Language of document : ECLI:EU:C:2023:470

CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

PRIIT PIKAMÄE

apresentadas em 8 de junho de 2023 (1)

Processo C96/22

Companhia de Distribuição Integral Logista Portugal, S.A.

contra

Autoridade Tributária e Aduaneira

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Supremo Tribunal Administrativo (Portugal)]

«Reenvio prejudicial — Impostos especiais de consumo — Diretiva 2008/118/CE — Artigos 7.o e 9.o — Alcance — Regulamentação nacional que sujeita as quantidades de cigarros que excedam o limite quantitativo à taxa em vigor em data posterior à da introdução no consumo»






1.        No presente processo, o Supremo Tribunal Administrativo (Portugal) submete ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial relativo à interpretação do artigo 34.o TFUE e dos artigos 7.o e 9.o da Diretiva 2008/118/CE (2).

2.        Dado que as presentes conclusões se centram, a pedido do Tribunal de Justiça, na segunda questão prejudicial, concentrar-se-ão unicamente na análise exegética das disposições de direito derivado acima referidas.

3.        O contexto normativo pertinente é o da regulamentação da União relativa a um regime geral dos impostos especiais de consumo. O imposto especial de consumo é um imposto indireto sobre o consumo que pode ser utilizado para atingir não só o objetivo de qualquer política fiscal, a saber, proporcionar receitas à Fazenda Pública, mas também objetivos extrafiscais, como o de dissuadir o consumo de certos produtos, entre os quais o tabaco.

4.        No caso em apreço, coloca-se a questão da conformidade com a Diretiva 2008/118 de um regime fiscal nacional por força do qual as quantidades de cigarros que excedam o limite quantitativo de introdução no consumo nele referido ficam sujeitas à taxa do imposto especial de consumo em vigor em data posterior em relação à da introdução no consumo, especificando-se que o regime em causa visa lutar contra a prática abusiva que consiste em introduzir no consumo quantidades excessivas de mercadorias na previsão de um futuro aumento da taxa do imposto especial de consumo (forestalling).

5.        O presente processo permitirá ao Tribunal de Justiça clarificar onde se situa a linha divisória entre o âmbito material da harmonização implementada pela Diretiva 2008/118 e a margem de manobra que esta deixa aos Estados-Membros.

 Quadro jurídico

 Direito da União

6.        No âmbito do presente processo, são pertinentes os artigos 7.o e 9.o da Diretiva 2008/118.

 Direito português

7.        O Decreto‑Lei n.o 73/2010 que aprova o Código dos Impostos Especiais de Consumo, de 21 de junho de 2010 (Diário da República, Série I, n.o 118, p. 2170, a seguir «CIEC»), transpôs para o direito português a Diretiva 2008/118.

8.        Nos termos do artigo 106.o do CIEC, sob a epígrafe «Regras especiais de introdução no consumo»:

«1 - A introdução no consumo de cigarros está sujeita a regras de condicionamento aplicáveis no período que medeia entre o dia 1 de setembro e o dia 31 de dezembro de cada ano civil.

2 - Durante o período referido no número anterior, as introduções no consumo de cigarros, efetuadas mensalmente, por cada operador económico, não podem exceder os limites quantitativos, decorrentes da aplicação de um fator de majoração de 10 % à quantidade média mensal de cigarros introduzidos no consumo ao longo dos 12 meses imediatamente anteriores.

3 - Para efeitos do disposto no número anterior, o cálculo da média mensal tem por base a quantidade total das introduções no consumo de cigarros, não isentos, efetuadas entre o dia 1 de setembro do ano anterior e o dia 31 de agosto do ano subsequente.

4 - Cada operador económico deve apresentar à estância aduaneira competente, até ao dia 15 de setembro de cada ano, uma declaração inicial contendo a indicação da respetiva média mensal e a determinação do consequente limite quantitativo que lhe é aplicável no período de condicionamento.

5 - Em casos excecionais, devidamente fundamentados na alteração brusca e limitada no tempo do volume de vendas, pode ser autorizada a não observância daqueles limites quantitativos, não obstante não serem os mesmos considerados para efeitos do cálculo da média mensal para o ano seguinte.

