Language of document : ECLI:EU:T:2015:17

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL GERAL (Oitava Secção)

15 de janeiro de 2015 (*)

«Auxílios de Estado ― Auxílios de emergência e à reestruturação concedidos a empresas em dificuldade ― Auxílios à reestruturação projetados pelas autoridades francesas a favor da SeaFrance SA ― Aumento de capital e a empréstimos concedidos pela SNCF à SeaFrance ― Decisão que declara os auxílios incompatíveis com o mercado interno ― Conceito de auxílio de Estado ― Critério do investidor privado ― Orientações para os auxílios estatais de emergência e à reestruturação concedidos a empresas em dificuldade»

No processo T‑1/12,

República Francesa, representada, inicialmente, por E. Belliard, G. de Bergues e J. Gstalter e, em seguida, por G. de Bergues, D. Colas e J. Bousin, na qualidade de agentes,

recorrente,

contra

Comissão Europeia, representada por V. Di Bucci, B. Stromsky e T. Maxian Rusche, na qualidade de agentes,

recorrida,

que tem por objeto um pedido de anulação da Decisão 2012/397/UE da Comissão, de 24 de outubro de 2011, relativa ao Auxílio estatal SA.32600 (2011/C) ― França — Auxílio à reestruturação concedido à SeaFrance SA pela SNCF (JO 2012, L 195, p. 1),

O TRIBUNAL GERAL (Oitava Secção),

composto por: D. Gratsias, presidente, M. Kancheva e C. Wetter (relator), juízes,

secretário: J. Weychert, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 19 de junho de 2014,

profere o presente

Acórdão

 Antecedentes do litígio

1        Com a Decisão 2012/397/UE, de 24 de outubro de 2011, relativa ao Auxílio estatal SA.32600 (2011/C) ― França — Auxílio à reestruturação concedido à SeaFrance SA pela SNCF (JO 2012, L 195, p. 1) (a seguir «decisão impugnada»), a Comissão Europeia declarou incompatível com o mercado comum o auxílio de emergência e o auxílio à reestruturação de SeaFrance respetivamente executado e projetado pela República Francesa a favor de SeaFrance SA.

2        A SeaFrance, atualmente liquidada, era uma sociedade anónima de direito francês detida a 100% pela SNCF Participations SA, sociedade holding do grupo SNCF, por sua vez detida a 100% pela Établissement public industriel et commercial Société nationale des chemins de fer français (SNCF) (a seguir «SNCF»). A SeaFrance explorava serviços de transporte marítimo de passageiros e de carga entre os portos de Calais (França) e de Dover (Reino Unido). Nessa época, a SeaFrance possuía seis navios. Em dezembro de 2009, empregava 1 550 pessoas, e, posteriormente, 1 100, em agosto de 2010.

3        A partir de 2008, a situação financeira da SeaFrance degradou‑se sistematicamente, designadamente devido a uma conjuntura desfavorável, caracterizada por uma grande instabilidade das paridades monetários euro/libra esterlina, alta dos preços do petróleo e uma diminuição significativa do transporte de passageiros e de carga no Canal da Mancha. Estas condições externas acentuaram as dificuldades internas da SeaFrance, nomeadamente, devidas a capacidades excedentárias e a elevado rácio de custos de pessoal sobre o volume de negócios. Vários movimentos sociais ocorridos em 2010 agravaram ainda mais a situação da sociedade.

4        Em abril de 2010, a SeaFrance foi sujeita ao processo de proteção, convertido, em 30 de junho de 2010, em processo de recuperação judicial de empresas. Resulta da decisão impugnada que, no âmbito desse processo, foram apresentadas no Tribunal de Commerce de Paris (França) três propostas de manutenção da atividade por uma cessão total ou parcial dos ativos da SeaFrance. A primeira, apresentada em conjunto por duas sociedades com atividade no setor do transporte marítimo, propunha a retoma, pelo valor simbólico de três euros, de três navios e 460 trabalhadores. A segunda, apresentada por um sindicato, propunha conservar todos os trabalhadores, comprar os navios da SeaFrance por um euro simbólico e não assumir o passivo da empresa. Os detalhes da terceira proposta, apresentada por uma empresa do setor marítimo, não foram resumidos na decisão impugnada. Nenhuma dessas propostas foi considerada satisfatória pelos administradores judiciais da SeaFrance (considerandos 10 a 15 da decisão recorrida).

