Language of document : ECLI:EU:C:2017:395

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

HENRIK SAUGMANDSGAARD ØE

apresentadas em 18 de maio de 2017 (1)

PTProcesso C64/16

Associação Sindical dos Juízes Portugueses

contra

Tribunal de Contas

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Supremo Tribunal Administrativo (Portugal)]

«Reenvio prejudicial — Artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE — Tutela jurisdicional efetiva — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 47.o — Independência judicial — Legislação nacional que prevê a redução das remunerações na Administração Pública — Medidas de austeridade orçamental»






I.      Introdução

1.        O pedido de decisão prejudicial submetido pelo Supremo Tribunal Administrativo (Portugal) foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Associação Sindical dos Juízes Portugueses (a seguir «ASJP») ao Tribunal de Contas (Portugal), a propósito da diminuição dos vencimentos pagos aos membros deste último órgão jurisdicional que resultou de uma lei que reduziu temporariamente o montante das remunerações no setor público a fim de combater os efeitos da crise económica existente em Portugal.

2.        O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se essa legislação nacional é compatível com o princípio da independência judicial, conforme resulta, em seu entender, quer do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE (2) quer do artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») (3) e da jurisprudência do Tribunal de Justiça.

3.        Antes de expor as razões de fundo pelas quais considero que deve ser dada uma resposta negativa à questão assim colocada, examinarei os fundamentos relativos à inadmissibilidade do pedido de decisão prejudicial e à incompetência manifesta deste Tribunal que foram formulados no presente processo.

II.    Quadro jurídico

A.      Direito da União

4.        Os principais atos de direito da União destinados a corrigir o défice excessivo da República Portuguesa e a conceder‑lhe assistência financeira mencionados no presente processo são os seguintes:

–        a Decisão 2010/288/UE do Conselho, de 2 de dezembro de 2009, sobre a existência de um défice excessivo em Portugal (4);

–        o Regulamento (UE) n.o 407/2010 do Conselho, de 11 de maio de 2010, que cria um mecanismo europeu de estabilização financeira (5);

–        o acordo de ajustamento económico e financeiro, conhecido por «Memorando de Entendimento», assinado em 17 de maio de 2011 entre o Governo português, a Comissão Europeia, o Fundo Monetário Internacional (a seguir «FMI») e o Banco Central Europeu (a seguir «BCE») (6);

–        a Decisão de Execução 2011/344/UE do Conselho, de 30 de maio de 2011, relativa à concessão de assistência financeira da União a Portugal (7), alterada, nomeadamente, pela Decisão de Execução 2012/409/UE do Conselho, de 10 de julho de 2012 (8), e pela Decisão de Execução 2014/234/UE do Conselho, de 23 de abril de 2014 (9); e

–        a Recomendação do Conselho, de 18 de junho de 2013, com vista a pôr termo à situação de défice orçamental excessivo em Portugal (10).

B.      Direito português

1.      Lei n.o 75/2014

5.        A Lei n.o 75/2014, que estabelece os mecanismos das reduções remuneratórias temporárias e as condições da sua reversão, de 12 de setembro de 2014 (11) (a seguir «Lei n.o 75/2014»), tem por objeto, em conformidade com o seu artigo 1.o, n.o 1, determinar a aplicação com caráter transitório do mecanismo de redução remuneratória no setor público e definir os princípios a que deve obedecer a respetiva reversão.

6.        O artigo 2.o desta lei, sob a epígrafe «Redução remuneratória», tem a seguinte redação:

«1 — São reduzidas as remunerações totais ilíquidas mensais das pessoas a que se refere o n.o 9, de valor superior a € 1 500, quer estejam em exercício de funções naquela data, quer iniciem tal exercício, a qualquer título, depois dela, nos seguintes termos:

a)      3,5% sobre o valor total das remunerações superiores a €1.500 e inferiores a €2.000;

b)      3,5% sobre o valor de €2.000 acrescido de 16% sobre o valor da remuneração total que exceda os €2.000, perfazendo uma redução global que varia entre 3,5% e 10%, no caso das remunerações iguais ou superiores a €2.000 até €4.165;

c)      10% sobre o valor total das remunerações superiores a €4.165.

[…]

9 — A presente lei aplica‑se aos titulares dos cargos e demais pessoal de seguida identificados:

a)      O Presidente da República;

b)      O Presidente da Assembleia da República;

c)      O Primeiro‑Ministro;

d)      Os Deputados à Assembleia da República;

e)      Os membros do Governo;

f)      os juízes do Tribunal Constitucional, os juízes do Tribunal de Contas e o Procurador‑Geral da República, bem como os magistrados do Ministério Público e juízes da jurisdição administrativa e fiscal e dos julgados de paz;

g)      Os Representantes da República para as regiões autónomas;

h)      Os deputados às assembleias legislativas das regiões autónomas;

i)      Os membros dos governos regionais;

j)      Os eleitos locais;

k)      Os titulares dos demais órgãos constitucionais não referidos nas alíneas anteriores, bem como os membros dos órgãos dirigentes de entidades administrativas independentes, nomeadamente as que funcionam junto da Assembleia da República;

l)      Os membros e os trabalhadores dos gabinetes, dos órgãos de gestão e de gabinetes de apoio, dos titulares dos cargos e órgãos das alíneas anteriores, do Presidente e Vice‑Presidente do Conselho Superior da Magistratura, do Presidente e Vice‑Presidente do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, do Presidente e juízes do Tribunal Constitucional, do Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, do Presidente do Tribunal de Contas, do Provedor de Justiça e do Procurador‑Geral da República;

m)      Os militares das Forças Armadas e da Guarda Nacional Republicana (GNR), incluindo os juízes militares e os militares que integram a assessoria militar ao Ministério Público, bem como outras forças militarizadas;

n)      O pessoal dirigente dos serviços da Presidência da República e da Assembleia da República e de outros serviços de apoio a órgãos constitucionais, dos demais serviços e organismos da administração central, regional e local do Estado, bem como o pessoal em exercício de funções equiparadas para efeitos remuneratórios;

o)      Os gestores públicos, ou equiparados, os membros dos órgãos executivos, deliberativos, consultivos, de fiscalização ou quaisquer outros órgãos estatutários dos institutos públicos de regime comum e especial, de pessoas coletivas de direito público dotadas de independência decorrente da sua integração nas áreas de regulação, supervisão ou controlo, das empresas públicas de capital exclusiva ou maioritariamente público, das entidades públicas empresariais e das entidades que integram o setor empresarial regional e municipal, das fundações públicas e de quaisquer outras entidades públicas;

p)      Os trabalhadores que exercem funções públicas na Presidência da República, na Assembleia da República, em outros órgãos constitucionais, bem como os que exercem funções públicas, em qualquer modalidade de relação jurídica de emprego público, incluindo os trabalhadores em processo de requalificação e em licença extraordinária;

q)      Os trabalhadores dos institutos públicos de regime especial e de pessoas coletivas de direito público dotadas de independência decorrente da sua integração nas áreas de regulação, supervisão ou controlo, incluindo as entidades reguladoras independentes;

r)      Os trabalhadores das empresas públicas de capital exclusiva ou maioritariamente público, das entidades públicas empresariais e das entidades que integram o setor empresarial regional e local;

s)      Os trabalhadores e dirigentes das fundações públicas de direito público e das fundações públicas de direito privado e dos estabelecimentos públicos não abrangidos pelas alíneas anteriores;

t)      O pessoal nas situações de reserva, pré‑aposentação e disponibilidade, fora de efetividade de serviço, que beneficie de prestações pecuniárias indexadas aos vencimentos do pessoal no ativo.

[…]

15 — O regime fixado no presente artigo tem natureza imperativa, prevalecendo sobre quaisquer outras normas, especiais ou excecionais, em contrário e sobre instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho e contratos de trabalho, não podendo ser afastado ou modificado pelos mesmos.»

2.      Lei n.o 159A/2015

7.        A Lei n.o 159‑A/2015, sobre a extinção da redução remuneratória na Administração Pública, de 30 de dezembro de 2015 (12) (a seguir «Lei n.o 159‑A/2015»), eliminou, progressivamente a partir de 1 de janeiro de 2016, as medidas de redução resultantes da Lei n.o 75/2014.

8.        O artigo 2.o desta lei enuncia que «[a] redução remuneratória prevista na Lei n.o 75[/2014] é progressivamente eliminada ao longo do ano de 2016, com reversões trimestrais, nos seguintes termos:

a)      Reversão de 40% nas remunerações pagas a partir de janeiro de 2016;

b)      Reversão de 60% nas remunerações pagas a partir de abril de 2016;

c)      Reversão de 80% nas remunerações pagas a partir de 1 de julho de 2016;

d)      Eliminação completa da redução remuneratória a partir de 1 de outubro de 2016».

III. Litígio no processo principal, questão prejudicial e tramitação do processo no Tribunal de Justiça

9.        A ação administrativa especial intentada pela ASJP, em representação de alguns dos seus associados que são juízes do Tribunal de Contas, visa a anulação dos atos administrativos adotados em aplicação do artigo 2.o da Lei n.o 75/2014, que instituiu uma redução transitória das remunerações pagas às pessoas no exercício de funções na Administração Pública portuguesa enumeradas nesse artigo, que inclui os magistrados (13). Os juízes representados por esta associação pedem, além disso, a restituição das diferenças remuneratórias que lhes foram retidas desde outubro de 2014, acrescidas de juros moratórios à taxa legal e a declaração de que têm direito a auferir o seu vencimento sem essa redução.

10.      Em apoio da sua ação, a ASJP alega que as medidas de redução remuneratória controvertidas violam o «princípio da independência dos juízes», que é enunciado no artigo 203.o da Constituição da República Portuguesa (14), e alegadamente consagrado quer no artigo 19.o, n.o 1, TUE quer no artigo 47.o da Carta.

11.      Na sua decisão de reenvio, o Supremo Tribunal Administrativo afirma que, uma vez que as medidas de limitação das despesas, concretizadas através da redução dos vencimentos em causa no processo principal, se inscrevem no contexto da correção do défice excessivo existente em Portugal — disciplinado e monitorado pelas instituições da União Europeia — seguido de assistência financeira — concedida e regulada por atos jurídicos da União —, é difícil recusar que estas medidas foram tomadas no quadro do direito da União ou têm, no mínimo, uma origem europeia.

