Edição provisória
CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL
TAMARA ĆAPETA
apresentadas em 16 de maio de 2024 (1)
Processos apensos C‑269/23 P e C‑272/23 P
Hengshi Egypt Fiberglass Fabrics SAE,
Jushi Egypt for Fiberglass Industry SAE (C‑269/23 P)
Jushi Egypt for Fiberglass Industry SAE (C‑272/23 P)
contra
Comissão Europeia
«Recurso de decisão do Tribunal Geral — Subvenções — Regulamento (UE) 2016/1037 — Acordo sobre as Subvenções e as Medidas de Compensação da Organização Mundial do Comércio (OMC) — Compensação de uma contribuição financeira de um Estado terceiro no território de outro Estado terceiro — Validade»
I. Introdução
1. A regulamentação das subvenções é um exercício delicado. A sua concessão está intimamente ligada à soberania dos Estados, uma vez que estes são geralmente livres de favorecer as suas indústrias sem terem de justificar os seus atos (2).
2. No entanto, certos parceiros comerciais da União Europeia recorrem cada vez mais às subvenções como um meio dissimulado de política económica (3). Em particular, as ações da República Popular da China (a seguir «China») tornaram‑se o alvo de um esforço internacional para combater «subvenções que distorcem o mercado e o comércio» (4), em especial a política «Go Global» deste país (5), que incentiva as empresas chinesas a investir no estrangeiro (6).
3. Os presentes recursos abordam os potenciais efeitos de distorção dessa política no mercado interno. Em causa está a questão de saber se a Comissão Europeia podia legitimamente recorrer ao uso de medidas de compensação, tal como regulado pelo Regulamento Antissubvenções de Base (7) e pelo Acordo sobre as Subvenções e as Medidas de Compensação ( a seguir «Acordo SMC») (8), para aplicar medidas de compensação a subvenções concedidas por um membro da OMC (a China) no território de outro membro da OMC (a República Árabe do Egito) (a seguir «Egito») (9).
4. Nos seus Acórdãos Hengshi Egypt Fiberglass Fabrics e Jushi Egypt for Fiberglass Industry/Comissão (10) e Jushi Egypt for Fiberglass Industry/Comissão (11), (a seguir, em conjunto, «acórdãos impugnados»), o Tribunal Geral confirmou a validade da utilização de direitos de compensação naquele tipo específico de configuração factual. As recorrentes nesses processos impugnam agora essa conclusão.
5. Uma vez que os inquéritos subjacentes representam a primeira vez que um membro da OMC aplicou medidas de compensação dos efeitos prejudiciais de «subvenções transnacionais» (12), esta problemática é nova e controversa (13), e não apenas da perspetiva do direito da União (14).
II. Antecedentes do litígio
6. Os antecedentes dos recursos subjacentes são descritos nos n.os 2 a 26 dos acórdãos impugnados. Para efeitos da presente análise, importa repetir o seguinte.
7. A Zona de Cooperação Económica e Comercial do Suez entre a China e o Egito (a seguir «Zona CECS») está integrada numa zona económica livre mais vasta situada no norte do Golfo do Suez e faz parte do território do Egito (15).
8. Nos termos da Lei n.° 83/2002 do Egito relativa às Zonas Económicas Especiais, esta zona foi classificada como zona económica especial pelo Governo do Egito (16).
9. Identificada pela China como uma das primeiras 18 «zonas de comércio e cooperação no estrangeiro» (17) oficialmente aprovadas, desde 2013, as empresas chinesas «que se decidam pelo estrangeiro», incluindo para operar na Zona CECS, podem beneficiar de políticas fiscais e apoio financeiro, empréstimos em condições preferenciais, apoio financeiro concedido através de empréstimos sindicados, créditos à exportação, financiamento de projetos, investimentos em capitais próprios e seguros de crédito à exportação (18).
10. Em 2016, os presidentes da China e do Egito assinaram o Acordo entre o Ministério do Comércio da República Popular da China e a Autoridade Geral da Zona Económica do Canal de Suez da República Árabe do Egito relativo à Zona de Cooperação Económica e Comercial do Suez (19).
11. Nos termos deste acordo de cooperação, os Governos da China e do Egito devem desenvolver conjuntamente a Zona CECS, em conformidade com as respetivas estratégias nacionais (20). No âmbito deste acordo, o Governo do Egito disponibiliza terrenos e mão de obra e oferece algumas reduções fiscais, enquanto as empresas chinesas ativas na zona exploram as instalações de produção com os seus ativos e os seus gestores. A China concede diretamente financiamento adicional (21).