5        Após a adoção, em 24 de outubro de 2011, da decisão impugnada, o Tribunal de Commerce de Paris deu início, em 16 de novembro de 2011, a um processo de liquidação judicial da SeaFrance. No âmbito desse processo, foi organizado novo concurso para a aquisição dos ativos e das atividades de SeaFrance, mas a única proposta apresentada em resposta a esse concurso não foi considerada aceitável pelos administradores judiciais da SeaFrance. Iniciou‑se então a liquidação dos ativos da SeaFrance, pela qual esses ativos foram cedidos à sociedade Eurotunnel.

6        A SNCF apoiou a SeaFrance com várias medidas de auxílio desde o início do ano de 2009. Antes de mais, em fevereiro de 2009, a SNCF celebrou com a SeaFrance uma convenção de tesouraria, renovada em fevereiro de 2010. Por outro lado, em 15 de julho de 2010, concedeu à SeaFrance um empréstimo de [confidencial] (1) milhões de euros, de modo a permitir‑lhe exercer uma opção de compra sobre o seu navio Berlioz e proteger a propriedade desse ativo.

7        Seguidamente, a SNCF abriu uma linha de crédito de [confidencial] milhões de euros a favor da SeaFrance. Essa medida foi notificada pelas autoridades francesas em 12 de julho de 2010 à Comissão como auxílio de emergência na aceção das Orientações comunitárias relativas aos auxílios estatais de emergência e à reestruturação a empresas em dificuldade (JO 2004, C 244, p. 2, a seguir «orientações sobre o auxílio à reestruturação»), e foi aprovado por esta última pela Decisão C(2010) 5837, de 18 de agosto de 2010, relativa ao auxílio de Estado N 309/2010 ― França.

8        Por último, em 18 de fevereiro de 2011, as autoridades francesas notificaram à Comissão, nos termos das disposições das orientações sobre o auxílio à reestruturação, um projeto de auxílio à reestruturação a favor da SeaFrance acompanhado de um plano de reestruturação. O plano de reestruturação previa, designadamente, uma redução das capacidades de seis para quatro navios, uma reconfiguração da proposta de travessias que levaria a uma diminuição de cerca de 30% do número de travessias anuais e à extinção de 725 postos de trabalho para limitar o rácio do custo do pessoal sobre o volume de negócios. Essa reestruturação devia ser financiada principalmente por um auxílio de Estado sob a forma de um aumento do capital da SeaFrance em 223 milhões de euros, integralmente subscrito pela SNCF Participations.

9        Em 6 de abril de 2011, a Comissão recebeu uma denúncia de um concorrente da SeaFrance relativamente ao auxílio à sua reestruturação. Em 22 de junho de 2011, a Comissão notificou às autoridades francesas a sua decisão de abertura do procedimento formal de investigação previsto no artigo 108.°, n.° 2, TFUE, relativo, por um lado, ao auxílio à reestruturação da SeaFrance notificado em 18 de fevereiro de 2011, e, por outro lado, às medidas tomadas pela SNCF anteriormente, a saber, a convenção de tesouraria estipulada durante o ano de 2009 e o empréstimo de [confidencial] milhões de euros concedido em 15 de julho de 2010 (a seguir «decisão de abertura do procedimento formal»). Além disso, através da publicação de um resumo dessa decisão no Jornal Oficial da União Europeia em 14 de julho de 2011 (JO C 208, p. 8), convidou as partes interessadas a apresentarem as suas observações, nos termos do artigo 108.°, n.° 2, TFUE.