12.      Em seguida, refere que o poder discricionário do Estado português para concretizar as orientações de política orçamental que acordou com as instituições da União não o desvincula, contudo, da sua obrigação de respeitar, nos termos do artigo 51.o, n.o 1, da Carta, os princípios gerais de direito da União, entre os quais o princípio da independência judicial.

13.      A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que a tutela jurisdicional efetiva dos direitos decorrentes da ordem jurídica da União é assegurada, em primeira linha, pelos tribunais nacionais, segundo o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, e que estes a devem exercer com a independência e a imparcialidade a que os cidadãos da União têm direito nos termos do artigo 47.o da Carta. Segundo ele, tudo indica que a independência dos órgãos jurisdicionais se assegura também mediante a previsão de garantias sobre o estatuto dos seus membros, incluindo também no plano do tratamento económico, razão pela qual se questiona a redução unilateral e continuada da remuneração dos representados pela autora no processo principal.

14.      Assim, por decisão de 7 de janeiro de 2016, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 5 de fevereiro de 2016, o Supremo Tribunal Administrativo decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Diante dos imperativos de eliminação do défice orçamental excessivo, e assistência financeira regulada por disposições [do direito da União], o princípio da independência judicial, tal como decorre do artigo 19.o, n.o l, [segundo] parágrafo, do TUE, do artigo 47.o da [Carta], e da jurisprudência do TJUE, deve ser interpretado no sentido de que se opõe às medidas de redução remuneratória a que os magistrados estão sujeitos em Portugal, por imposição unilateral d[e] outros poderes/órgãos de soberania e de forma continuada, tal como resulta do artigo 2.o da Lei n.o 75[/2014]?»

15.      Foram apresentadas observações escritas pela ASJP, pelo Governo português e pela Comissão. Na audiência de 13 de fevereiro de 2017, estiveram representados o Governo português e a Comissão.

IV.    Análise

16.      Antes de tomar posição quanto à substância do pedido de decisão prejudicial, saliento que foram invocadas duas exceções processuais no presente processo, uma relativa à inadmissibilidade deste pedido, a outra relativa à incompetência do Tribunal de Justiça. No que respeita à ordem segundo a qual estas exceções serão evocadas, observo que a competência do Tribunal de Justiça deve, em princípio, ser apreciada em primeiro lugar. No entanto, nas presentes conclusões, parece‑me oportuno analisar em primeiro lugar a admissibilidade, dado que esta suscita aqui questões menos complexas que o exame da competência do Tribunal de Justiça e dado que este exame está especialmente ligado às disposições cuja interpretação é solicitada, passando‑se, assim, à análise do mérito imediatamente a seguir.

A.      Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

17.      O Governo português e a Comissão invocaram dois tipos de fundamentos suscetíveis de afetar a admissibilidade do presente pedido de decisão prejudicial. O primeiro diz respeito à fundamentação imprecisa da decisão de reenvio, enquanto o segundo diz respeito ao facto de as medidas nacionais contestadas no litígio no processo principal já estarem revogadas no momento em que o Tribunal de Justiça foi chamado a pronunciar‑se.

1.      Quanto às lacunas apresentadas pela decisão de reenvio

18.      Nas suas observações escritas e orais, a Comissão alega, a título preliminar, que a decisão de reenvio é deficiente, nomeadamente por não especificar qual a jurisprudência do Tribunal de Justiça relevante para interpretar as disposições do direito da União visadas na questão prejudicial nem as razões que levaram a escolher as referidas disposições (15), e que, portanto, o Tribunal de Justiça deveria declarar‑se incompetente para responder a esta questão.

19.      Considero, no entanto, que os fundamentos assim invocados a respeito do conteúdo da decisão de reenvio são suscetíveis de afetar mais a admissibilidade do pedido de decisão prejudicial do que a própria competência do Tribunal de Justiça (16).

20.      Como sublinha a Comissão, é verdade que é essencial que o órgão jurisdicional de reenvio formule o seu pedido de modo claro e preciso, uma vez que este constitui o único ato que serve de fundamento ao processo no Tribunal de Justiça, quer para este Tribunal quer para os participantes nesse processo (17). Os requisitos relativos ao conteúdo de um pedido de decisão prejudicial figuram expressamente no artigo 94.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, presumindo‑se que são do conhecimento do órgão jurisdicional de reenvio, no quadro da cooperação instituída no artigo 267.o TFUE, que os deve respeitar escrupulosamente. Em particular, é indispensável que os juízes nacionais exponham, na própria decisão de reenvio, o quadro jurídico que envolve o litígio no processo principal e que expliquem não apenas por que razões escolheram as disposições do direito da União cuja interpretação é pedida mas também que nexo estabelecem entre essas disposições e a legislação nacional aplicável ao referido litígio (18).

21.      Ora, no presente processo, a fundamentação da decisão de reenvio é particularmente breve, nomeadamente quanto a dois aspetos principais, de modo que podem suscitar‑se dúvidas quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial ali contido.

22.      Em primeiro lugar, quanto ao nexo entre as medidas nacionais controvertidas e as disposições cuja interpretação é pedida nos termos da questão prejudicial — a saber, o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE e o artigo 47.o da Carta —, o órgão jurisdicional de reenvio não é minimamente explícito, uma vez que indica apenas que, segundo ele, destas disposições decorre um princípio geral de independência dos juízes que as referidas medidas podem ter violado (19), sem indicações precisas a este respeito.

23.      Em segundo lugar, a questão prejudicial menciona a «jurisprudência do Tribunal de Justiça» da qual decorre também esse princípio da independência judicial, mas os fundamentos da decisão prejudicial não mencionam nenhuma decisão deste Tribunal nesse sentido. O órgão jurisdicional de reenvio evoca apenas a existência de «muitos acórdãos» proferidos pelo Tribunal de Justiça relativamente ao conceito de «órgão jurisdicional» na aceção do artigo 267.o TFUE, os quais teriam em conta a independência do organismo que formulou a questão prejudicial, sem citar, contudo, qualquer um dos acórdãos que, em seu entender, são pertinentes. Na falta de indicações apropriadas, não há, em minha opinião, que pronunciar‑se sobre este aspeto da questão submetida ao Tribunal de Justiça.

24.      Não obstante as lacunas da decisão de reenvio acima salientadas, parece‑me que, atendendo a todos os elementos fornecidos por esta decisão e juntos aos autos, o Tribunal de Justiça está, contudo, suficientemente esclarecido para se poder pronunciar sobre a eventual interpretação do artigo 19.o TUE e do artigo 47.o da Carta e responder, assim, de forma útil à questão submetida (20).

2.      Quanto à revogação da regulamentação controvertida antes de o Tribunal de Justiça ter sido chamado a pronunciarse

25.      Nas suas observações escritas, o Governo português sustentou que o pedido de decisão prejudicial é inadmissível por já não ter objeto quando o Tribunal de Justiça foi chamado a pronunciar‑se, devido às alterações legislativas verificadas na ordem jurídica interna portuguesa que conduziram à reposição gradual e integral, durante o ano de 2016, dos direitos remuneratórios em causa no processo principal. Daqui o Governo português deduziu que o Tribunal de Justiça já não tinha que se pronunciar sobre a questão submetida, que se tornou hipotética (21).

26.      Na audiência, este governo confirmou que, por força da Lei n.o 159‑A/2015, a redução remuneratória na Administração Pública resultante da Lei n.o 75/2014 foi integralmente eliminada, de forma progressiva, entre 1 de janeiro e 1 de outubro de 2016 (22), mas sem efeitos retroativos. Daqui resulta que a perda invocada pelos representados pela autora no processo principal, subsequente à diminuição da sua remuneração a partir de outubro de 2014, persistiu no passado e até 1 de outubro de 2016, data em que foi alcançada a restauração completa do nível normal das remunerações das pessoas no exercício de funções no setor público que foram abrangidas pela referida redução.

27.      No entanto, o Governo português defendeu que a questão prejudicial tinha por objeto a violação da independência judicial que a Lei n.o 75/2014 alegadamente provocou, problema eventual esse já resolvido na data da submissão da questão ao Tribunal de Justiça, em 5 de fevereiro de 2016, em virtude da abolição dos efeitos deste texto pela Lei n.o 159‑A/2015, adotada em 30 de dezembro de 2015 e que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2016. Mais acrescentou que as consequências da Lei n.o 75/2014 anteriores à sua revogação que são invocadas pela ASJP têm apenas natureza patrimonial, problemática esta que não se insere, em seu entender, no objeto do pedido de decisão prejudicial.

28.      A este respeito, recordo que as questões relativas à interpretação do direito da União submetidas pelo juiz nacional no quadro regulamentar e factual que este define sob sua responsabilidade, e cuja exatidão não compete ao Tribunal de Justiça verificar, beneficiam de uma presunção de pertinência. A recusa do Tribunal de Justiça de decidir sobre uma questão submetida por um órgão jurisdicional nacional só é possível quando é manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem qualquer relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema é hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispõe dos elementos de facto e de direito necessários para responder utilmente às questões que lhe são colocadas (23).

29.      De acordo com jurisprudência constante, resulta dos termos e da sistemática do artigo 267.o TFUE que o processo de reenvio prejudicial pressupõe que um litígio esteja efetivamente pendente nos órgãos jurisdicionais nacionais, no âmbito do qual eles são chamados a proferir uma decisão suscetível de ter em consideração o acórdão prejudicial (24). Assim, quando o litígio no processo principal já tenha ficado sem objeto na data em que o órgão jurisdicional de reenvio recorre ao Tribunal de Justiça, este declara inadmissível o pedido de decisão prejudicial (25), dado que a declaração de não conhecimento do mérito está, em princípio, reservada aos casos em que o incidente ou o evento pertinente ocorreu durante a tramitação do processo no Tribunal de Justiça (26).

30.      Em particular, o Tribunal de Justiça recusa pronunciar‑se sobre um pedido de decisão prejudicial quando as disposições nacionais inicialmente aplicáveis ao litígio no processo principal foram revogadas ou afastadas em razão da sua inconstitucionalidade (27). Todavia, o facto de estar iminente uma alteração da legislação nacional em causa foi considerado irrelevante para efeitos de admissibilidade do pedido de decisão prejudicial quando resultava das informações que figuravam naquele pedido que uma resposta do Tribunal de Justiça às questões submetidas era determinante para o desfecho do litígio no processo principal (28).