12. As demandantes em primeira instância são a Jushi Egypt for Fiberglass Industry SAE (a seguir «Jushi Egypt») e a Hengshi Egypt Fiberglass Fabrics SAE (a seguir «Hengshi Egypt»). Ambas são sociedades de direito egípcio estabelecidas no Egito pela Jushi China e pela Hengshi China, as respetivas sociedades‑mãe chinesas. Estas empresas estão coligadas e, em última análise, pertencem ao China National Building Material Group, uma empresa estatal (22).
13. Por seu lado, este grupo é detido, em última instância, pela Comissão de Supervisão e Administração dos Ativos Estatais (a seguir «SASAC») do Conselho de Estado da China (23). Diretamente controlada pelo Conselho de Estado da China, o mais alto órgão administrativo daquele país, a SASAC é descrita nos regulamentos impugnados «[como] o principal veículo através do qual os poderes públicos chineses controlam de várias formas as empresas estatais, para que implementem as suas políticas e planos em vez de seguirem uma lógica de mercado nas suas operações comerciais» (24).
14. Os produtos em causa nestes recursos são produtos de fibra de vidro de filamento contínuo (a seguir «MFV») e têxteis em fibra de vidro (a seguir «TFV»). Os MFV são a matéria‑prima direta a montante dos TFV.
15. Os MFV são essencialmente areia transformada em filamentos de fibra de vidro flexíveis que podem então ser utilizados como tal ou têxteis tecidos e/ou agulhados em TFV. Combinados com resinas para criar materiais compósitos leves, podem ser utilizados para aumentar a resistência, a leveza e a durabilidade de componentes. Por conseguinte, são utilizados, designadamente, nas indústrias automóvel, marítima, aeroespacial, da energia eólica, das infraestruturas, dos tubos e da construção civil.
16. A ambiciosa política climática da União Europeia levou a um aumento substancial da procura de MFV e TFV na União (25).
17. Tanto a Jushi Egypt como a Hengshi Egypt produzem TFV na Zona CECS, e a Jushi Egypt também produz MFV nessa zona (26). Ambas as empresas exportam esses produtos para a União Europeia a partir dessa zona (27).
18. Nos regulamentos impugnados, com base nos elementos de prova de que dispunha (28), a Comissão concluiu, nomeadamente, que existia um nexo (29) entre as medidas tomadas pelo Governo da China e pelo Governo do Egito, por exemplo em matéria de concessão de empréstimos preferenciais (30) e de apoio ao investimento em capital (31) a favor da Jushi Egypt e da Hengshi Egypt, de modo que as contribuições financeiras concedidas pelo Governo da China a estas empresas podiam ser imputadas ao Governo do Egito (32).
19. Nos regulamentos impugnados, a Comissão adotou os direitos de compensação sobre as importações de TFV e MFV para a União Europeia. Relativamente às recorrentes, esses direitos foram fixados em 13,1 %.
III. Acórdãos impugnados
20. Por petições apresentadas na Secretaria do Tribunal Geral em 28 de julho de 2020 e 27 de agosto de 2020, as recorrentes interpuseram os seus recursos de anulação dos regulamentos impugnados.
21. Em 1 de março de 2023, o Tribunal Geral proferiu os acórdãos impugnados, negando provimento aos recursos das recorrentes e condenando‑as a suportar as suas próprias despesas e as da Comissão.
IV. Tramitação do processo no Tribunal de Justiça
22. Nos seus recursos, interpostos respetivamente em 25 de abril de 2023 e 27 de abril de 2023, as recorrentes pedem que o Tribunal de Justiça anule os acórdãos impugnados, acolha parcialmente os fundamentos invocados em primeira instância e condene a Comissão e os intervenientes nas despesas.
23. A Comissão pede que o Tribunal de Justiça negue provimento aos recursos na sua totalidade e condene as recorrentes nas despesas.
24. É apoiada nestes pedidos pela Tech‑Fab Europe eV (no processo C‑269/23 P) e pela Associação Europeia de Produtores de Fibra de Vidro (no processo C‑272/23 P).
V. Análise
25. As presentes conclusões estão estruturadas da seguinte forma. Uma vez que a principal questão jurídica subjacente a estes recursos procura abordar a questão da validade da metodologia utilizada pela Comissão para aplicar medidas de compensação das «subvenções transnacionais» da China no Egito, abordarei primeiro essa questão. Proporei a conclusão de que o Tribunal Geral não cometeu nenhum erro ao validar a metodologia em causa com base no Regulamento Antissubvenções de Base e no Acordo SMC (secção A) (33).