6 - Findo o período de condicionamento e o mais tardar até ao final do mês de janeiro de cada ano, o operador económico deve apresentar à estância aduaneira competente uma declaração de apuramento contendo a indicação das quantidades totais de cigarros efetivamente introduzidas no consumo durante o período de condicionamento.

7 - As quantidades de cigarros que excedam o limite quantitativo referido no n.o 4 ficam sujeitas ao pagamento do imposto à taxa em vigor na data da apresentação da declaração de apuramento quando tal excesso seja comprovado pelo confronto dos seus elementos com os processados pela administração, sem prejuízo do procedimento por infração a que houver lugar.

8 - As regras previstas no presente artigo são individualmente aplicáveis ao continente, à Região Autónoma dos Açores e à Região Autónoma da Madeira, devendo as obrigações previstas nos números anteriores ser cumpridas junto da estância aduaneira onde são processadas as respetivas introduções no consumo.»

 Matéria de facto na origem do litígio, processo principal, questões prejudiciais e tramitação processual no Tribunal de Justiça

9.        A sociedade Companhia de Distribuição Integral Logista Portugal, S.A., anteriormente denominada Compañía de Distribución Integral Logista S.A. (a seguir «Logista»), é uma empresa ativa no comércio a retalho de produtos do tabaco que opera como depositário autorizado pela autoridade aduaneira portuguesa da Região Autónoma da Madeira.

10.      Em 15 de setembro de 2010, a Logista, em conformidade com o artigo 106.o, n.o 4, do CIEC, apresentou na estância aduaneira do Funchal (Portugal) uma declaração inicial da quantidade média mensal de cigarros introduzida no consumo ao longo dos 12 meses imediatamente anteriores, ou seja, entre 1 de setembro de 2009 e 31 de agosto de 2010.

11.      Em 22 de setembro de 2010, a estância aduaneira do Funchal informou a Logista de que, com base nas informações fornecidas, lhe tinha sido fixado um limite quantitativo mensal de 1 644 005 cigarros para o período de condicionamento compreendido entre setembro e dezembro de 2010, calculado em conformidade com o artigo 106.o, n.os 1 a 3, do CIEC.

12.      Em 18 de novembro de 2010, a Logista solicitou autorização para não respeitar este limite quantitativo, em aplicação do artigo 106.o, n.o 5, do CIEC.

13.      Em 7 de janeiro de 2011, a estância aduaneira do Funchal proferiu um despacho de indeferimento deste pedido com o fundamento de que a inobservância do limite quantitativo em questão não era justificada por uma alteração brusca e limitada no tempo do volume de vendas, como exige o artigo 106.o, n.o 5, do CIEC. Em seguida, a Logista apresentou recurso hierárquico dessa decisão, que foi igualmente indeferido.

14.      Em 18 de janeiro de 2011, a Logista, em conformidade com o artigo 106.o, n.o 6, do CIEC, apresentou à estância aduaneira do Funchal uma declaração de apuramento que atestava a introdução no consumo de uma quantidade de cigarros mais de três vezes superior ao limite quantitativo durante o período compreendido entre os meses de setembro e dezembro de 2010.

15.      Em aplicação do artigo 106.o, n.o 7, do CIEC, a Logista foi objeto de um ato de liquidação no montante de 4 607,69 euros, acrescido de 1,80 euros, referente ao número de cigarros que introduziu no consumo no período compreendido entre setembro e dezembro de 2010 e que excedia o limite quantitativo previsto no artigo 106.o, n.o 2, do CIEC.

16.      A Logista impugnou esta liquidação no Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal (Portugal), que julgou improcedente essa impugnação. Em seguida, a Logista interpôs recurso dessa sentença para o Supremo Tribunal Administrativo.