31.      No presente processo, considero que não resulta manifestamente dos elementos submetidos ao Tribunal de Justiça que a interpretação solicitada do direito da União não tenha qualquer relação com o objeto do litígio no processo principal ou que o problema suscitado se tenha tornado hipotético.

32.      Com efeito, contrariamente ao que alega o Governo português, o litígio submetido ao órgão jurisdicional de reenvio não é relativo à independência judicial enquanto tal, sendo tal princípio apenas invocado a título de fundamento jurídico, com vista a obter a anulação dos atos administrativos alegadamente ilegais, em virtude dos quais as remunerações das pessoas representadas pela ASJP foram reduzidas, bem como a restituição das quantias remuneratórias indevidamente retidas em aplicação da Lei n.o 75/2014.

33.      Além disso, uma vez que a Lei n.o 159‑A/2015, que a alterou, não cessou integralmente as reduções contestadas, nem para o passado nem para o futuro imediato, na data em que o pedido de decisão prejudicial foi apresentado (29), nesse momento parecia existir ainda uma obrigação de decidir quanto ao objeto dessa ação por parte do órgão jurisdicional de reenvio, que considera possível que a legislação nacional em causa tenha violado o direito da União e, por conseguinte, que exista uma necessidade de responder à questão prejudicial por parte do Tribunal de Justiça.

34.      À luz de todas estas considerações, creio que o presente pedido de decisão prejudicial é admissível.

B.      Quanto à competência do Tribunal de Justiça

35.      Em apoio da sua ação, no processo principal, a autora no processo principal invoca a ilegalidade dos atos administrativos impugnados com fundamento no facto de a legislação nacional que estes aplicam, a saber, a Lei n.o 75/2014, não ser conforme ao direito da União por ser contrária ao «princípio da independência dos juízes», conforme decorre, segundo esta parte, do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE e do artigo 47.o da Carta. O órgão jurisdicional de reenvio retoma esta abordagem conjunta das referidas disposições, não apenas na redação da questão prejudicial mas também na fundamentação em que esta se baseia.

36.      Para apreciar as exceções de incompetência invocadas pelo Governo português e pela Comissão, importa, em meu entender, proceder a uma análise do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE que seja autónoma da análise do artigo 47.o da Carta, uma vez que os critérios que condicionam a aplicabilidade destas disposições, e, consequentemente, a possibilidade de o Tribunal de Justiça proceder à sua interpretação, são, a meu ver, distintos.

1.      Quanto ao artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE

37.      Nas suas observações escritas e orais, o Governo português e a Comissão não indicaram expressamente as razões pelas quais o Tribunal de Justiça poderia não ser competente, em seu entender, para decidir sobre a interpretação do artigo 19.o TUE, lido isoladamente. Com efeito, desenvolveram uma longa argumentação no sentido de a legislação nacional em causa no processo principal não constituir uma medida de aplicação do direito da União na aceção do artigo 51.o da Carta, da qual resultaria não ser necessário interpretar o artigo 47.o da Carta, e parece‑me que propuseram que se seguisse um raciocínio semelhante no que diz respeito ao artigo 19.o TUE (30).

38.      Porém, considero que a este respeito não é possível estender este raciocínio, ou sequer recorrer à analogia, tendo em conta a redação específica do artigo 19.o TUE, que difere do enunciado do artigo 51.o, n.o 1, da Carta, ao qual voltarei a referir‑me mais adiante (31), mas quanto ao qual recordo desde já que limita o âmbito de aplicação da Carta às medidas tomadas pelos Estados‑Membros para efeitos de aplicação das disposições do direito da União.

39.      Sem de forma alguma prejudicar a apreciação do mérito que levará a definir o teor e o alcance do artigo 19.o TUE (32), há, nesta fase, que determinar se o Tribunal de Justiça é competente, no caso em apreço, para interpretar o referido artigo, em razão da eventual aplicabilidade, num contexto como o do processo principal, das suas disposições e, em especial, do seu n.o 1, segundo parágrafo, que está em causa na questão prejudicial.

40.      Nos termos do referido segundo parágrafo, «[o]s Estados‑Membros estabelecem as vias de recurso necessárias para assegurar uma tutela jurisdicional efetivanos domínios abrangidos pelo direito da União» (33). É este último elemento, específico desta disposição, que me parece determinante para apreciar se o Tribunal de Justiça tem a possibilidade de se pronunciar sobre a sua interpretação no presente processo.

41.      A tutela jurisdicional efetiva, que implica o acesso a vias de recurso adequadas, de que os cidadãos devem poder beneficiar nos termos do referido parágrafo, é, em meu entender, exigida aos Estados‑Membros quando os juízes nacionais são suscetíveis de exercer a sua atividade judicial em domínios abrangidos pelo direito da União, ou seja, na qualidade de juízes europeus. Ora, considero que pode ser esse o caso dos juízes visados na legislação em causa no processo principal, na medida em que os mesmos podem ser chamados a decidir litígios abrangidos pelo âmbito de aplicação do direito da União, litígios relativamente aos quais a possibilidade de utilizar tais vias de recurso deve ser garantida.

42.      Em minha opinião, esta conclusão é suficiente para considerar que o Tribunal de Justiça é competente, no presente processo, para interpretar o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE. A demonstração dessa competência deve agora ser feita no que diz respeito à interpretação solicitada do artigo 47.o da Carta, dado que os critérios de aplicação deste último instrumento não são enunciados de forma idêntica aos previstos para o artigo 19.o, ainda que o resultado concreto a que uns e outros conduzem possa ser idêntico.

2.      Quanto ao artigo 47.o da Carta

43.      É jurisprudência constante que os direitos fundamentais garantidos pela ordem jurídica da União, entre os quais o «direito à ação e a um tribunal imparcial» consagrado no artigo 47.o da Carta, são aplicáveis em todas as situações reguladas pelo direito da União, mas não fora dessas situações (34). Assim, o artigo 51.o, n.o 1, da Carta prevê que as suas disposições têm por destinatários os Estados‑Membros apenas «quando apliquem o direito da União», de acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa a este conceito (35). O artigo 6.o, n.o 1, TUE, que atribui um valor vinculativo à Carta, assim como o artigo 51.o, n.o 2, desta última, precisa que de forma alguma o disposto na Carta pode alargar as competências da União, tal como definidas nos Tratados. Por conseguinte, quando uma situação jurídica não está abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União, o Tribunal de Justiça não tem competência para dela conhecer e as disposições da Carta eventualmente invocadas não podem, só por si, fundamentar essa competência (36).

44.      No presente processo, tanto o Governo português como a Comissão sustentam que as condições que permitem concluir que a adoção e aplicação pela República Portuguesa das medidas previstas no artigo 2.o da Lei n.o 75/2014 constituem uma situação de aplicação do direito da União, na aceção do artigo 51.o da Carta, não estão reunidas e que o Tribunal de Justiça é, portanto, manifestamente incompetente para interpretar o artigo 47.o da Carta.

45.      Recordo que o Tribunal de Justiça já se declarou manifestamente incompetente para apreciar o mérito em precedentes pedidos de decisão prejudicial apresentados igualmente por órgãos jurisdicionais portugueses, com o fundamento de que a decisão de reenvio não continha nenhum elemento concreto que permitisse considerar que as medidas nacionais em causa nesses processos, análogas às que são aplicáveis no litígio no processo principal (37), se destinassem a aplicar o direito da União na aceção do referido artigo 51.o (38). No entanto, ao contrário desses processos, a incompetência do Tribunal de Justiça que é invocada não aparece aqui de forma manifesta, dado que o órgão jurisdicional de reenvio forneceu indicações mais explícitas, ainda que relativamente sumárias, sobre a existência dessa aplicação no caso em apreço.

46.      Com efeito, o órgão jurisdicional de reenvio expõe que as medidas de redução remuneratória, como as previstas no artigo 2.o da Lei n.o 75/2014, foram justificadas por imperativos de consolidação orçamental, e em seguida apresenta a lista dos atos de direito da União relativos à situação de défice excessivo do Estado português e à assistência financeira de que este beneficiou (39). Contudo, não é fácil identificar os motivos pelos quais esse órgão jurisdicional considera que existe um nexo direto entre as medidas em causa no processo principal e esta ou aquela disposição do direito da União, já que fornece poucas informações a este respeito (40).

47.      Assim, a decisão de reenvio não precisa qual o quadro normativo, à luz das disposições de direito da União então aplicáveis, no qual as medidas nacionais controvertidas se inscreveram. Em particular, não faz claramente a distinção, sublinhada na audiência pelo Governo português, entre, por um lado, a fase em que o Estado português estava sujeito às regras do direito da União relativas à correção do défice excessivo e, por outro, a fase em que o regime aplicável era o regime das obrigações resultante da concessão de assistência financeira pela União.

48.      Ora, como salientou o advogado‑geral Y. Bot num processo igualmente relativo a medidas de austeridade orçamental adotadas por um Estado‑Membro no contexto dos compromissos assumidos para com a Comunidade Europeia, a fim de determinar se as disposições da Carta são aplicáveis à luz do seu artigo 51.o (41), há que ter em conta não apenas o teor das disposições nacionais visadas mas também o conteúdo dos atos de direito da União dos quais constam os referidos compromissos. A este respeito, o advogado‑geral acrescentou acertadamente, em meu entender, que pouco importa que esses atos deixem uma margem de manobra ao Estado‑Membro em causa para decidir as melhores medidas para respeitar os referidos compromissos, uma vez que as disposições pertinentes visam objetivos suficientemente pormenorizados e precisos para constituir uma regulamentação específica do direito da União na matéria (42), contrariamente a simples recomendações adotadas pelo Conselho, com base no artigo 126.o TFUE, dirigidas aos Estados‑Membros cujo défice público seja considerado excessivo.

49.      No presente processo, para caracterizar o nexo invocado entre a Lei n.o 75/2014 e o direito da União, o órgão jurisdicional de reenvio não retira elementos do teor da referida lei. Esta última não faz, efetivamente, referência a nenhum ato do direito da União, contrariamente à exposição de motivos da proposta de lei que está na sua origem, na qual se estabelece um nexo com as obrigações que resultam do direito da União em matéria orçamental (43).