26. Só depois abordarei os fundamentos comuns de recurso de natureza mais técnica: a determinação do elemento de comparação para efeitos de aplicação de medidas de compensação no âmbito do regime egípcio de reduções de direitos de importação (secção B) e a aplicabilidade de medidas de compensação no que respeita ao tratamento fiscal das perdas cambiais (secção C). Por último, debruçar‑me‑ei sobre o único fundamento que difere entre os dois recursos pendentes no Tribunal de Justiça: o montante da subvenção passível de medidas de compensação para as entidades de um grupo (secção D).
A. A aplicação do instrumento antissubvenções às «subvenções transnacionais»
27. O segundo e terceiro fundamentos de recurso no processo C‑269/23 P e o primeiro e segundo fundamentos de recurso no processo C‑272/23 P incidem, no essencial, sobre a questão de saber se a Comissão podia legitimamente recorrer ao instrumento antissubvenções, tal como regulado pelo Regulamento Antissubvenções de Base, para aplicar medidas de compensação do apoio financeiro direto e indireto recebido pelas recorrentes do Governo da China para o fabrico do produto controvertido no Egito (34).
28. Nos acórdãos impugnados, o Tribunal Geral confirmou essa possibilidade. Com base numa interpretação literal, sistemática e teleológica, esse órgão jurisdicional concluiu que «o Regulamento Antissubvenções de Base não exclui que, mesmo que a contribuição financeira não provenha diretamente dos poderes públicos do país de origem ou de exportação, lhes possa ser imputada» (35). Chegou a essa conclusão com base na interpretação do artigo 3.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento Antissubvenções de Base, que define o conceito de «subvenção», em conjugação com o considerando 5 do mesmo regulamento (36).
29. Subscrevo a conclusão do Tribunal Geral. A seguir, fundamentarei mais detalhadamente a minha posição.
30. No fundo, a questão jurídica subjacente aos presentes recursos diz respeito ao alcance do conceito de «subvenção», que é definido no artigo 3.° do Regulamento Antissubvenções de Base.
31. Na sua versão inglesa, essa disposição estabelece que uma subvenção deve ser entendida como «a financial contribution by a government in the country of origin or export» (37) [na versão portuguesa: «uma contribuição financeira dos poderes públicos do país de origem ou de exportação»], em virtude da qual é concedida uma vantagem (38).
32. A linha de argumentação da Comissão remete diretamente para as partes realçadas do texto dessa disposição na versão inglesa. Os seus argumentos dizem essencialmente respeito às diferenças entre a utilização do artigo indefinido «a» [na versão inglesa, que seria equivalente na versão portuguesa ao artigo indefinido «um»] e do artigo definido «the» [na versão inglesa, que seria equivalente na versão portuguesa ao artigo definido «o»] no artigo 3.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento Antissubvenções de Base e a consequente abertura deste instrumento à aplicação de medidas de compensação sobre as subvenções chinesas concedidas a empresas estabelecidas no Egito.
33. No entanto, como as recorrentes salientam corretamente, uma análise das diferentes versões linguísticas do artigo 3.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento Antissubvenções de Base revela diferenças.
34. Algumas versões linguísticas dessa disposição podem, de facto, ser lidas, à semelhança da versão inglesa, no sentido de deixar, até certo ponto, em aberto a fonte da contribuição financeira que beneficia o produto controvertido no país de origem ou de exportação (39). Porém, outras versões linguísticas estão redigidas de uma forma que indica que o conceito de subvenção se restringe às contribuições financeiras concedidas pelos poderes públicos do país de origem ou de exportação do produto em causa (40).
35. A fim de assegurar uma aplicação e uma interpretação uniformes do Regulamento Antissubvenções de Base, o seu artigo 3.° deve, portanto, ser interpretado em função do contexto e da finalidade da regulamentação a que pertence (41).
36. Os princípios que regem o âmbito e a aplicação do instrumento antissubvenções estão estabelecidos no artigo 1.°, n.° 1, do Regulamento Antissubvenções de Base. Nos termos desta disposição, pode ser instituído um direito de compensação destinado a neutralizar «qualquer subvenção concedida, direta ou indiretamente, ao fabrico, produção, exportação ou transporte de produtos cuja introdução em livre prática na União cause prejuízo» (42).