17.      No órgão jurisdicional de reenvio, a Logista sustenta, nomeadamente, que a aplicação da taxa do imposto especial de consumo à data da apresentação da declaração de apuramento viola os artigos 7.o e 9.o da Diretiva 2008/118, segundo os quais as condições de exigibilidade e a taxa aplicável são as que estavam em vigor na data em que o tabaco foi introduzido no consumo. A Autoridade Tributária e Aduaneira (Portugal) retorque que o regime em causa é conforme com essas disposições.

18.      Foi nestas condições que o Supremo Tribunal Administrativo decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1.a‑      Os limites quantitativos à introdução no consumo impostos pelo artigo 106.o do CIEC, na medida em que tenham por efeito condicionar os operadores, no último quadrimestre de cada ano, a introduzir no mercado as quantidades que não excedam as equivalentes à quantidade média mensal de cigarros introduzidos no consumo ao longo dos 12 meses imediatamente anteriores, podem constituir restrições quantitativas à importação ou medidas de efeito equivalente, para os efeitos do disposto no artigo 34.o do TFUE?

2.a‑      A sujeição das quantidades de cigarros que excedam o limite quantitativo de introdução no consumo a que alude o n.o 2 do artigo 106.o do CIEC à taxa em vigor na data da apresentação da declaração de apuramento, nos termos do n.o 7 do mesmo dispositivo legal, contraria as regras relativas à exigibilidade dos impostos especiais sobre o consumo, introduzidas pelos artigos 7.o e 9.o da [Diretiva 2008/118]?»

19.      Foram apresentadas observações escritas pela Logista, pela Autoridade Tributária e Aduaneira, pelo Governo português e pela Comissão Europeia.

20.      O Governo português e a Comissão apresentaram alegações orais na audiência que teve lugar em 22 de março de 2023.

 Análise

21.      Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se os artigos 7.o e 9.o da Diretiva 2008/118 devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional por força da qual as quantidades de cigarros que excedam o limite quantitativo de introdução no consumo nela referido ficam sujeitas à taxa do imposto especial de consumo em vigor em data posterior à da introdução no consumo.

 Observações preliminares

22.      Importa recordar, antes de mais, que a Diretiva 2008/118, que revogou e substituiu a Diretiva 92/12/CEE (3), foi adotada com base no artigo 93.o do Tratado CE (atual artigo 113.o TFUE). Ao abrigo deste artigo, o legislador da União pode adotar disposições relacionadas com a harmonização das legislações nacionais relativas aos impostos indiretos, nomeadamente aos impostos especiais de consumo, uma vez que essa harmonização seja necessária para assegurar o estabelecimento e o funcionamento do mercado interno e para evitar as distorções da concorrência.

23.      Assim, a Diretiva 2008/118 visa garantir o correto funcionamento do mercado interno através da livre circulação de mercadorias sujeitas a impostos especiais de consumo na União Europeia. Para o efeito, esta diretiva exige a harmonização das legislações nacionais que regulam esses tipos de tributação a fim de assegurar que o conceito e as condições de exigibilidade do imposto especial de consumo sejam uniformes em todos os Estados-Membros (4).

24.      O regime geral dos impostos especiais de consumo instituído por esta diretiva aplica-se unicamente aos produtos enumerados no seu artigo 1.o, n.o 1, a saber, produtos energéticos e eletricidade, álcool e bebidas alcoólicas, bem como tabaco manufaturado.

25.      A eficácia deste regime exige que a sujeição ao imposto especial de consumo ocorra no momento do aparecimento de um desses produtos no mercado interno. Daqui decorre que a natureza de imposto sobre o consumo do imposto especial de consumo requer que a exigibilidade se situe o mais próximo possível do consumidor final.

26.      O legislador da União traduziu estas exigências da seguinte forma. O artigo 2.o da Diretiva 2008/118 prevê que o facto tributável do imposto especial de consumo é constituído pelo fabrico ou pela importação dos referidos produtos no território da União. O artigo 7.o, n.o 1, desta diretiva dispõe que o imposto especial de consumo se torna exigível no momento e no Estado-Membro da introdução no consumo, e o artigo 9.o, primeiro parágrafo, da mesma, enuncia que as condições de exigibilidade e a taxa do imposto especial de consumo aplicáveis são as vigentes na data em que o mesmo se torna exigível no Estado-Membro em que é efetuada a introdução no consumo.