10      Por ofícios de 14 de julho, 22 de julho e de 19 de agosto de 2011, as autoridades francesas, antes de mais, apresentaram à Comissão os seus comentários respetivamente sobre as dúvidas formuladas na decisão de abertura do procedimento formal, sobre a denúncia e sobre as observações das partes interessadas.

11      Em seguida, por ofício de 12 de setembro de 2011, as autoridades francesas comunicaram à Comissão um plano de reestruturação alterado. Este plano previa, nomeadamente, a cessão de um navio adicional, uma redução de efetivos total de 922 trabalhadores, uma maior redução do número de travessias e uma reorganização das atividades de venda e de marketing que deveria levar a economias adicionais. Por outro lado, a fim de dar resposta às dúvidas formuladas pela Comissão na decisão de abertura do procedimento formal relativas à insuficiência e incerteza da contribuição própria da SeaFrance para o financiamento da sua reestruturação, o plano previa uma reorganização das medidas de financiamento da reestruturação: o aumento de capital da SeaFrance devia ser limitado a 166,3 milhões de euros e ser acompanhado de um empréstimo de 99,8 milhões de euros destinado a financiar a reestruturação. Previa‑se ainda um outro empréstimo, no montante de [confidencial] milhões de euros. Esse empréstimo destinava‑se a substituir o empréstimo existente sobre o navio Molière a fim de antecipar o exercício do direito de compra desse navio. O exercício antecipado da opção destinava‑se a permitir à SeaFrance adquirir a plena propriedade deste ativo logo no final do ano de [confidencial] e não no final de [confidencial]. Os dois empréstimos deviam ser concedidos a uma taxa de juro de 6,05% por um período de 12 anos com reembolsos de capital constantes.

12      Por último, por carta de 3 de outubro de 2011, as autoridades francesas transmitiram à Comissão uma nova versão do plano de reestruturação alterado. Segundo essa nova versão, por um lado, o montante do empréstimo de 99,8 milhões de euros foi reduzido para 99,7 milhões de euros e, por outro, a taxa de juro aplicada aos dois empréstimos previstos no plano de reestruturação alterado foi aumentada de 6,05% para 8,55%.

13      Em 24 de outubro de 2011, a Comissão adotou a decisão recorrida e notificou‑a no mesmo dia às autoridades francesas. Nos considerandos 16 e 17 dessa decisão, a Comissão precisa que a decisão impugnada se refere, por um lado, às medidas previstas no plano de reestruturação alterado, isto é, o aumento de capital da SeaFrance e os dois empréstimos de 99,7 milhões de euros e de [confidencial] milhões de euros, e, por outro, ao auxílio de emergência aprovado na sua decisão de 18 de agosto de 2010. Em contrapartida, esta decisão não abrange nem a convenção de tesouraria concedida pela SNCF à SeaFrance nem o empréstimo que lhe foi concedido para o exercício do direito de opção sobre o navio Berlioz (v. n.° 6, supra), que são objeto de outro procedimento previsto no artigo 108.°, n.° 2, TFUE, iniciado em 22 de junho de 2011.

14      O dispositivo da decisão impugnada prevê, designadamente, o seguinte:

«Artigo 1.°

O aumento de capital de 166,3 milhões de euros, o empréstimo de 99,7 milhões de euros e o empréstimo de [confidencial] milhões de euros que a República Francesa tenciona executar, através da SNCF, a título de auxílio à reestruturação a favor de SeaFrance, constituem auxílios estatais na aceção do artigo 107.°, n.° 1, do TFUE e são incompatíveis com o mercado interno.

Artigo 2.°

O empréstimo concedido pela França, através da SNCF, a título de auxílio de emergência a favor da SeaFrance, objeto da decisão da Comissão de 18 de agosto de 2010, constitui um auxílio incompatível com o mercado interno.

Artigo 3.°

1. A França, através da SNCF, deve recuperar junto do beneficiário o auxílio referido no artigo 2.º, incluindo os juros contratuais vencidos que não foram ainda pagos à data de notificação da presente decisão.