37. Desta definição decorre claramente que se pretende que o Regulamento Antissubvenções de Base seja aplicável em qualquer cenário em que possa ser necessário instituir um direito de compensação para neutralizar a subvenção de um produto estrangeiro através de um vasto leque de transferências de valor que tenham por consequência prejudicar a indústria da União de um produto similar.
38. O artigo 1.°, n.° 1, do Regulamento Antissubvenções de Base não exige que a subvenção prejudicial provenha diretamente do país de onde o produto em causa é originário ou exportado. Pelo contrário, a referência à possibilidade de tal subvenção ser concedida «indiretamente» sugere que não tem necessariamente de existir um nexo territorial com o país de origem ou de exportação, desde que essa concessão possa ser associada ao fabrico, à produção, à exportação ou ao transporte de qualquer produto cuja introdução no mercado interno cause prejuízo.
39. Essa interpretação é também corroborada pelo artigo 2.°, alínea a), do Regulamento Antissubvenções de Base, que, na parte pertinente, estabelece que uma «subvenção [passível de medidas de compensação] pode ser concedida pelos poderes públicos do país de origem do produto importado, ou pelos poderes públicos de um país intermediário do qual o produto seja exportado para a União» (43). Por conseguinte, ao utilizar o verbo modal «poder», esta disposição deixa também em aberto o grupo de possíveis entidades que concedem uma subvenção passível de medidas de compensação, não o limitando ao país de origem ou de exportação do produto em causa.
40. Além disso, ao contrário do que alegam as recorrentes, esta consideração não é prejudicada pela redação do artigo 4.°, n.os 2 e 3, do Regulamento Antissubvenções de Base, que trata da questão do caráter específico de uma subvenção passível de medidas de compensação e estabelece que esse caráter específico é avaliado por referência às «atribuições da entidade que concede a subvenção».
41. De facto, essa disposição é omissa quanto à questão de saber se a entidade que concede a subvenção tem de estar situada no país de exportação ou de origem do produto controvertido.
42. Assim, tal como o Tribunal Geral corretamente concluiu (44), quando, como acontece nos inquéritos subjacentes, a Comissão pode, com base nos elementos de prova de que dispõe, imputar uma contribuição financeira aos poderes públicos do país de origem ou de exportação do produto controvertido, não obstante essa contribuição provir originariamente dos poderes públicos ou entidades públicas de um país terceiro, o artigo 4.°, n.os 2 e 3, do Regulamento Antissubvenções de Base permite que a Comissão trate os primeiros poderes públicos como a «entidade que concede a subvenção» relativamente àquela contribuição financeira específica (45).
43. Por último, tal como a Comissão observa corretamente, esta interpretação é também corroborada pelo considerando 5 do Regulamento Antissubvenções de Base, que explica, aparentemente de forma coerente em todas as versões linguísticas (46), que existe uma subvenção quando se demonstra a existência de «uma contribuição financeira da parte das autoridades ou de uma entidade pública no território de um país» (47).
44. Neste contexto, um produto é considerado objeto de subvenções não só quando a subvenção pode ser imputada ao país de origem ou de exportação do produto controvertido, mas também quando é possível identificar, com base nos elementos de prova disponíveis, outros poderes públicos ou entidades públicas dos quais provenha a subvenção prejudicial.
45. Esta interpretação é também corroborada pelo objetivo do Regulamento Antissubvenções de Base, que, desde a sua forma original de 1968 (48), visa principalmente ajudar a indústria da União a restabelecer o equilíbrio das condições de concorrência no mercado interno que são afetadas por subvenções proibidas concedidas no estrangeiro (49).
46. Em conclusão, o Regulamento Antissubvenções de Base não se restringe a subvenções concedidas pelos poderes públicos de um Estado no seu «próprio» território.
47. As recorrentes afirmam, no entanto, que o âmbito da regulamentação antissubvenções, se entendido dessa forma, não é compatível com as obrigações da União Europeia decorrentes do GATT e do Acordo SMC (50).
48. Concordo que esses acordos internacionais devem ser tidos em conta, uma vez que a União Europeia é parte signatária dos acordos da OMC, que incluem o GATT e o Acordo SMC, e que, por conseguinte, fazem parte da ordem jurídica da União e vinculam as suas instituições (51).
49. Embora seja facto assente que esses acordos não têm, em geral, efeito direto (52), a obrigação constitucional da União Europeia de respeitar os compromissos decorrentes dos seus compromissos internacionais (53), refletindo o princípio geral do direito internacional de respeito das obrigações contratuais (pacta sunt servanda) (54), exige que aquela interprete o direito da União, quando necessário, em conformidade com o direito da OMC (55).