27.      Regra geral, decorre um lapso de tempo entre a ocorrência do facto tributável e o momento da exigibilidade do imposto especial de consumo. Foi assim que o legislador da União previu a possibilidade de os produtos sujeitos ao imposto especial de consumo serem sujeitos a um regime de suspensão do imposto, definido no artigo 4.o, ponto 7, da Diretiva 2008/118, como «um regime fiscal aplicável à produção, transformação, detenção e circulação dos produtos sujeitos ao imposto especial de consumo não abrangidos por um procedimento ou regime aduaneiro suspensivo, em que a cobrança do imposto especial de consumo é suspensa». Nesta hipótese, a introdução no consumo é diferida para a saída, regular ou irregular, do produto em causa desse regime, pelo que qualquer operação sobre o produto pode ser realizada sem que o imposto especial de consumo se torne exigível.

28.      As outras hipóteses de «introdução no consumo» são, em conformidade com o artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva 2008/118, a detenção, a produção (regular ou irregular) e a importação (regular ou irregular) de produtos sujeitos a impostos especiais de consumo fora de um regime de suspensão do imposto.

29.      Só tendo presente este contexto normativo é que, na minha opinião, pode ser tomada uma posição quanto à interpretação que o Tribunal de Justiça é chamado a dar no presente processo.

 Quanto à articulação entre o artigo 7.o e o artigo 9.o da Diretiva 2008/118

30.      Importa recordar que, em conformidade com o artigo 106.o do CIEC, o imposto especial de consumo relativo à quantidade de cigarros que exceda o limite quantitativo nele referido se torna exigível no mês de janeiro do ano seguinte ao da sua introdução no consumo, sendo esta última efetuada durante o período compreendido entre 1 de setembro e 31 de dezembro de um ano civil.

31.      É facto assente que esta regulamentação se explica pelo objetivo de proteger os interesses financeiros da República Portuguesa evitando que os operadores económicos possam proceder à introdução no consumo de cigarros em quantidades excessivas no final do ano, prevendo um aumento da taxa do imposto especial de consumo, constituindo tal prática uma forma de abuso.

32.      Tendo em conta estes elementos, coloca-se a questão de saber se essa regulamentação é conforme com o regime estabelecido pela Diretiva 2008/118.

33.      A resposta exige que seja determinada a exata articulação entre o artigo 7.o e o artigo 9.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2008/118.

34.      Para este efeito, importa, antes de mais, compreender o artigo 7.o, n.o 1, desta diretiva sob um prisma literal e teleológico.

35.      A leitura da sua redação revela que a exigibilidade do imposto especial de consumo se situa no momento da introdução no consumo do produto em causa, sendo as hipóteses de «introdução no consumo» exaustivamente enumeradas no n.o 2 deste artigo.

36.      Esta disposição tem por objetivo harmonizar o momento da exigibilidade do imposto especial de consumo a fim de garantir o funcionamento adequado do mercado interno. Esta ligação funcional entre o seu objetivo e o objetivo, mais geral, da Diretiva 2008/118 é, aliás, confirmada pela proposta da Comissão relativa à Diretiva 92/12 (5), que prevê a introdução de um «novo conceito comunitário» de exigibilidade dos impostos especiais de consumo com o fundamento de que «é indispensável que a exigibilidade esteja ligada à introdução no consumo» (6).

37.      O caráter claro e incondicional da redação do artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 2008/118, bem como a inexistência de qualquer remissão para os direitos dos Estados‑Membros, em conjugação com o papel central desta disposição para efeitos do cumprimento do objetivo harmonizador dessa diretiva, militam a favor de uma interpretação segundo a qual a disposição em questão não é compatível com uma regra nacional que associa a exigibilidade dos impostos especiais de consumo a um momento diferente do da introdução no consumo.