50.      Em contrapartida, esse órgão jurisdicional, à semelhança da ASJP, baseia‑se, nomeadamente, no acordo de ajustamento económico e financeiro celebrado pelo Estado português em maio de 2011 (44) e, em último lugar, na Decisão de Execução 2012/409 do Conselho, de 10 de julho de 2012, relativa à concessão de assistência financeira da União a Portugal, e na Recomendação do Conselho, de 18 de junho de 2013, com vista a pôr termo à situação de défice orçamental excessivo em Portugal.

51.      A este propósito, recordo que uma recomendação adotada pelas instituições da União é um ato desprovido, por natureza, de caráter vinculativo, contrariamente à decisão (45). Além disso, à semelhança do Governo português (46) e da Comissão, considero que a recomendação acima mencionada, que se fundamenta em particular no artigo 126.o, n.o 7, TFUE, não fixou objetivos suficientemente concretos e precisos para se considerar que o Estado português aplicou, ao abrigo da mesma, exigências do direito da União, na aceção do artigo 51.o da Carta.

52.      No que respeita à Decisão de Execução 2012/409, evocada pelo órgão jurisdicional de reenvio, saliento que esta foi substituída pela Decisão de Execução 2014/234 do Conselho, de 23 de abril de 2014, que era portanto aplicável ratione temporis quando foram tomadas as medidas controvertidas, decorrentes da Lei n.o 75/2014, adotada em 12 de setembro de 2014. O artigo 1.o desta última decisão alterou a Decisão de Execução 2011/344, que tinha inicialmente previsto as condições de concessão de assistência financeira pela União à República Portuguesa (47), no prolongamento do Regulamento n.o 407/2010. Ora, resulta do n.o 2 do referido artigo que, «[d]e acordo com as especificações do Memorando de Entendimento», o Estado português devia adotar medidas de caráter específico e não apenas de ordem geral (48), que consistiam, designadamente, em que, no âmbito da «estratégia de consolidação para 2015», «o Governo [crie] uma tabela salarial única em 2014, com vista à sua aplicação em 2015, e à racionalização e coerência da política de remunerações em todas as carreiras do setor público» (49). É certo que a margem de apreciação de que este Estado‑Membro dispunha, no exercício dos seus poderes em matéria orçamental, para determinar as medidas exatas de correção económica que considerava mais adequadas para cumprir os objetivos precisos assim definidos, não põe em causa esta análise (50).

53.      Ainda que se possa nutrir sérias dúvidas devido à parca clarificação fornecida a este respeito pela decisão de reenvio, tendo a considerar que a adoção das medidas de redução remuneratória no setor público previstas no artigo 2.o da Lei n.o 75/2014, em causa no processo principal, constitui uma aplicação de disposições do direito da União, na aceção do artigo 51.o da Carta, e que o Tribunal de Justiça tem, por conseguinte, competência para responder ao pedido de decisão prejudicial também na parte relativa ao artigo 47.o da Carta.

C.      Quanto ao mérito

1.      Quanto ao objeto da questão prejudicial

54.      Em apoio das suas pretensões, a ASJP alega que o Estatuto Jurídico dos Magistrados Judiciais não deve ser confundido com a regulamentação estatutária relativa aos funcionários públicos em geral, cuja situação poderia ser precária. Referindo‑se, entre outros (51), à Carta Europeia sobre o Estatuto dos Juízes (52) adotada sob a égide do Conselho da Europa, a ASJP afirma que a estabilidade da remuneração dos magistrados judiciais, assim como a sua fixação num nível adequado para os proteger de ingerências com vista a influenciar as suas decisões, permite assegurar o respeito, nomeadamente, dos princípios da independência e da imparcialidade, que constituem garantias do exercício da atividade jurisdicional. Alega que o princípio da independência dos juízes, especialmente no plano financeiro, que resulta do artigo 19.o TUE e do artigo 47.o da Carta, se opõe a atos de redução remuneratória adotados unilateralmente pelos poderes executivo e legislativo de um Estado‑Membro, como os que estão em causa no processo principal.

55.      Inscrevendo‑se na mesma linha de pensamento, a decisão de reenvio convida o Tribunal de Justiça, em substância, a determinar se existe um princípio geral do direito da União segundo o qual as autoridades dos Estados‑Membros estão obrigadas a respeitar a independência dos juízes nacionais, e, em especial — face às circunstâncias do litígio no processo principal —, a manter a remuneração destes últimos num nível constante e suficiente para que possam exercer as suas funções livremente.

56.      O órgão jurisdicional de reenvio considera que esse princípio e essas consequências decorrem tanto do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE como do artigo 47.o da Carta (53), disposições estas que o Tribunal de Justiça deve, em meu entender, interpretar separadamente (54), caso se considere competente para decidir a estes dois títulos (55). No que me diz respeito, à semelhança do Governo português e da Comissão, não partilho, pelos motivos expostos abaixo, do entendimento expresso pelo órgão jurisdicional de reenvio quanto ao mérito.

2.      Quanto à interpretação do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE

57.      Em apoio da tese de que o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE enuncia um princípio geral do direito da União que consagra a independência judicial e se opõe às medidas nacionais em causa no processo principal, o órgão jurisdicional de reenvio e a ASJP invocam que os magistrados judiciais dos Estados‑Membros são também juízes organicamente europeus, dado que asseguram, em primeira linha, a tutela jurisdicional efetiva dos direitos que decorrem da ordem jurídica da União, nomeadamente, por força desta disposição.

58.      É verdade que o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE prevê que «[o]s Estados‑Membros estabelecem as vias de recurso necessárias para assegurar uma tutela jurisdicional efetiva nos domínios abrangidos pelo direito da União» (56) e que os magistrados dos órgãos jurisdicionais nacionais responsáveis por esses recursos contribuem para a referida tutela. No entanto, a interpretação do teor desta disposição exige que a mesma seja analisada à luz do contexto no qual se inscreve.

59.      A este título, realço que o artigo 19.o TUE se integra no título III deste Tratado, sob a epígrafe «Disposições relativas às instituições», que contém várias normas gerais que fixam as condições em que cada uma das instituições da União — e, nomeadamente, o Tribunal de Justiça da União Europeia, previsto no citado artigo 19.o — deve atuar no âmbito das atribuições que lhe são conferidas.

60.      Além do mais, à luz das disposições que constam dos n.os 1 a 3 do artigo 19.o TFUE, no seu conjunto, parece‑me que o conceito de «tutela jurisdicional efetiva» acima mencionado é concebido em relação estreita com o exercício das suas funções por parte do Tribunal de Justiça da União Europeia, cuja composição e atribuições são objeto destes três números. Em especial, o primeiro parágrafo do n.o 1 confere a esta instituição, que compreende quer o Tribunal de Justiça quer o Tribunal Geral, a missão de garantir o respeito do direito na interpretação e aplicação dos Tratados (57), esclarecendo‑se que a «regra de competência geral» enunciada neste parágrafo dá lugar a derrogações (58).

61.      Resulta da jurisprudência que o segundo parágrafo deste n.o 1 se destina a reafirmar a obrigação que incumbe aos Estados‑Membros de «preverem um sistema de meios processuais e de procedimentos que permita assegurar o respeito do direito fundamental de proteção jurisdicional efetiva» (59). Assim, o referido segundo parágrafo não visa diretamente os juízes nacionais, mas tende a garantir que existam possibilidades de recurso nos Estados‑Membros para que cada cidadão tenha a faculdade de beneficiar dessa proteção em todos os domínios em que o direito da União é aplicável. Esta exigência está ligada ao facto de a fiscalização jurisdicional do respeito da ordem jurídica da União Europeia ser assegurada não apenas pelos seus órgãos jurisdicionais mas também em cooperação com os órgãos jurisdicionais nacionais, em conformidade com os dois parágrafos desse número (60).

62.      O Tribunal de Justiça precisou que essa obrigação resulta igualmente do artigo 47.o da Carta, no que diz respeito às medidas adotadas pelos Estados‑Membros quando aplicam o direito da União na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta (61). Com efeito, o primeiro parágrafo deste artigo 47.o prevê expressamente o direito a uma ação perante um tribunal, nos termos ali previstos, a toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados. Sem me querer pronunciar neste momento sobre a interpretação deste último artigo e sobre as eventuais implicações à luz dos elementos do litígio no processo principal (62), sublinho que a finalidade e o teor do referido artigo 47.o são diferentes da finalidade e do teor do artigo 19.o TUE.

63.      Quanto a este último artigo, o Tribunal de Justiça declarou que compete à ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro designar — no respeito das exigências que decorrem, nomeadamente, do segundo parágrafo do referido artigo 19.o — os órgãos jurisdicionais competentes e regular as modalidades processuais dos recursos destinados a assegurar a salvaguarda dos direitos que os cidadãos baseiam no direito da União (63). Parece‑me que o objeto deste parágrafo, que prevê a obrigação de os Estados‑Membros estabelecerem as vias de recurso necessárias que permitam proteger os referidos direitos de forma efetiva, reveste antes de mais um caráter processual.

64.      Perante estes elementos, considero, à semelhança do Governo português (64), que o conceito de «tutela jurisdicional efetiva» na aceção do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE não se confunde com o «princípio da independência judicial» mencionado na questão prejudicial como decorrente, alegadamente, desta disposição (65).

65.      Por outro lado, a diferença existente entre o direito a uma tutela jurisdicional efetiva, que deve ser facultado aos cidadãos dos Estados‑Membros através de vias de recurso adequadas, e o direito de ser julgado por magistrados judiciais em total independência, que também é reconhecido no interesse desses cidadãos, parece‑me patente à luz quer da epígrafe quer da redação do artigo 47.o da Carta, que dissociam estes dois direitos (66). A distinção está também claramente materializada na Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (67), dado que o «[d]ireito a um recurso efetivo» perante uma instância nacional está previsto no seu artigo 13.o, ao passo que o «[d]ireito a um processo equitativo», que inclui, em especial, o direito de «qualquer pessoa […] a que a sua causa seja examinada […] por um tribunal independente», figura no seu artigo 6.o (68), ainda que, evidentemente, existam ligações materiais entre estes dois artigos (69). Retomarei estes elementos a propósito da interpretação do artigo 47.o da Carta (70).