[…]»

 Tramitação do processo e pedidos das partes

15      Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal Geral em 2 de janeiro de 2012, a República Francesa interpôs o presente recurso.

16      Com base no relatório do juiz‑relator, o Tribunal Geral (Oitava Secção) deu abertura à fase oral do processo.

17      Foram ouvidas as alegações das partes e as suas respostas às questões colocadas pelo Tribunal Geral na audiência de 19 de junho de 2014.

18      Na audiência, a Comissão apresentou um documento que contém uma troca de mensagens de correio eletrónico entre os seus serviços e as autoridades francesas, com vista a sustentar a argumentação apresentada em resposta ao segundo fundamento do recurso. O presidente de secção decidiu juntar esse documento aos autos e convidou a República Francesa a pronunciar‑se sobre a sua admissibilidade e o seu conteúdo até 26 de junho de 2014. A decisão quanto à admissibilidade desse documento foi reservada para final.

19      A República Francesa apresentou as suas observações no prazo fixado.

20      A fase oral foi encerrada em 3 de julho de 2014.

21      A República Francesa conclui pedindo que o Tribunal se digne:

¾        anular a decisão recorrida na íntegra;

¾        condenar a Comissão nas despesas.

22      A Comissão conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

¾        negar provimento ao recurso;

¾        condenar a República Francesa nas despesas.

 Questão de direito

23      A título preliminar, refira‑se que os quatro fundamentos que a República Francesa apresenta em apoio do seu recurso, relativos à apreciação pela Comissão de dois empréstimos, respetivamente, de 99,7 milhões de euros e de [confidencial] milhões de euros previstos no plano de reestruturação alterado (a seguir, em conjunto, «empréstimos em causa»). A República Francesa não contesta que a medida que consiste num aumento de capital da SeaFrance de 166,3 milhões de euros constitui um auxílio de Estado.

24      Os dois primeiros fundamentos do recurso da República Francesa são relativos à violação do artigo 107.°, n.° 1, TFUE, na medida em que a Comissão qualificou os empréstimos em causa como auxílio de Estado. O terceiro fundamento é relativo a erros de direito e de facto, na medida em que a Comissão considerou que o auxílio à reestruturação era incompatível com o artigo 107.°, n.° 3, alínea c), TFUE interpretado à luz das orientações sobre o auxílio à reestruturação. O quarto fundamento é relativo à violação do artigo 345.° TFUE.

 Quanto ao primeiro fundamento, baseado numa inobservância do conceito de auxílio de Estado na aceção do artigo 107.°, n.° 1, TFUE, na medida em que a Comissão considerou que a justificação dos empréstimos em causa devia ser apreciada com o auxílio de emergência e com a recapitalização

25      Com o presente fundamento, a República Francesa sustenta, no essencial, que foi erradamente que a Comissão considerou que, para efeitos da aplicação do teste do investidor privado, os empréstimos em causa, o auxílio de emergência concedido à SeaFrance e o seu aumento de capital previsto no plano de reestruturação alterado deviam ser apreciados conjuntamente.

26      Este fundamento articula‑se em duas partes, relativas, respetivamente, a uma interpretação errada e à aplicação errada do acórdão do Tribunal Geral de 15 de setembro de 1998, BP Chemicals/Comissão (T‑11/95, Colet., a seguir «acórdão BP Chemicals», EU:T:1998:199).

27      Na primeira parte, a República Francesa alega na petição, em substância, que, na medida em que o acórdão BP Chemicals/Comissão, acima referido no n.° 26 (EU:T:1998:199), versa unicamente sobre uma recusa de abertura de um procedimento formal de investigação e não sobre a aplicação do princípio do investidor privado na sua substância, os critérios que estabeleceu não podem ser aplicados no âmbito de um procedimento formal de investigação, para decidir se as medidas em causa são dissociáveis ou não. Na audiência, tendo em conta o acórdão de 19 de março de 2013, Bouygues e Bouygues Télécom/Comissão (C‑399/10 P e C‑401/10 P, Colet, EU:C:2013:175), a República Francesa desistiu desta parte, o que ficou registado na ata da audiência.