38.      Quanto ao artigo 9.o da Diretiva 2008/118, este prevê, no seu primeiro parágrafo, que as condições de exigibilidade e a taxa do imposto especial de consumo a aplicar são as vigentes na data em que o mesmo se torna exigível no Estado‑Membro em que é efetuada a introdução no consumo, e, no segundo parágrafo, que a perceção, a cobrança, e, se adequado, o reembolso ou a dispensa de pagamento do imposto especial de consumo se efetuam segundo as regras estabelecidas por cada EstadoMembro.

39.      Este segundo parágrafo não constitui, como alegou, nomeadamente, o Governo português na audiência, uma exceção à aplicação do artigo 9.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2008/118. Com efeito, nenhum elemento da redação do artigo 9.o desta diretiva sugere que existe essa relação entre estas duas regras. Bem pelo contrário, o exame desta redação revela que este artigo tem a função de delimitar o perímetro do poder regulamentar dos Estados‑Membros fora do âmbito material abrangido pelas disposições harmonizadas.

40.      Com efeito, há que observar que as «condições de exigibilidade» mencionadas no artigo 9.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2008/118 devem necessariamente ser distinguidas das condições relativas ao conceito de exigibilidade, as quais, segundo o considerando 8 desta diretiva, devem permanecer uniformes em todos os Estados-Membros (7).

41.      Estas últimas, que estão especificadas no artigo 7.o, n.o 1, e no artigo 9.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2008/118, dizem respeito ao momento a partir do qual o imposto especial de consumo é exigível, ao Estado-Membro em que deve ser cobrado, bem como à data relevante para a identificação da taxa do imposto especial de consumo e das condições de exigibilidade aplicáveis. No entanto, as «condições de exigibilidade» referidas no artigo 9.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2008/118 são seguramente outras condições, como as que se referem, como especificado no segundo parágrafo deste artigo, às regras de perceção, cobrança, dispensa de pagamento ou reembolso dos impostos especiais de consumo.

42.      De resto, o Tribunal de Justiça considerou, no Acórdão Van de Water (8), que o artigo 6.o da Diretiva 92/12, que foi substituído, sem alterações substanciais, pelo artigo 9.o da Diretiva 2008/118, devia ser entendido desta forma. Mais precisamente, o Tribunal de Justiça declarou que «ao assegurar, no artigo 6.o, n.o 1, da [Diretiva 92/12], que as regras relativas à exigibilidade do imposto especial de consumo sejam idênticas em todos os Estados‑Membros, o legislador [da União], evidentemente, não procurou harmonizar as regras que regulam a perceção e a cobrança do imposto por aqueles» e que «[o] n.o 2 do mesmo artigo, pelo contrário, deixou expressamente aos Estados‑Membros a responsabilidade de determinar as referidas regras […]».

43.      Por outras palavras, o exercício do poder regulamentar dos Estados‑Membros continua confinado à determinação das regras relativas à perceção, à cobrança, à dispensa de pagamento e ao reembolso do imposto especial de consumo. Assim, não pode em caso algum afetar o conceito e as condições de exigibilidade do imposto especial de consumo, incluindo o de o mesmo se tornar exigível no momento da introdução no consumo dos produtos a ele sujeitos, salvo se prejudicar o objetivo de harmonização que constitui a própria razão de ser da Diretiva 2008/118 (9).

44.      Decorre destas considerações que, contrariamente ao que a Comissão sustenta nas suas observações escritas, uma conclusão análoga à do Acórdão Comissão/Portugal (10) não pode ser alcançada no caso em apreço (11).

45.      O processo na origem deste acórdão dizia respeito a um regime fiscal português que prevê que os maços de cigarros introduzidos no consumo no decurso de um dado exercício podiam ser vendidos e comercializados até ao final do terceiro mês do ano que se seguiu ao ano em que foram introduzidos no consumo (12). Uma vez que todos os maços de cigarros que não fossem vendidos antes de esse prazo expirar seriam tributados à taxa do imposto especial de consumo em vigor nesse ano, a Comissão sustentou que o regime fiscal português tinha por efeito obrigar os operadores económicos a pagar um imposto especial de consumo adicional por maços de cigarros que já tinham sido legalmente introduzidos no consumo, em violação dos artigos 7.o e 9.o da Diretiva 2008/118.