66.      Ora, a obrigação de os Estados‑Membros preverem um sistema de «vias de recurso» enunciado no artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE só está, quanto a mim, ligado ao direito a uma «tutela jurisdicional efetiva», conforme resulta dos próprios termos desta disposição, e não ao direito a um processo equitativo perante uma instância independente, cujo conteúdo é substancialmente diferente.

67.      Por conseguinte, sou da opinião de que o referido segundo parágrafo deve ser interpretado no sentido de que não consagra um princípio geral do direito da União segundo o qual a independência dos magistrados judiciais de todos os órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros deve ser garantida.

68.      A título subsidiário, caso o Tribunal de Justiça declare que o princípio da independência judicial decorre diretamente da exigência de uma tutela jurisdicional efetiva que figura no artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, como afirma o órgão jurisdicional de reenvio, considero que, em todo o caso, nem esta disposição nem este princípio (71) podem ser interpretados no sentido de que se opõem a medidas nacionais de redução remuneratória como as que são impugnadas pela autora no processo principal, dado que não visam de todo especificamente os juízes, antes tendo um alcance geral (72), na medida em que se aplicam a um vasto grupo de pessoas titulares de cargos na função pública (73).

3.      Quanto à interpretação do artigo 47.o da Carta

69.      O órgão jurisdicional de reenvio, tal como a ASJP, invoca que, por força do artigo 47.o da Carta, os órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros devem instituir com independência e imparcialidade a tutela jurisdicional efetiva dos direitos concedidos aos cidadãos pela ordem jurídica da União e que a redução unilateral das remunerações em causa no processo principal pode afetar a independência dos juízes em causa.

70.      A este respeito, recordo, como expôs recentemente o advogado‑geral M. Wathelet (74), que a epígrafe (75) e a redação do artigo 47.o da Carta indicam que esta última reconhece, por um lado, o direito à ação, que também está enunciado no artigo 13.o da CEDH, e, por outro, o direito a um processo equitativo que inclui o direito a um tribunal independente e imparcial consagrado no artigo 6.o, n.o 1, da CEDH.

71.      Tendo o conteúdo deste artigo 47.o sido diretamente inspirado por estas disposições da CEDH (76), há, nos termos do artigo 52.o, n.o 3, da Carta, que interpretá‑lo não apenas tendo em conta as Anotações relativas a esta última mas também à luz da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (a seguir «TEDH») (77), de modo a que os direitos garantidos pelo referido artigo 47.o tenham em princípio o mesmo sentido e o mesmo alcance que os conferidos pela CEDH, sem que essa regra constitua, contudo, um obstáculo a que o direito da União conceda uma proteção mais alargada. Foi salientado, desde o início (78), que o artigo 47.o da Carta oferece precisamente uma proteção cujo âmbito de aplicação material é mais alargado do que o dos artigos correspondentes da CEDH (79).

72.      Atendendo à jurisprudência relativa à CEDH e aos seus protocolos (80), parece‑me que o «princípio da independência dos juízes», que é visado no presente pedido de decisão prejudicial, se insere mais no «direito [de toda a pessoa] a que a sua causa seja julgada […] por um tribunal independente e imparcial», conforme resulta do segundo parágrafo do artigo 47.o da Carta (81), do que no «direito a uma ação perante um tribunal», conforme previsto no primeiro parágrafo deste artigo (82).

73.      Com efeito, tanto esse órgão jurisdicional como a ASJP alegam que o princípio da independência judicial «se opõe às medidas de redução remuneratória a que os magistrados estão sujeitos em Portugal, por imposição unilateral d[e] outros poderes/órgãos de soberania e de forma continuada» (83).

74.      Ora, o TEDH tem declarado reiteradamente que a garantia de um «tribunal independente», na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da CEDH (84), exige que os juízes beneficiem de uma independência não só no plano estatutário (85) mas também no exercício das suas funções. Este conceito reveste uma dimensão ínsita ao poder judicial (86), sem pertinência no presente processo, e uma dimensão externa ao mesmo, segundo a qual os juízes devem poder trabalhar sem sofrer influências das partes no litígio (87) ou da parte de outros poderes do Estado (88), o que em meu entender constitui o único aspeto invocado pela ASJP. Sublinho que o Tribunal de Justiça adotou uma abordagem semelhante quando definiu os critérios que permitem caracterizar a independência de um órgão jurisdicional nacional (89).

75.      No que respeita, mais especificamente, à independência dos membros de um órgão jurisdicional no que se refere à sua remuneração, o TEDH já admitiu a interação entre estes dois elementos, tendo declarado que «o não pagamento pelo Estado, em tempo oportuno, dos vencimentos dos juízes é incompatível com a necessidade de garantir que estes possam exercer as suas funções judiciais com independência e imparcialidade, protegidos de pressões externas destinadas a influenciar as suas decisões e o seu comportamento», sublinhando ao mesmo tempo, neste contexto, o «caráter particularmente sensível da questão da independência dos magistrados» (90).

76.      Esta análise assenta em diversos instrumentos jurídicos do Conselho da Europa, nos quais se manifestam essas preocupações. Com efeito, o artigo 6.o da Carta Europeia sobre o Estatuto dos Juízes enuncia, sem força vinculativa, que o nível da remuneração dos juízes deverá ser fixado de forma a protegê‑los de pressões que visem influenciar a sua independência, mesmo que esse nível possa variar de juiz para juiz em função de fatores objetivos, tais como os encargos profissionais suportados (91). Do mesmo modo, as recomendações do Comité de Ministros (92) preconizaram, por um lado, que «[a] remuneração dos juízes [seja] à medida do seu papel e das suas responsabilidades, e de um nível suficiente para os proteger de quaisquer pressões externas que visem influenciar as suas decisões» e, por outro, que «[sejam] introduzidas disposições legais específicas para evitar uma redução remuneratória que vise especificamente os juízes» (93).

77.      Tendo em conta estes elementos, sou da opinião de que o direito de toda a pessoa a que a sua causa seja julgada por um tribunal independente, na aceção do artigo 47.o da Carta, inclui a necessidade de que a independência dos membros desse tribunal seja garantida pelo pagamento a estes, considerando as responsabilidades que assumem, de uma remuneração suficientemente elevada e estável, a fim de os proteger do risco de que eventuais intervenções ou pressões externas afetem a neutralidade das decisões judiciais que devem tomar.

78.      No entanto, embora o montante da remuneração dos juízes deva estar em consonância com a importância das funções públicas que estes assumem, esse montante não deverá, contudo, estar dissociado das realidades económicas e sociais, e, nomeadamente, do nível de vida médio existente no Estado em que os interessados exercem a sua atividade profissional (94). Além disso, uma razoável estabilidade do seu rendimento pressupõe, em meu entender, que este não varie no tempo de uma forma que possa pôr em perigo a independência da sua apreciação, mas não que seja imutável.

79.      Mais especificamente, numa situação de crise económica de grande amplitude, como a vivida no período que precedeu a adoção das medidas nacionais em causa no processo principal (95), o princípio da independência judicial não pode ser entendido no sentido de que torna impossível moderar a remuneração dos juízes, mesmo que uma operação desse tipo deva evidentemente manter‑se dentro de proporções razoáveis para evitar torná‑los vulneráveis às pressões que sobre eles possam ser exercidas. Com efeito, como alega o Governo português, há que encontrar o equilíbrio adequado entre o interesse geral da coletividade e o interesse particular dos juízes, que devem assegurar o respeito pelos direitos reconhecidos aos cidadãos.

80.      Acresce que, como já tive ocasião de sublinhar (96), à semelhança do Governo português (97) e da Comissão, as medidas de redução controvertidas afetaram não só os magistrados judiciais mas um elevado número de pessoas no exercício de funções públicas. Não tendo os juízes sido, de modo nenhum, afetados de forma exclusiva ou específica, não se pode considerar que os «outros poderes/órgãos de soberania» evocados na questão prejudicial pretenderam destabilizar os membros do sistema judicial, tanto mais que agentes quer do poder executivo quer do poder legislativo foram exatamente objeto das mesmas medidas de austeridade por força do artigo 2.o da Lei n.o 75/2014.

81.      Consequentemente, entendo que há que interpretar o artigo 47.o da Carta no sentido de que não se opõe à adoção de medidas nacionais como as que são contestadas no litígio no processo principal, uma vez que estas não violam o princípio da independência judicial previsto neste artigo.

82.      Uma interpretação inversa teria como consequência prática, quanto a mim deplorável, privar os Estados‑Membros da possibilidade de proceder, em caso de grave crise económica, à adaptação necessária do montante da remuneração das pessoas que integram a função pública em sentido lato, desde que essa adaptação não afete apenas os juízes e não seja desproporcionada.

V.      Conclusão

83.      Tendo em conta as considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda do seguinte modo à questão prejudicial que lhe foi submetida pelo Supremo Tribunal Administrativo (Portugal):

O artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE e o artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a medidas de redução remuneratória generalizada na Administração Pública a que estão sujeitos os juízes por força de uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal.


1      Língua original: francês.


2      19.o

‑‑
Tribunal de Justiça da União Europeia decide, nos termos do disposto nos Tratados […].»


3      O artigo 47.o da Carta, sob a epígrafe «Direito à ação e a um tribunal imparcial», dispõe, no primeiro e segundo parágrafos:
«Toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem direito a uma ação perante um tribunal nos termos previstos no presente artigo. Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma equitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei. Toda a pessoa tem a possibilidade de se fazer aconselhar, defender e representar em juízo.»


4      JO 2010, L 125, p. 44, e retificação no JO 2014, L 106, p. 46.


5      JO 2010, L 118, p. 1.


6      Documento original em língua inglesa acessível no seguinte endereço Internet: https://www.imf.org/external/np/loi/2011/prt/051711.pdf.


7      JO 2011, L 159, p. 88.


8      JO 2012, L 192, p. 12.


9      JO 2014, L 125, p. 75.


10      Documento original em língua inglesa: Council recommendation with a view to bringing an end to the situation of an excessive government deficit in Portugal, 18 de junho de 2013, 10562/13.


