos de danos ou de acidente no motor geradores de um perigo concreto durante a condução do veículo.

70      Por conseguinte, há que responder à segunda questão que o artigo 5.o, n.o 2, alínea a), do Regulamento n.o 715/2007 deve ser interpretado no sentido de que um dispositivo manipulador, que apenas garante o respeito dos valores‑limite de emissão previstos por este regulamento dentro da janela térmica, não pode ser abrangido pela exceção à proibição de utilização desses dispositivos, prevista nesta disposição, pelo simples facto de esse dispositivo contribuir para proteger componentes, como a válvula EGR, o refrigerador EGR e o filtro de partículas diesel, a menos que se demonstre que o referido dispositivo responde estritamente à necessidade de evitar os riscos imediatos de danos ou de acidente no motor, ocasionados por um mau funcionamento de um desses componentes, de uma gravidade tal, que gerem um perigo concreto durante a condução do veículo equipado com o mesmo dispositivo. Em todo o caso, um dispositivo manipulador que deva, em condições normais de circulação, funcionar durante a maior parte do ano para que o motor seja protegido contra danos ou um acidente e o funcionamento seguro do veículo seja assegurado não pode ser abrangido pela exceção prevista no artigo 5.o, n.o 2, alínea a), do Regulamento n.o 715/2007.

 Quanto às despesas

71      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

1)      O artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento (CE) n.o 715/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2007, relativo à homologação dos veículos a motor no que respeita às emissões dos veículos ligeiros de passageiros e comerciais (Euro 5 e Euro 6) e ao acesso à informação relativa à reparação e manutenção de veículos, lido em conjugação com o artigo 5.o, n.o 1, deste regulamento, deve ser interpretado no sentido de que um dispositivo que só garante o respeito dos valoreslimite de emissão previstos no referido regulamento quando a temperatura exterior se situa entre 15 e 33 graus Celsius e a altitude de circulação é inferior a 1 000 metros constitui um «dispositivo manipulador» na aceção deste artigo 3.o, ponto 10.

2)      O artigo 5.o, n.o 2, alínea a), do Regulamento n.o 715/2007 deve ser interpretado no sentido de que um dispositivo manipulador, que apenas garante o respeito dos valoreslimite de emissão previstos por este regulamento quando a temperatura exterior se situa entre 15 e 33 graus Celsius e a altitude de circulação é inferior a 1 000 metros, não pode ser abrangido pela exceção à proibição de utilização desses dispositivos, prevista nesta disposição, pelo simples facto de esse dispositivo contribuir para proteger componentes, como a válvula para recirculação dos gases de escape, o refrigerador EGR e o filtro de partículas diesel, a menos que se demonstre que o referido dispositivo responde estritamente à necessidade de evitar os riscos imediatos de danos ou de acidente no motor, ocasionados por um mau funcionamento de um desses componentes, de uma gravidade tal, que gerem um perigo concreto durante a condução do veículo equipado com o mesmo dispositivo. Em todo o caso, um dispositivo manipulador que deva, em condições normais de circulação, funcionar durante a maior parte do ano para que o motor seja protegido contra danos ou um acidente e o funcionamento seguro do veículo seja assegurado não pode ser abrangido pela exceção prevista no artigo 5.o, n.o 2, alínea a), do Regulamento n.o 715/2007.

Assinaturas


*      Língua do processo: alemão.