46.      No seu acórdão, o Tribunal de Justiça considerou que esse regime fiscal não tinha por efeito exigir o imposto especial de consumo devido numa data diferente da da introdução no consumo. Com efeito, o Tribunal de Justiça observou, a este respeito, que este regime continha uma regra segundo a qual, no termo do prazo de comercialização e de venda ao público, os operadores económicos podiam efetuar uma nova introdução no consumo dos referidos maços, mediante a aposição de uma nova estampilha fiscal (ou, no caso do imposto especial de consumo já liquidado, esses operadores podiam ser reembolsados na condição de esses maços serem destruídos sob controlo aduaneiro) (13).

47.      Foi por esta razão que o Tribunal de Justiça concluiu que o direito reconhecido aos Estados-Membros no artigo 9.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2008/118 implica necessariamente que estes disponham do poder de adotar medidas do mesmo tipo da prevista pelo referido regime.

48.      Não é este o caso no presente processo. Como foi exposto anteriormente, o regime fiscal estabelecido pelo artigo 106.o do CIEC prevê invariavelmente que a taxa do imposto especial de consumo aplicável aos maços de cigarros introduzidos no consumo em violação do limite quantitativo aí referido não é a taxa em vigor no momento da introdução no consumo, como exige o artigo 9.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2008/118, mas a que estava em vigor no momento da apresentação da declaração de apuramento, ou seja, em data posterior à da introdução no consumo. Com efeito, e como foi confirmado pelo Governo português na audiência, o direito português não prevê nenhuma nova introdução no consumo dos referidos produtos.

49.      A este respeito, o Governo português alegou, nomeadamente, que, no n.o 59 do Acórdão Comissão/Portugal, o Tribunal de Justiça reconheceu que os Estados-Membros têm um interesse legítimo em tomar as medidas adequadas para proteger os seus interesses financeiros e que o combate à fraude, à evasão fiscal e aos eventuais abusos é um objetivo prosseguido pela Diretiva 2008/118. Assim, segundo esse Estado‑Membro, deve considerar-se que este tinha o direito de adotar um regime fiscal como o do caso em apreço, dado que esse regime visa lutar contra a prática abusiva do forestalling.

50.      Ora, ninguém contesta que os Estados‑Membros têm, em princípio, o direito de adotar um regime fiscal destinado a realizar tais objetivos. No entanto, parece evidente que este direito está subordinado à condição de tal regime não ultrapassar o perímetro do poder regulamentar conferido a esses Estados pelo artigo 9.o, segundo parágrafo, da Diretiva 2008/118.

51.      Esta condição não está, contudo, preenchida no caso em apreço, visto que o regime a que se refere o artigo 106.o do CIEC implica que a taxa aplicável aos maços de cigarros que excedam o limite quantitativo previsto é a que está em vigor em data posterior à da introdução no consumo. Ao fazê-lo, esta regulamentação afeta o momento da exigibilidade do imposto especial de consumo e interfere, assim, com o âmbito de aplicação das disposições harmonizadas da Diretiva 2008/118.

52.      A interpretação proposta nas presentes conclusões é corroborada, na minha opinião, por um elemento de natureza contextual que me parece revestir especial importância. Com efeito, observo que as situações em que os impostos especiais de consumo relativos a um produto já introduzido no consumo são exigíveis num momento posterior ao da introdução no consumo estão expressamente referidas no capítulo V da Diretiva 2008/118 («Circulação e tributação de produtos sujeitos a impostos especiais de consumo após a introdução no consumo»). As disposições deste capítulo, que respondem à exigência de garantir o respeito do princípio da territorialidade fiscal, segundo o qual o pagamento do imposto especial de consumo deve ser efetuado no país de consumo efetivo, e evitar a dupla tributação dos produtos em causa (14), não prejudicam, segundo o considerando 26 da diretiva, a economia geral desta última (15).