50. De acordo com o seu considerando 3, o Regulamento Antissubvenções de Base tem por objetivo transpor para o direito da União, «na medida do possível», os compromissos assumidos a nível do Acordo SMC.
51. O Tribunal de Justiça já explicou que a mesma redação, embora no contexto do Regulamento Antidumping de Base (56), não pode, por si só, ser entendida como uma intenção por parte do legislador da União de transpor todas as regras contidas no Acordo SMC para o direito da União (57).
52. Por conseguinte, é incorreto concluir, como fez o Tribunal Geral (58), que essa redação constitui prova suficiente para presumir que o legislador da União pretendeu dar execução às obrigações específicas assumidas ao abrigo do artigo 1.°, n.° 1, alínea a), 1), do Acordo SMC.
53. No entanto, a redação do artigo 3.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento Antissubvenções de Base reflete essencialmente a do artigo 1.°, n.° 1, alínea a), 1), do Acordo SMC. Por conseguinte, o primeiro tem de ser interpretado em conformidade com o segundo (59).
54. O artigo 1.°, n.° 1, alínea a), 1), do referido acordo estabelece que «[se considera] que existe uma subvenção se […] [e]xistir uma contribuição financeira do Estado ou de qualquer entidade pública no território de um membro» [na versão inglesa: «a subsidy shall be deemed to exist if […] there is a financial contribution by a government or any public body within the territory of a Member»] (60).
55. Interpretando esta disposição de boa‑fé e em conformidade com o sentido comum dado aos seus termos no seu contexto, como exige o artigo 31.°, n.° 1, da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (Coletânea de Tratados das Nações Unidas, vol. 1155, p. 331), verifica‑se que a utilização específica do artigo indefinido «a» [na versão inglesa] na expressão «financial contribution by a government» do proémio do artigo 1.°, n.° 1, alínea a), 1), do Acordo SMC deixa em aberto a origem geográfica da fonte da contribuição financeira em causa, desde que a subvenção em questão provenha de qualquer membro da OMC.
56. Não considero que esta leitura seja afetada pelo qualificador «no território de um membro» presente no artigo 1.°, n.° 1, alínea a), 1), do Acordo SMC, uma vez que esta expressão se refere ao conceito de «Estado ou qualquer entidade pública» e não ao termo «contribuição financeira».
57. Esta conclusão é também compatível com o Acordo SMC, que interpreta e aplica o artigo VI do GATT de 1994 e cujo «principal objeto e finalidade […] é aumentar e melhorar as disciplinas do GATT em matéria de utilização de subvenções e de medidas de compensação» (61).
58. A este respeito, remeto, em particular, para o artigo VI, n.° 3, do GATT de 1994, que define um direito de compensação como um direito especial cobrado para neutralizar qualquer «prémio ou subvenção [concedido] […] ao fabrico, à produção ou à exportação de um produto», sem especificar quem concede tal prémio ou subvenção, e sem limitar territorialmente a entidade que o concede.
59. Por conseguinte, o artigo VI do GATT de 1994 abrange principalmente (62) todas as subvenções, independentemente da sua origem (63).
60. Também deste ponto de vista, uma interpretação diferente não só contrariaria o sentido comum dos termos utilizados no Acordo SMC e no artigo VI do GATT de 1994, como frustraria também o objeto e a finalidade dessas disposições se a União Europeia não pudesse neutralizar contribuições financeiras, como as que estão em causa no presente processo, unicamente em virtude da sua origem territorial.
61. Uma vez que não se pode retirar qualquer outra leitura do historial de negociações do artigo 1.°, n.° 1, alínea a), 1), do Acordo SMC (64), que pode constituir um meio complementar de interpretação deste acordo, na aceção do artigo 32.° da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, afigura‑se‑me claro que o artigo 1.°, n.° 1, alínea a), 1), do Acordo SMC não limita territorialmente o âmbito geográfico da fonte das contribuições financeiras ao membro da OMC em cujo território tem lugar a produção do produto controvertido (65).
62. Consequentemente, considero que o artigo 1.°, n.° 1, alínea a), 1), do Acordo SMC não se opõe a que se trate como subvenção um acordo através do qual um membro da OMC concede uma contribuição financeira a um produto fabricado no território de outro membro da OMC.
63. Daqui resulta que, por todas as razões acima expostas, considero que o Tribunal Geral não cometeu nenhum erro ao concluir que o âmbito de aplicação do Regulamento Antissubvenções de Base, tal como expresso, nomeadamente, no seu artigo 1.°, n.° 1, e no seu artigo 3.°, n.° 1, alínea a), também abrange a situação em que a Comissão pode, com base em elementos de prova suficientes, imputar o apoio financeiro recebido dos poderes públicos de um país terceiro aos poderes públicos de outro país terceiro.