11      Diário da República, 1.a série, n.o 176, de 12 de setembro de 2014, p. 4896. A proposta de lei n.o 239/XII que esteve na origem da Lei n.o 75/2014, aprovada pelo Conselho de Ministros em 3 de julho de 2014, encontra‑se acessível no seguinte endereço Internet: https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheDiplomaAprovado.aspx?BID=18267.


12      Diário da República, 1.a série, n.o 254, de 30 de dezembro de 2015, p. 10006‑(4). O texto da Lei n.o 159‑A/2015 também se encontra acessível no seguinte endereço Internet: http://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheDiplomaAprovado.aspx?BID=19068.


13      Em relação a estes últimos, v. lista que consta do referido artigo 2.o, n.o 9, alínea f).


14      Nos termos do referido artigo 203.o, «[o]s tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei».


15      A Comissão invoca, entre outros, que o órgão jurisdicional de reenvio não expõe os motivos pelos quais os magistrados são especialmente afetados por uma medida nacional relativa a um vasto leque de titulares de cargos públicos. Dado que, em meu entender, este argumento não respeita tanto às regras processuais mas à substância do direito da União, evocá‑lo‑ei de preferência nesse âmbito (v. n.os 54 e segs. das presentes conclusões).


16      A falta de precisões suficientes, na decisão de reenvio, quanto ao contexto factual e jurídico do litígio no processo principal ou quanto às razões que justificam a necessidade de uma resposta às questões prejudiciais para o decidir, leva geralmente o Tribunal de Justiça a declarar o pedido de decisão prejudicial inadmissível, no todo ou em parte (v., designadamente, acórdãos de 18 de julho de 2013, ÖFAB, C‑147/12, EU:C:2013:490, n.os 47 a 47, e de 4 de maio de 2016, Philip Morris Brands e o., C‑547/14, EU:C:2016:325, n.os 47 a 53; e despacho de 8 de setembro de 2016, Google Ireland e Google Italy, C‑322/15, EU:C:2016:672, n.os 15 e segs.).


17      A decisão de reenvio deve esclarecer de maneira suficiente, por um lado, o Tribunal de Justiça, para que este possa dar uma resposta útil à questão prejudicial e, por outro, todos os interessados mencionados no artigo 23.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, e nomeadamente, os 28 Estados‑Membros, aos quais a decisão é notificada, após tradução, para que estes possam apresentar as suas eventuais observações.


18      Estas regras foram reiteradamente recordadas pelo Tribunal de Justiça na sua jurisprudência (v., designadamente, as passagens das decisões mencionadas na nota de pé de página 16 das presentes conclusões, além da jurisprudência referida), bem como nas suas «Recomendações à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais», atualizadas em 2016 (JO 2016, C 439, pp. 1 a 8, em especial n.os 14 a 18 e anexo que recapitula os «[e]lementos essenciais de qualquer pedido de decisão prejudicial»). V., igualmente, Gaudissart, M.‑A., «Les recommandations de la Cour de justice aux juridictions nationales, relatives à l’introduction de procédures préjudicielles», Journal de droit européen, 2017, n.o 2, pp. 42 e segs.


19      Quanto à fundamentação da decisão de reenvio, v. n.os 11 e segs. das presentes conclusões.


20      V., por analogia, acórdãos de 12 de fevereiro de 2015, Surgicare (C‑662/13, EU:C:2015:89, n.os 16 a 23), e de 11 de junho de 2015, Lisboagás GDL (C‑256/14, EU:C:2015:387, n.os 24 a 27).


21      O Governo português apresentou os seus argumentos a título subsidiário, para o caso de o Tribunal de Justiça se declarar competente para se pronunciar sobre a questão prejudicial.


22      V. n.os 7 e 8 das presentes conclusões.


23      V., designadamente, acórdãos de 8 de dezembro de 2016, Eurosaneamientos e o. (C‑532/15 e C‑538/15, EU:C:2016:932, n.o 28), e de 21 de dezembro de 2016, Associazione Italia Nostra Onlus (C‑444/15, EU:C:2016:978, n.o 36).


24      V., designadamente, acórdão de 26 de fevereiro de 2015, Matei (C‑143/13, EU:C:2015:127, n.o 38), e despacho de 3 de março de 2016, Euro Bank (C‑537/15, não publicado, EU:C:2016:143, n.o 32).


25      V., designadamente, despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 10 de fevereiro de 2015, Liivimaa Lihaveis (C‑175/13, não publicado, EU:C:2015:80, n.os 17 a 21).


26      V., designadamente, acórdãos de 24 de outubro de 2013, Stoilov i Ko (C‑180/12, EU:C:2013:693, n.os 44 a 48), e de 3 de julho de 2014, Da Silva (C‑189/13, não publicado, EU:C:2014:2043, n.os 34 a 37).


27      V., designadamente, acórdãos de 9 de dezembro de 2010, Fluxys (C‑241/09, EU:C:2010:753, n.os 32 a 34), e de 27 de junho de 2013, Di Donna (C‑492/11, EU:C:2013:428, n.os 27 a 32); e despacho de 3 de março de 2016, Euro Bank (C‑537/15, não publicado, EU:C:2016:143, n.os 34 a 36).


28      V. acórdão de 12 de janeiro de 2010, Petersen (C‑341/08, EU:C:2010:4, n.os 28 e 29).


29      Recordo que o pedido de decisão prejudicial foi registado em 5 de fevereiro de 2016 e que, embora a Lei n.o 159‑A/2015 tenha entrado em vigor em 1 de janeiro de 2016, os seus efeitos não são retroativos e foram apenas parciais num primeiro momento (sendo a reversibilidade da redução, respetivamente, de 40% para remunerações pagas a partir de 1 de janeiro de 2016, de 60% para as pagas a partir de 1 de abril de 2016 e de 80% para as remunerações pagas a partir de 1 de julho de 2016), e completos só a partir de 1 de outubro de 2016 (v. n.os 7, 8, 26 e 27 das presentes conclusões). A perda de rendimentos alegada pelos representados pela autora no processo principal não tinha, por conseguinte, sido totalmente compensada no dia em que a questão foi submetida ao Tribunal de Justiça.


30      O Governo português deduziu da jurisprudência relativa ao artigo 51.o da Carta que o Tribunal de Justiça é manifestamente incompetente para responder à questão da interpretação quer do artigo 19.o TUE quer do artigo 47.o da Carta. Quanto à Comissão, esta fundamentou a incompetência do Tribunal de Justiça para responder à questão prejudicial da perspetiva do artigo 19.o TUE principalmente no facto de o órgão jurisdicional de reenvio não ter fundamentado suficientemente a sua decisão de reenvio quanto ao nexo que pode existir entre o direito da União e a legislação nacional aplicável ao litígio no processo principal (fundamento este que se refere, em meu entender, mais à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial, que é examinado nos n.os 18 e segs. das presentes conclusões).


31      V. n.os 43 e segs. das presentes conclusões.


32      Esclarecendo, desde já, que preconizarei a adoção de uma interpretação do artigo 19.o TUE que contradiz a tese defendida pela ASJP (v. n.os 57 e segs. das presentes conclusões).


33      O sublinhado é meu.


34      No acórdão de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson (C‑617/10, EU:C:2013:105, n.os 17 a 23), o Tribunal de Justiça declarou, em particular, que, «[u]ma vez que os direitos fundamentais garantidos pela Carta devem […] ser respeitados quando uma regulamentação nacional se enquadra no âmbito de aplicação do direito da União, não podem existir situações que estejam abrangidas pelo direito da União em que os referidos direitos fundamentais não sejam aplicados. A aplicabilidade do direito da União implica a aplicabilidade dos direitos fundamentais garantidos pela Carta» (n.o 21). V., igualmente, acórdão de 16 de maio de 2017, Berlioz Investment Fund (C‑682/15, EU:C:2017:373, n.o 49).


35      O Tribunal de Justiça precisou que o conceito de «aplicação do direito da União», na aceção do artigo 51.o da Carta, pressupõe a existência de um nexo entre um ato de direito da União e a medida nacional em causa, que ultrapassa a mera proximidade das matérias em causa ou as incidências indiretas de uma matéria na outra. A este respeito, importa verificar, entre outros elementos, se a legislação nacional em causa tem por objetivo aplicar uma disposição do direito da União, qual o caráter dessa legislação e se a mesma prossegue outros objetivos que não sejam os abrangidos pelo direito da União, ainda que seja suscetível de o afetar indiretamente, bem como se existe uma legislação de direito da União específica nessa matéria ou suscetível de o afetar (v., designadamente, acórdãos de 10 de julho de 2014, Julián Hernández e o., C‑198/13, EU:C:2014:2055, n.os 34 e segs., e de 6 de outubro de 2016, Paoletti e o., C‑218/15, EU:C:2016:748, n.os 14 e segs.).


36      V., designadamente, acórdão de 8 de novembro de 2016, Lesoochranárske zoskupenie VLK (C‑243/15, EU:C:2016:838, n.os 51 e segs.), e despachos de 14 de abril de 2016, Târșia (C‑328/15, não publicado, EU:C:2016:273, n.os 23 a 24), e de 13 de dezembro de 2016, Semeraro (C‑484/16, não publicado, EU:C:2016:952, n.o 43).


37      Em concreto, disposições legais que instituem uma redução remuneratória no setor público com vista a reduzir as despesas públicas portuguesas.


38      V. despachos de 7 de março de 2013, Sindicato dos Bancários do Norte e o. (C‑128/12, não publicado, EU:C:2013:149, n.o 12); de 26 de junho de 2014, Sindicato Nacional dos Profissionais de Seguros e Afins (C‑264/12, EU:C:2014:2036, n.os 19 e segs.); e de 21 de outubro de 2014, Sindicato Nacional dos Profissionais de Seguros e Afins (C‑665/13, EU:C:2014:2327, n.o 14).


39      Esta lista compreende a maioria dos atos mencionados no n.o 4 das presentes conclusões.


40      O órgão jurisdicional de reenvio menciona um «Relatório do orçamento de Estado de 2011» elaborado pelo Ministério das Finanças e da Administração Pública que se referia à Decisão 2010/288 do Conselho da União Europeia, sem esclarecer se esse elemento foi tido em conta nos trabalhos preparatórios da Lei n.o 75/2014, em causa no litígio no processo principal.