53.      Estas disposições dizem respeito a situações em que, na sequência da introdução no consumo de um produto sujeito ao imposto especial de consumo e do pagamento do mesmo, esse produto foi objeto de circulação na União. Mais precisamente, a secção 1 do referido capítulo diz respeito aos produtos adquiridos por particulares e transportados para outro Estado‑Membro, a secção 2 visa os produtos detidos para fins comerciais noutro Estado‑Membro, e a secção 3 diz respeito às vendas à distância quando o depositário autorizado ou o destinatário registado que comprou os produtos está estabelecido noutro Estado‑Membro (16). É facto assente que o regime fiscal em causa no caso em apreço não está abrangido por nenhuma dessas situações.

54.      Por último, há que acrescentar que a Diretiva (UE) 2020/262 (17), que revogou e substituiu recentemente a Diretiva 2008/118, oferece um elemento adicional em apoio da leitura adotada nas presentes conclusões. Embora esta diretiva não seja aplicável ratione temporis ao processo principal, pode, no entanto, servir de elemento de interpretação da Diretiva 2008/118.

55.      O artigo 8.o da Diretiva 2020/262, que substitui o artigo 9.o da Diretiva 2008/118, contém um terceiro parágrafo (novo), segundo o qual, «[e]m derrogação do primeiro parágrafo, em caso de alteração das taxas do imposto especial de consumo, as existências de produtos sujeitos a impostos especiais de consumo já introduzidos no consumo podem, se for caso disso, ser sujeitas a um aumento ou a uma redução do imposto especial de consumo» (18),  reproduzindo o primeiro parágrafo deste artigo o do referido artigo 9.o Obviamente, o legislador da União pretendeu assim derrogar a disposição segundo a qual a taxa do imposto especial de consumo aplicável é a que está em vigor à data da exigibilidade do imposto especial de consumo, ao autorizar os Estados-Membros, na hipótese de uma alteração da taxa do imposto especial de consumo, a aplicar às referidas existências de produtos a taxa majorada ou reduzida, e não a taxa em vigor no momento da introdução no consumo desses produtos (19).

56.      Na minha opinião, não há dúvida de que a introdução desta derrogação expressa pelo legislador da União demonstra a sua vontade de reduzir o âmbito de aplicação do artigo 9.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2008/118.

57.      Este novo parágrafo tem por efeito subtrair regimes fiscais, como o do caso em apreço, à harmonização prosseguida através do estabelecimento de um regime geral dos impostos especiais de consumo. Graças a esta disposição derrogatória, os Estados-Membros dispõem agora de um poder regulamentar que lhes permite, nomeadamente, adotar medidas como as que visam lutar contra o forestalling.

58.      Diferentemente da Diretiva 2020/262, o artigo 7.o e o artigo 9.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2008/118 não deixam aos Estados-Membros nenhum poder regulamentar quanto à determinação do conceito de exigibilidade e das condições relativas a esse conceito que aí estão previstas. Isto implica, a contrario, que um regime fiscal como o do caso em apreço, que poderia ser conforme com a Diretiva 2020/262, não é lícito na vigência da Diretiva 2008/118.

59.      Tendo em conta o que precede, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à segunda questão prejudicial submetida pelo Supremo Tribunal Administrativo que os artigos 7.o e 9.o da Diretiva 2008/118 se opõem a um regime jurídico como o previsto pelo artigo 106.o do CIEC.

 Conclusão

60.      Tendo em conta todas as considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à segunda questão prejudicial submetida pelo Supremo Tribunal Administrativo (Portugal) do seguinte modo:

Os artigos 7.o e 9.o da Diretiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo e que revoga a Diretiva 92/12/CEE

devem ser interpretados no sentido de que:

se opõem a uma legislação nacional por força da qual as quantidades de cigarros que excedam o limite quantitativo de introdução no consumo nela referido ficam sujeitas à taxa do imposto especial de consumo em vigor em data posterior à da introdução no consumo.


1      Língua original: francês.


2      Diretiva do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo e que revoga a Diretiva 92/12/CEE (JO 2009, L 9, p. 12).