28      Na segunda parte, a República Francesa sustenta que, no caso em apreço, a Comissão fez uma aplicação errada do acórdão BP Chemicals, n.° 26, supra (EU:T:1998:199), e concluiu erradamente que os empréstimos em causa eram efetivamente indissociáveis do auxílio de emergência e da recapitalização.

29      Há que recordar que, na medida em que o conceito de auxílio, como é definido no artigo 107.°, n.° 1, TFUE, tem caráter jurídico e deve ser interpretado com base em elementos objetivos, o juiz da União deve, em princípio e tendo em conta tanto os elementos concretos do litígio que lhe são submetidos como o caráter técnico ou complexo das apreciações feitas pela Comissão, exercer uma fiscalização completa sobre a questão de saber se uma medida entra no âmbito de aplicação do artigo 107.°, n.° 1, TFUE (v. acórdãos de 22 de dezembro de 2008, British Aggregates/Comissão, C‑487/06 P, Colet, EU:C:2008:757, n.° 111 e jurisprudência referida, e acórdão do Tribunal Geral de 17 de dezembro de 2008, Ryanair/Comissão, T‑196/04, Colet, EU:T:2008:585, n.° 40 e jurisprudência aí referida).

30      A qualificação de auxílio de Estado, na aceção do artigo 107.°, n.° 1, TFUE, de uma medida tomada em relação a uma empresa requer a reunião de quatro pressupostos. Em primeiro lugar, deve tratar‑se de uma intervenção do Estado ou por meio de recursos estatais. Em segundo lugar, essa intervenção deve ser suscetível de afetar as trocas comerciais entre os Estados‑Membros. Em terceiro lugar, deve conceder uma vantagem exclusivamente a certas empresas ou certos setores de atividade. Em quarto lugar, deve falsear ou ameaçar falsear a concorrência (v. acórdão de 29 de setembro de 2000, CETM/Comissão, T‑55/99, Colet, EU:T:2000:223, n.° 39 e jurisprudência aí referida; v. igualmente, neste sentido, acórdão de 23 de março de 2006, Enirisorse, C‑237/04, Colet, EU:C:2006:197, n.os 38 e 39 e jurisprudência aí referida).

31      Contudo, resulta também de jurisprudência assente que os pressupostos que uma medida deve preencher para se enquadrar no conceito de auxílio na aceção do artigo 107.°, n.° 1, TFUE não estão preenchidos se a empresa beneficiária pudesse obter em circunstâncias que correspondam às condições normais do mercado a mesma vantagem que lhe foi facultada com recursos do Estado, sendo esta apreciação feita, em relação às empresas públicas, pela aplicação, em princípio, do critério do investidor privado (v. acórdão de 5 de junho de 2012, Comissão/EDF e o., C‑124/10 P, Colet, EU:C:2012:318, n.° 78 e jurisprudência aí referida).

32      Segundo a jurisprudência, quando examina a aplicação do critério do investidor privado, a Comissão deve examinar sistematicamente todos os elementos relevantes da operação controvertida e o seu contexto (v. acórdão de 13 de setembro de 2010, Grécia/Comissão, T‑415/05, T‑416/05 e T‑423/05, Colet, EU:T:2010:386, n.° 172 e jurisprudência aí referida).

33      Na aplicação do critério do investidor privado a várias intervenções consecutivas de Estado, a Comissão deve examinar se entre essas intervenções existem laços tão estreitos que seja impossível dissociá‑los e que, portanto, essas intervenções devam, para efeitos de aplicação do artigo 107.°, n.° 1, TFUE, ser consideradas uma única intervenção (v., neste sentido, acórdão Bouygues e Bouygues Télécom/Comissão, referido no n.° 27, supra, EU:C:2013:175, n.° 103).