41      V. conclusões do advogado‑geral Y. Bot no processo Florescu e o. (C‑258/14, EU:C:2016:995, n.os 61 e segs.).


42      No referido processo, estava em causa, nomeadamente, o Protocolo de Acordo celebrado em 23 de junho de 2009 entre a Roménia e a Comunidade Europeia e a Decisão 2009/459/CE do Conselho, de 6 de maio de 2009, que concede assistência financeira comunitária a médio prazo à Roménia (JO 2009, L 150, p. 8).


43      A exposição de motivos da Proposta de Lei n.o 239/XII realça que a presença da República Portuguesa na União Europeia e na área do euro a obriga ao cumprimento de requisitos exigentes em matéria orçamental, plasmados no Tratado FUE, no protocolo, e nos regulamentos que desenvolvem o Pacto de Estabilidade e Crescimento e ainda no Tratado sobre Estabilidade, Coordenação e Governação na União Económica e Monetária. Evoca igualmente a possibilidade de aplicação de sanções pecuniárias aos Estados‑Membros que ultrapassem os limites do défice orçamental de referência. Além disso, menciona o Programa de Ajustamento Económico acordado com a Comissão, o BCE e o FMI. Acrescenta que, uma vez que a disciplina orçamental imposta por obrigações permanentes e constantes a que a República Portuguesa se vinculou no contexto da pertença à União Europeia e à moeda única exige que a massa salarial das Administrações Públicas, como elemento central da despesa do Estado, permaneça contida, a referida proposta de lei pretende repor as percentagens e os limites da redução remuneratória vigente desde 2011, ao mesmo tempo que determina a sua reversão integral mas gradual, de acordo com a disponibilidade orçamental (v. pp. 1 a 4).


44      Esclareço que este primeiro memorando, que foi objetos de vários ajustamentos ulteriores — conforme indicado nas observações da Comissão —, previa um programa trienal «até meados de 2014» (v. considerando 2 da Decisão de Execução 2011/344 do Conselho).


45      De acordo com o disposto no artigo 288.o, quarto e quinto parágrafos, TFUE.


46      Este governo refere‑se, nomeadamente, ao acórdão n.o 574, de 14 de agosto de 2014, proferido neste sentido pelo Tribunal Constitucional (Portugal). Este último salienta, contudo, que algumas medidas concretas podem resultar das decisões de execução do Conselho no quadro do Programa de Assistência Económica e Financeira da União para com o Estado português.


47      Segundo o n.o 1 do referido artigo 1.o, a assistência financeira foi disponibilizada ao Estado português durante três anos e seis semanas a contar do primeiro dia após a entrada em vigor da Decisão de Execução 2011/344. Findo o Programa de Ajustamento Económico, este Estado é objeto de uma supervisão pós‑programa, conforme mencionou a Comissão na audiência (v., a este respeito, https://ec.europa.eu/info/business economy euro/economic and fiscal policy coordination/eu financial assistance/which eu countries have received assistance/financial assistance portugal_en).


48      Há que estabelecer uma distinção entre estas medidas que são especificamente impostas a um Estado‑Membro e as restrições orçamentais que incidem, de forma geral, sobre todos os Estados‑Membros, em particular sobre aqueles que estão na área do euro, nomeadamente, por força do Pacto de Estabilidade e Crescimento [v., entre outros, considerandos 1 a 5 e artigo 1.o do Regulamento (UE) n.o 1177/2011 do Conselho, de 8 de novembro de 2011, que altera o Regulamento (CE) n.o 1467/97 relativo à aceleração e clarificação da aplicação do procedimento relativo aos défices excessivos (JO 2011, L 306, p. 33)].


49      V. artigo 3.o, n.o 8, alínea h), i) e ii), da Decisão de Execução 2011/344, conforme alterada pelo artigo 1.o da Decisão de Execução 2014/234, e considerando 11, quarto travessão, desta última, que menciona que «[a] revisão das despesas públicas e a estratégia de consolidação de 2014 são apoiadas por uma série de importantes reformas na administração pública», entre as quais figura uma «revisão da tabela salarial e a criação de uma tabela única de suplementos salariais».


50      Em meu entender, ao adotar a Lei n.o 75/2014, o Estado português não «tomou uma iniciativa autónoma que não se limita ao exercício da discricionariedade autorizada e delimitada pelo direito da União», como afirma a Comissão, mas atuou sim de modo a respeitar os compromissos económicos especiais que tinha subscrito para poder beneficiar da assistência financeira que lhe foi concedida.


51      A ASJP evoca também dois relatórios de avaliação dos sistemas judiciais europeus elaborados pela Comissão Europeia para a Eficiência da Justiça do Conselho da Europa (CEPEJ), acessíveis no seguinte endereço Internet: http://www.coe.int/t/dghl/cooperation/cepej/series/default_fr.asp.


52      A Carta Europeia sobre o Estatuto dos Juízes, adotada de 8 a 10 de julho de 1998, enuncia no seu artigo 6.o, sob a epígrafe «Remuneração, proteção social»:
«6.1. O exercício a título profissional de funções judiciais dá lugar a uma remuneração do juiz ou da juíza cujo nível será fixado de forma a protegê‑los de pressões que visem influenciar o sentidos das suas decisões e, em geral, a sua atuação jurisdicional alterando, assim, a sua independência e a sua imparcialidade.
6.2. A remuneração pode variar em função da antiguidade, da natureza das funções que o juiz ou a juíza exercem a título profissional ou ainda em função da relevância dos encargos que lhes são impostos, apreciados em condições de transparência. […]»
A exposição de motivos que acompanha as disposições da referida Carta fornece indicações úteis quanto ao teor das mesmas (documento acessível no seguinte endereço Internet: https://wcd.coe.int/ViewDoc.jsp?p=&id=1766477&Site=COE&direct=true#).


53      Recordo que, além dos referidos artigos, a decisão prejudicial cita a «jurisprudência do Tribunal de Justiça» da qual resulta igualmente o princípio da independência judicial, mas não menciona nenhuma decisão do Tribunal de Justiça nesse sentido.


54      Mesmo que não se exclua que certas considerações relativas ao artigo 47.o da Carta possam contribuir com um esclarecimento útil para interpretar o artigo 19.o TUE, e reciprocamente (v., designadamente, conclusões do advogado‑geral M. Wathelet no processo Berlioz Investment Fund, C‑682/15, EU:C:2017:2, n.os 38 e 67).


55      E, naturalmente, sob reserva de o pedido de decisão prejudicial ser declarado admissível.


56      O sublinhado é meu.


57      O n.o 2 do artigo 19.o TUE descreve a composição do Tribunal de Justiça e o estatuto dos seus membros, ao passo que o seu n.o 3 define os domínios da sua competência à luz dos diferentes tipos de recursos que lhe podem ser submetidos.


58      V., designadamente, acórdão de 19 de julho de 2016, H/Conselho e Comissão (C‑455/14 P, EU:C:2016:569, n.os 39 e 40), a propósito das derrogações existentes em matéria de política externa e de segurança comum.


59      V., designadamente, acórdãos de 3 de outubro de 2013, Inuit Tapiriit Kanatami e o./Parlamento e Conselho (C‑583/11 P, EU:C:2013:625, n.os 100 e 101), e de 28 de abril de 2015, T & L Sugars e Sidul Açúcares/Comissão (C‑456/13 P, EU:C:2015:284, n.os 49 e 50).


60      V., designadamente, conclusões da advogada‑geral J. Kokott no processo Inuit Tapiriit Kanatami e o./Parlamento e Conselho (C‑583/11 P, EU:C:2013:21, n.os 34, 116 e 121); acórdãos de 3 de outubro de 2013, Inuit Tapiriit Kanatami e o./Parlamento e Conselho (C‑583/11 P, EU:C:2013:625, n.os 90 e 99); e de 28 de abril de 2015, T & L Sugars e Sidul Açúcares/Comissão (C‑456/13 P, EU:C:2015:284, n.o 45); e despacho de 24 de janeiro de 2017, Beul/Parlamento e Conselho (C‑53/16 P, não publicado, EU:C:2017:66, n.os 18 e 19).


61      V. acórdão de 28 de abril de 2015, T & L Sugars e Sidul Açúcares/Comissão (C‑456/13 P, EU:C:2017:66, n.o 50). V., igualmente, acórdão de 16 de maio de 2017, Berlioz Investment Fund (C‑682/15, EU:C:2017:373, n.o 44).


62      A este respeito, v. n.os 69 e segs. das presentes conclusões.


63      V., designadamente, acórdão de 3 de outubro de 2013, Inuit Tapiriit Kanatami e o./Parlamento e Conselho (C‑583/11 P, EU:C:2013:625, n.os 102 e segs.).


64      A Comissão não tomou, nas suas observações quer escritas quer orais, posição clara, a título subsidiário, sobre a interpretação a dar ao artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE.


65      O Governo português sublinha, acertadamente, que o princípio da tutela jurisdicional efetiva, que se destina a garantir que a cada direito ou interesse legalmente protegido corresponde um meio processual adequado à sua salvaguarda perante os tribunais, se inscreve numa perspetiva distinta da do princípio da independência judicial, que garante a imparcialidade do órgão jurisdicional contra intromissões extrajudiciais e ilegítimas na tramitação do processo judicial.


66      Na epígrafe do artigo 47.o da Carta, o «[d]ireito à ação», que é objeto do n.o 1 deste artigo, distingue‑se do «[direito] a um tribunal imparcial», que inclui o direito a um «tribunal independente», conforme previsto no seu n.o 2. V., igualmente, neste sentido, acórdão de 8 de novembro de 2016, Lesoochranárske zoskupenie VLK (C‑243/15, EU:C:2016:838, n.os 54 e segs.).


67      Convenção assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»).


68      Observo que a mesma distinção existe na Constituição da República Portuguesa, visto que o «[a]cesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva» é objeto do seu artigo 20.o, ao passo que a independência dos tribunais está prevista no seu artigo 203.o (citado na nota de pé de página 14 das presentes conclusões).


69      V., designadamente, TEDH, 26 de outubro de 2000, Kudła c. Polónia (ECLI:CE:ECHR:2000:1026JUD003021096, §§ 150 a 156).