64. Por conseguinte, proponho que o Tribunal de Justiça julgue improcedente o segundo e terceiro fundamentos de recurso no processo C‑269/23 P e o primeiro e segundo fundamentos de recurso no processo C‑272/23 P.
B. Determinação do elemento de comparação para efeitos de aplicação de medidas de compensação no âmbito do regime egípcio de reduções de direitos de importação para materiais importados
65. No quarto fundamento de recurso no processo C‑269/23 P e no terceiro fundamento de recurso no processo C‑272/23 P, as recorrentes alegam, no essencial, que o Tribunal Geral cometeu um erro quando validou a abordagem da Comissão de comparar a sua situação com a de uma empresa igualmente situada na Zona CECS, mas que vende para o mercado egípcio, para efeitos de aplicação de medidas de compensação ao benefício das recorrentes decorrente do regime de reduções de direitos de importação (66). Além disso, as recorrentes sustentam que a sua situação deveria ter sido comparada com um cenário teórico em que estariam estabelecidas fora da Zona CECS, mas, ainda assim, exportariam os produtos em causa para a União Europeia. Nesse tipo de situação, alegam as recorrentes, o Governo do Egito não teria renunciado a receitas através do regime de reduções de direitos de importação, uma vez que nunca teria procurado cobrar direitos de importação relativamente às matérias‑primas importadas para o fabrico dos produtos controvertidos.
66. No cerne da argumentação das recorrentes está, portanto, a questão de saber qual deve ser a situação comparável no caso em apreço (67).
67. Porém, a única disposição legal que as recorrentes citam no texto dos seus recursos em apoio do seu argumento é o artigo 5.° do Regulamento Antissubvenções de Base. Esta disposição, que diz respeito à quantificação do montante da subvenção passível de medidas de compensação, não regula o elemento de comparação a utilizar para determinar se o Governo do Egito optou por renunciar a determinadas receitas que seriam normalmente exigíveis, na aceção do artigo 3.°, n.° 1, alínea a), ii), do Regulamento Antissubvenções de Base (uma vez que, logicamente, a quantificação dessas receitas objeto de renúncia sucede‑se à determinação da sua existência) (68).
68. As recorrentes também não explicam que erros terá cometido o Tribunal Geral na sua interpretação ou aplicação do quadro jurídico aplicável.
69. Contudo, essa explicação é crucial para a admissibilidade da linha de argumentação das recorrentes, dado que o artigo 3.°, n.° 1, alínea a), ii), do Regulamento Antissubvenções de Base, mesmo que as recorrentes tivessem invocado essa disposição (quod non), não prevê um método de estabelecimento do elemento de comparação adequado para determinar se os poderes públicos renunciaram ou não ou se procederam ou não à cobrança de receitas públicas normalmente exigíveis.
70. Como tal, a Comissão dispõe de uma certa discricionariedade na escolha entre os diferentes parâmetros e cenários que estão subjacentes à sua tarefa de determinar se o Governo Egípcio optou por renunciar a receitas normalmente exigíveis (69).
71. Na falta de quaisquer outros argumentos em contrário, não se pode censurar o Tribunal Geral por ter validado a escolha do elemento de comparação adequado efetuada pela Comissão nos inquéritos antissubvenções subjacentes aos presentes recursos (70).
72. Por conseguinte, proponho que o Tribunal de Justiça considere inadmissíveis o quarto fundamento de recurso no processo C‑269/23 P e o terceiro fundamento de recurso no processo C‑272/23 P.
C. Aplicação de medidas de compensação no que respeita ao tratamento fiscal das perdas cambiais resultantes da desvalorização da libra egípcia em 2016
73. No quinto fundamento de recurso no processo C‑269/23 P e no quarto fundamento de recurso no processo C‑272/23 P, as recorrentes alegam, no essencial, que o Tribunal Geral não apreciou se a Comissão identificou o regime de subvenção correto nos regulamentos impugnados. Segundo elas, a Comissão considerou incorretamente que era o tratamento fiscal das perdas cambiais, introduzido na sequência da desvalorização da libra egípcia em 2016 (71), que constituía o regime de subvenção que conferia uma vantagem que é, de facto, específica na aceção do artigo 3.°, n.° 2, e do artigo 4.°, n.° 2, alínea c), do Regulamento Antissubvenções de Base. Segundo as recorrentes, este tratamento era aplicável a todas as empresas egípcias, pelo que, em teoria, todas as empresas egípcias podiam deduzir as perdas causadas pelos efeitos da desvalorização da libra egípcia em 2016 dos seus rendimentos tributáveis. Por esta razão, a Comissão imputou incorretamente a vantagem resultante da desvalorização de 2016 ao tratamento fiscal das perdas cambiais.