3      Diretiva do Conselho, de 25 de fevereiro de 1992, relativa ao regime geral, à detenção, à circulação e aos controlos dos produtos sujeitos a impostos especiais de consumo (JO 1992, L 76, p. 1). Uma vez que as disposições pertinentes da Diretiva 92/12 têm um alcance, em substância, idêntico às da Diretiva 2008/118, a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à Diretiva 92/12 é igualmente aplicável à Diretiva 2008/118 [v., neste sentido, Acórdão de 9 de junho de 2022, IMPERIAL TOBACCO BULGARIA (C‑55/21, EU:C:2022:459, n.o 37 e jurisprudência referida].


4      V., nomeadamente, considerando 8 da Diretiva 2008/118.


5      V., neste sentido, proposta de diretiva do Conselho relativa ao regime geral, bem como à detenção e à circulação dos produtos sujeitos a impostos sobre consumos específicos [COM(90) 431 final] (JO 1990, C 322, p. 1). Há que observar que a exposição de motivos e o comentário artigo a artigo em língua francesa só estão disponíveis no documento que contém a versão em língua portuguesa.


6      V. p. 4 da versão em língua portuguesa da proposta [COM(90) 431 final]. Importa salientar que o comentário referido diz respeito ao artigo 4.o desta proposta, atual artigo 6.o da Diretiva 92/12, sem que nenhuma alteração substancial tenha sido efetuada em resultado do processo legislativo. O texto deste último foi, em seguida, retomado pelos artigos 7.o e 9.o da Diretiva 2008/118.


7      Importa salientar, a este respeito, que a Diretiva 2008/118 faz referência, em várias das suas disposições, às condições de exigibilidade, sem, no entanto, fornecer a sua definição. Além do considerando 8 e do artigo 9.o, primeiro parágrafo, desta diretiva, v. artigos 33.o e 36.o da mesma.


8      Acórdão de 5 de abril de 2001 (C‑325/99, EU:C:2001:201, n.o 40).


9      V., nomeadamente, Acórdão de 8 de fevereiro de 2018, Comissão/Grécia (C‑590/16, EU:C:2018:77, n.o 56), segundo o qual tal interpretação «equivaleria a autorizar, praeter legem, uma derrogação ao artigo 7.o da Diretiva 2008/118 e comprometeria o objetivo de harmonização [das condições] de exigibilidade dos impostos especiais de consumo […]».


10      Acórdão de 29 de junho de 2017 (C‑126/15, a seguir «Acórdão Comissão/Portugal», EU:C:2017:504).


11      O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, com efeito, na decisão de reenvio, sobre a possibilidade de aplicar as conclusões que o Tribunal de Justiça retirou no seu Acórdão Comissão/Portugal, tendo em conta o facto de o quadro jurídico dos dois processos não ser o mesmo.


12      As disposições do direito português que regulam este regime são o artigo 27.o da Portaria n.o 1295/2007 e o ponto 4.2.9. do capítulo XII do Manual dos Impostos Especiais de Consumo.


13      Acórdão Comissão/Portugal, n.o 57.


14      Proposta [COM(90) 431 final], n.os 13 e 16.


15      Esse considerando está redigido nos seguintes termos: «É conveniente clarificar, sem alterar a sua economia geral, as normas de tributação e os procedimentos aplicáveis à circulação de produtos cujo imposto especial de consumo já tenha sido pago num Estado‑Membro.»


16      Resulta da proposta de diretiva do Conselho relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo [COM(2008) 78 final/2], de 26 de fevereiro de 2008, que o capítulo V substitui os artigos 7.o a 10.o da Diretiva 92/12 e retoma a proposta da Comissão relativa a uma alteração destes artigos apresentada no documento [COM(2004) 227 final], de 2 de abril de 2004.


17      Diretiva do Conselho, de 19 de dezembro de 2019, que estabelece o regime geral dos impostos especiais de consumo (JO 2020, L 58, p. 4).


18      O sublinhado é meu.


19      Importa salientar que a Comissão confirmou, na audiência, que um regime jurídico como o previsto no artigo 106.o do CIEC é abrangido pelo artigo 8.o, terceiro parágrafo, da Diretiva 2020/262.