70      V. n.os 69 e segs. das presentes conclusões.


71      Quanto às repercussões concretas do princípio da independência judicial no presente processo, v., igualmente, n.os 77 e segs. das presentes conclusões.


72      Em contrapartida, o facto de estas medidas terem tido apenas um caráter temporário (recorde‑se que a Lei n.o 75/2014 produziu efeitos a partir de outubro de 2014 e que, por força da Lei n.o 159‑A/2015, a redução remuneratória controvertida foi totalmente eliminada a partir de 1 de outubro de 2016), como alega o Governo português, não me parece determinante, dado que, mesmo que fosse provisória, uma eventual violação a um princípio geral do direito da União seria em si contrária a esse direito, embora a gravidade dessa violação fosse evidentemente menor do que em caso de violação permanente.


73      V. a longa lista de pessoas, que inclui, nomeadamente, tanto os magistrados judiciais como os magistrados do Ministério Público, prevista no artigo 2.o, n.o 9, alíneas a) («O Presidente da República») a t) («O pessoal nas situações de reserva, pré‑aposentação e disponibilidade […]»), da Lei n.o 75/2014, número este citado no n.o 6 das presentes conclusões.


74      V. conclusões do advogado‑geral M. Wathelet no processo Berlioz Investment Fund (C‑682/15, EU:C:2017:2, n.os 34 e segs.). V., igualmente, acórdão de 16 de maio de 2017, Berlioz Investment Fund (C‑682/15, EU:C:2017:373, n.o 54).


75      A saber, «Direito à ação e a um tribunal imparcial».


76      Nos termos das Anotações relativas à Carta dos Direitos Fundamentais (JO 2007, C 303, pp. 17 e segs.), «[o] primeiro parágrafo [do artigo 47.o da Carta] baseia‑se no artigo 13.o da CEDH» e o seu «segundo parágrafo corresponde ao n.o 1 do artigo 6.o da CEDH» (v. secção «Anotação ad artigo 47.o», primeiro e terceiro parágrafos).


77      O facto de ser necessário remeter apenas para o artigo 47.o da Carta quando a situação em causa for abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União (v. acórdão de 16 de maio de 2017, Berlioz Investment Fund, C‑682/15, EU:C:2017:373, n.o 54 e jurisprudência referida) não exclui a possibilidade de interpretação deste artigo à luz da jurisprudência do TEDH. V., designadamente, acórdão de 15 de fevereiro de 2016, N. (C‑601/15 PPU, EU:C:2016:84, n.os 45 e segs.), e os exemplos jurisprudenciais evocados por Lebrun, G., «De l’utilité de l’article 47 de la Charte des droits fondamentaux de l’Union européenne», Revue trimestrielle des droits de l’homme, 2016, n.o 106, em especial, pp. 439 a 445.


78      V. Anotações relativas à Carta, secção «Anotação ad artigo 47.o», segundo e quarto parágrafos, e secção «Anotação ad artigo 52.o», nos quais os «n.os 2 e 3 do artigo 47.o» são citados entre os «[a]rtigos com o mesmo sentido que o dos artigos correspondentes da CEDH, mas com um âmbito mais alargado».


79      Nas suas conclusões relativas ao processo Berlioz Investment Fund (C‑682/15, EU:C:2017:2, n.o 37), o advogado‑geral M. Wathelet sublinha que «o artigo 47.o da Carta possui um âmbito de aplicação material mais lato. Por um lado, este aplica‑se quando “direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados” (quer figurem ou não na Carta), ao passo que o artigo 13.o da CEDH exige uma violação dos “direitos e liberdades reconhecidos na [CEDH]”. Por outro lado, o artigo 6.o, n.o 1, da CEDH limita o direito a um processo equitativo à determinação dos direitos e obrigações de caráter civil ou ao fundamento de qualquer acusação em matéria penal. Essa restrição não se encontra no artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta» (v., igualmente, n.os 61 e segs. das referidas conclusões).


80      As Anotações relativas à Carta, secção «Anotação ad artigo 52.o», precisam que, no n.o 3 deste artigo 52.o, «[a] referência à CEDH visa tanto a Convenção como os respetivos protocolos. O sentido e o âmbito dos direitos garantidos são determinados não só pelo texto desses instrumentos mas também pela jurisprudência do [TEDH] e do Tribunal de Justiça da União Europeia. O último período deste número visa permitir à União que esta garanta uma proteção mais ampla. Em todo o caso, o nível de proteção conferido pela Carta nunca poderá ser inferior ao nível garantido pela CEDH».


81      Esclareço que o direito a um tribunal imparcial na aceção do artigo 47.o da Carta abrange igualmente os litígios de caráter administrativo, como é o caso no processo principal (v., designadamente, Dutheil de la Rochère, J., «Charte des droits fondamentaux de l’Union européenne», Jurisclasseur Europe, fascículo 160, 2010, n.o 87). No que respeita a litígios relativos a magistrados à luz do artigo 6.o, n.o 1, da CEDH, v. TEDH, 23 de junho de 2016, Baka c. Hungria (ECLI:CE:ECHR:2016:0623JUD002026112, §§ 102 e segs.).


82      No que respeita ao «direito a um recurso efetivo» na aceção do artigo 13.o da CEDH, v., designadamente, TEDH, 26 de outubro de 2000, Kudła c. Polónia (ECLI:CE:ECHR:2000:1026JUD003021096, § 157).


83      V. redação da questão prejudicial e observações da ASJP, que sublinha que as reduções controvertidas foram decididas e impostas pelo poder executivo e legislativo, sem considerar o facto de a remuneração dos juízes integrar a sua independência funcional. Em contrapartida, é pacífico que os representados pela autora no processo principal puderam efetivamente interpor os recursos disponíveis em Portugal, recordando‑se que o órgão jurisdicional de reenvio é o Supremo Tribunal Administrativo.


84      Embora seja verdade que os requisitos de independência e imparcialidade dos tribunais nacionais estão ligados entre si e são, por vezes, examinados conjuntamente (v., designadamente, TEDH, 21 de junho de 2016, Ramos Nunes de Carvalho e Sá c. Portugal, ECLI:CE:ECHR:2016:0621JUD005539113, § 74), estes conceitos são, contudo, distintos, pelo que limitarei as minhas observações ao primeiro deles, atendendo às circunstâncias do litígio no processo principal.


85      O modo de designação dos membros do tribunal, a duração do seu mandado ou a sua inamovibilidade são, entre outros, tomados em consideração (v., designadamente, TEDH, 18 de julho de 2013, Maktouf e Damjanović c. Bósnia‑Herzegovina, ECLI:CE:ECHR:2013:0718JUD000231208, § 49).


86      Esta primeira vertente exige que cada juiz seja protegido de orientações ou pressões oriundas do poder judiciário, e, em particular, emanadas de pares em relação aos quais tenha um vínculo de subordinação administrativa e hierárquica (v., designadamente, TEDH, 6 de outubro de 2011, Agrokompleks c. Ucrânia, ECLI:CE:ECHR:2011:1006JUD002346503, § 137).


87      V., designadamente, TEDH, 18 de julho de 2013, Maktouf e Damjanović c. Bósnia‑Herzegovina (ECLI:CE:ECHR:2013:0718JUD000231208, § 49).


88      V., designadamente, quanto ao poder legislativo, TEDH, 3 de setembro de 2013, M. C. e o. c. Itália (ECLI:CE:ECHR:2013:0903JUD000537611, § 59), e, quanto ao poder executivo, TEDH, 21 de junho de 2016, Ramos Nunes de Carvalho e Sá c. Portugal (ECLI:CE:ECHR:2016:0621JUD005539113, §§ 70 e 75).


89      V., designadamente, acórdão de 16 de fevereiro de 2017, Margarit Panicello (C‑503/15, EU:C:2017:126, n.os 37 e segs. e jurisprudência referida).


90      TEDH, 26 de abril de 2016, Zoubko e o. c. Ucrânia (ECLI:CE:ECHR:2006:0426JUD000395504, §§ 67 e 68), a propósito da alegada violação do artigo 1.o do protocolo n.o 1 anexo à CEDH, segundo o qual «[q]ualquer pessoa singular ou coletiva tem direito ao respeito dos seus bens».


91      Disposições citadas na nota de pé de página 52 das presentes conclusões.


92      V. recomendação n.o R(94)12 do Comité dos Ministros aos Estados‑Membros sobre «a independência, a eficácia e o papel dos juízes», adotada em 13 de outubro de 1994, princípio III, n.o 1, alínea b), e recomendação CM/Rec(2010)12, intitulada «Os juízes: a eficiência, independência e responsabilidades», adotada pelo Comité de Ministros do Conselho da Europa de 17 de novembro de 2010, e o seu anexo, n.os 53 a 55.


93      Sobre esta última vertente, v., igualmente, parecer n.o 1 (2001) do Conselho Consultivo de Juízes Europeus (CCJE) à atenção do Comité de Ministros do Conselho da Europa sobre as normas relativas à independência e à inamovibilidade dos juízes, de 23 de novembro de 2001, n.o 62.


94      De igual modo, nos termos do «Relatório sobre a Independência do Sistema Judicial — Parte I: A independência dos juízes» da Comissão Europeia para a Democracia pelo Direito do Conselho da Europa (Comissão de Veneza), de 16 de março de 2010, «[o]nível da remuneração deverá ser estabelecido tendo em conta a situação social no país em causa» (n.o 46).


95      A este respeito, o Governo português salienta que estas medidas constituíram uma opção fundamental, feita pelos órgãos do Estado português competentes, a qual se justificou por objetivos de eliminação do défice orçamental excessivo e pela necessidade de cumprimento, por este Estado, dos compromissos internacionais decorrentes da assistência financeira de que tinha beneficiado nos termos de disposições da União.


96      V. n.o 68 e nota de pé de página 73 das presentes conclusões.


97      Este governo realça que as medidas contestadas servem o propósito, por um lado, de assegurar, em última linha, o interesse geral da coletividade, tal como é definido, dentro do quadro constitucional, pelo Estado‑Legislador português e, por outro, a repartição equitativa e equilibrada do esforço que as medidas impõem, sendo transversal a todos os titulares de órgãos de soberania, trabalhadores da Administração Pública e demais agentes do Estado.