74. Embora os recursos não sejam um exemplo de clareza, contrariamente ao que a Comissão alega, entendo que esses fundamentos de recurso não visam uma reapreciação dos factos. Pelo contrário, uma leitura liberal dos argumentos parece sugerir que as recorrentes pretendem pedir ao Tribunal de Justiça que reaprecie a conclusão do Tribunal Geral de que o tratamento fiscal e as regras contabilísticas especiais considerados em conjunto eram suscetíveis de conferir uma vantagem específica de facto.
75. Este tipo de argumento está abrangido pelo âmbito da competência do Tribunal de Justiça (72).
76. A este respeito, importa referir que o artigo 4.°, n.° 2, alínea c), do Regulamento Antissubvenções de Base está formulado precisamente para abranger os tipos de cenários em que, à primeira vista, uma medida pode não parecer específica, mas, na prática, e com base em condições ou critérios objetivos, essa medida tem o efeito de estabelecer um regime específico destinado a conceder uma subvenção a certas empresas.
77. Para efeitos dessa apreciação, ao determinar se uma subvenção tem ou não caráter específico de facto, o Tribunal de Justiça deve centrar‑se não na regulamentação nacional enquanto tal, mas no grau de impacto que essa regulamentação tem para certas empresas (73), considerado no contexto em que a mesma foi instituída (74).
78. Nos acórdãos impugnados, o Tribunal Geral adotou exatamente essa abordagem.
79. Em primeiro lugar, entendeu que a argumentação das recorrentes se baseava numa premissa incorreta, ou seja, que «a Comissão não considerou que o tratamento fiscal constituía, por si só, uma subvenção suscetível de ser objeto de uma medida de compensação» (75).
80. Em segundo lugar, o Tribunal Geral explicou que a Comissão, tendo analisado em conjunto o tratamento fiscal e as regras contabilísticas especiais, tinha concluído que, embora suscetíveis de beneficiar todas as empresas egípcias, na prática, essas regras visavam permitir a neutralização dos efeitos negativos da desvalorização da libra egípcia em 2016, o que teve por efeito conceder a uma categoria particular de empresas (76), na qual se inseriam as recorrentes (77), uma apreciável vantagem (78).
81. Por último, o Tribunal Geral explica que as recorrentes não tinham apresentado nenhum elemento de prova para contestar o apuramento daqueles factos (79).
82. Por conseguinte, proponho que o Tribunal de Justiça julgue igualmente improcedentes o quinto fundamento de recurso no processo C‑269/23 P e o quarto fundamento de recurso no processo C‑272/23 P.
D. Determinação do montante da subvenção passível de medidas de compensação para as entidades de um grupo
83. No seu primeiro fundamento de recurso no processo C‑269/23 P, as recorrentes contestam, no essencial, a decisão do Tribunal Geral de validar a metodologia utilizada pela Comissão para calcular o montante da subvenção passível de medidas de compensação recebida pelas recorrentes com base no seu volume de negócios combinado (80).
84. Esse fundamento de recurso exige, portanto, a interpretação dos artigos 5.° e 6.° do Regulamento Antissubvenções de Base.
85. O artigo 5.° desse regulamento, com a epígrafe «Cálculo do montante das subvenções passíveis de medidas de compensação», estabelece que é a vantagem conferida «ao beneficiário», verificada e determinada durante o período de inquérito, que deve servir de base para o cálculo do montante da subvenção passível de medidas de compensação. Do igual modo, o artigo 6.° desse regulamento, com a epígrafe «Cálculo da vantagem conferida ao beneficiário», estabelece certas diretrizes para o cálculo do montante da vantagem e, portanto, da subvenção, concedida «ao beneficiário».
86. Segundo as recorrentes, o facto de essas disposições utilizarem o termo «beneficiário» no singular significaria, como concluiu o Tribunal Geral no Acórdão Jindal Saw e Jindal Saw Italia/Comissão (81), que «a vantagem deve ser estabelecida e calculada em relação a cada beneficiário em função da sua situação» (82). Só nos casos em que uma subvenção fosse concedida conjuntamente a ambas as entidades é que o montante da subvenção passível de medidas de compensação poderia também ser determinado em conjunto para essas entidades. Consequentemente, a Comissão deveria ter calculado separadamente a vantagem expressa em percentagem para a Jushi Egypt e para a Hengshi Egypt, aplicado essa vantagem expressa em percentagem ao respetivo volume de negócios do produto em causa e calculado uma única margem de subvenção média ponderada global para as recorrentes em conjunto (83).
87. Ao mesmo tempo, as recorrentes não contestam — de facto, concordam expressamente nas suas observações escritas — que, apesar de os artigos 5.° e 6.° do Regulamento Antissubvenções de Base utilizarem o termo «beneficiário» no singular, o conceito de «beneficiário» pode ser interpretado no sentido de incluir também um grupo de empresas (84).
88. Não me parece lógico seguir a distinção proposta pelas recorrentes.
89. Em primeiro lugar, a sua linha de argumentação não encontra apoio em quaisquer referências ou na jurisprudência (85). Os artigos 5.° e 6.° desse regulamento também não contêm qualificadores que permitam fazer uma leitura restritiva do conceito de «beneficiário».
90. Em segundo lugar, uma interpretação lata desse conceito não só está em conformidade com a interpretação que o Tribunal de Justiça adotou em relação a conceitos semelhantes no domínio dos auxílios estatais e do direito da concorrência, ou seja, os conceitos de «unidade económica» ou de «empresa» (86), como é também a leitura que o Órgão de Recurso da OMC fez do conceito de «beneficiário», tal como utilizado no Acordo SMC (87).
91. Em terceiro lugar, de um ponto de vista industrial e económico, a abordagem de tratamento das entidades que fazem parte de um todo indivisível é consentânea com a realidade económica, na medida em que garante que as transferências de capital intragrupo não escapam ao instrumento antissubvenções (88).
92. A interpretação lata do conceito de «beneficiário» que daí resulta serve, assim, o objetivo do Regulamento Antissubvenções de Base de «neutralizar qualquer subvenção concedida, direta ou indiretamente, ao fabrico, produção, exportação ou transporte de produtos cuja introdução em livre prática na União cause prejuízo» (89).
93. Consequentemente, não considero que o Tribunal de Justiça deva concluir que o Tribunal Geral cometeu um erro ao adotar a linha de interpretação acima referida e ao validar o cálculo da subvenção passível de medidas de compensação das recorrentes efetuado pela Comissão.
94. Assim, proponho que o Tribunal de Justiça julgue improcedente o primeiro fundamento de recurso no processo C‑269/23 P.
VI. Quanto às despesas
95. Nos termos do artigo 137.° e do artigo 184.°, n.° 2, do seu Regulamento de Processo, se o próprio Tribunal de Justiça decidir definitivamente o litígio, decide também sobre as despesas.
96. De acordo com o artigo 138.°, n.° 1, desse regulamento, aplicável aos processos de recursos de decisões do Tribunal Geral por força do artigo 184.°, n.° 1, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido.
97. Como, no meu entender, as recorrentes são, pelos motivos expostos supra, partes vencidas nos presentes recursos, considero que devem ser condenadas a suportar as suas próprias despesas e as despesas efetuadas pela Comissão, tanto em primeira instância como na fase de recurso.
98. Em contrapartida, em conformidade com o artigo 140.°, n.° 3, do Regulamento de Processo, que é igualmente aplicável aos processos de recursos de decisões do Tribunal Geral por força do artigo 184.°, n.° 1, desse regulamento, a Tech‑Fab Europe eV e a Associação Europeia de Produtores de Fibra de Vidro devem suportar as suas próprias despesas.
VII. Conclusão
99. Tendo em conta as considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça:
– negue provimento aos recursos;
– confirme os Acórdãos de 1 de março de 2023, Hengshi Egypt Fiberglass Fabrics e Jushi Egypt for Fiberglass Industry/Comissão (T‑480/20, EU:T:2023:90), e de 1 de março de 2023, Jushi Egypt for Fiberglass Industry/Comissão (T‑540/20, EU:T:2023:91);
– condene a Hengshi Egypt Fiberglass Fabrics SAE e a Jushi Egypt for Fiberglass Industry SAE a suportar, cada uma, as suas próprias despesas e as despesas efetuadas pela Comissão Europeia, tanto em primeira instância como na fase de recurso; e,
– condene a Tech‑Fab Europe eV e a Associação Europeia de Produtores de Fibra de Vidro a suportar as suas próprias despesas.