34      A análise do caráter dissociável de várias intervenções do Estado deve ser efetuada à luz dos critérios elaborados pela jurisprudência, entre os quais figuram, nomeadamente, a cronologia dessas intervenções, a sua finalidade e a situação da empresa beneficiária no momento em que elas ocorreram (v., neste sentido, acórdãos, Bouygues e Bouygues Télécom/Comissão, referido no n.° 27, supra, EU:C:2013:175, n.° 104, e BP Chemicals, referido no n.° 26, supra, EU:T:1998:199, n.os 170 e 178).

35      Por outro lado, deve recordar‑se que a apreciação, pela Comissão, da questão de saber se uma medida respeita o critério do operador privado em economia de mercado pode implicar uma apreciação económica complexa. A Comissão, quando adota um ato que implica tal apreciação, goza de um amplo poder de apreciação e a fiscalização jurisdicional limita‑se à verificação do respeito das regras de processo e de fundamentação, da ausência de erro de direito, da exatidão material dos factos dados por provados e da ausência de erro manifesto na apreciação desses factos, bem como da ausência de desvio de poder. Em especial, não compete ao Tribunal substituir a apreciação económica do autor da decisão pela sua (v. acórdão Ryanair/Comissão, EU:T:2008:585, n.° 29, supra, n.° 41 e jurisprudência aí referida).

36      É à luz destes princípios que há que analisar o argumento principal apresentado no âmbito da segunda parte do primeiro fundamento, pelo qual a República Francesa acusa a Comissão de não ter examinado todos os elementos de facto e de direito pertinentes para a apreciação do caráter indissociável das medidas tomadas a favor SeaFrance, em particular, as taxas de juros e as garantias ligadas aos empréstimos em causa. A República Francesa critica, pois, a Comissão por ter presumido na decisão impugnada que, uma vez que os empréstimos em causa prosseguiam a mesma finalidade da recapitalização da SeaFrance e foram concedidos no mesmo momento dessa recapitalização, apesar de a situação da SeaFrance permanecer inalterada, eram indissociáveis da recapitalização e do auxílio de emergência e, por conseguinte, por ter presumido que esses empréstimos não teriam sido concedidos por um investidor privado.

37      A análise do mérito deste argumento deve ser efetuada em duas fases. Em primeiro lugar, há que verificar se foi com razão que a Comissão concluiu que os empréstimos em causa eram indissociáveis da recapitalização e do auxílio de emergência e não podiam, portanto, ser apreciados como medidas autónomas à luz do critério do investidor privado. Por outras palavras, há que verificar se a Comissão determinou corretamente o objeto ao qual ia aplicar esse critério. Em segundo lugar, há que verificar se a Comissão aplicou corretamente o critério do investidor privado nas medidas abrangidas pela decisão impugnada.

38      Em primeiro lugar, no que se refere à questão de saber se foi com razão que a Comissão concluiu que os empréstimos em causa eram indissociáveis da recapitalização e do auxílio de emergência, importa salientar, antes de mais, que, no considerando 129 da decisão impugnada, respondendo aos argumentos das autoridades francesas, segundo os quais os empréstimos em causa eram concedidos em condições de mercado e respeitavam, assim, o critério do investidor privado, a Comissão indicou o seguinte:

«(129) […] [N]o caso em apreço a SNCF concedeu já auxílios à SeaFrance, nomeadamente o auxílio de emergência, e tenciona conceder‑lhe outro, a saber, a recapitalização. Os empréstimos têm a mesma finalidade dos outros auxílios, ou seja, salvar e reestruturar a SeaFrance. Serão concedidos num momento em que a SeaFrance é uma empresa em dificuldade e ao mesmo tempo que os auxílios à reestruturação. Isto é evidente no que se refere ao empréstimo de 99,7 milhões de euros, que tem por finalidade (tal como a recapitalização) ajudar a SeaFrance a fazer face às suas necessidades em termos de fundo de maneio. Contudo, o mesmo se aplica ao empréstimo de [confidencial] milhões de euros, destinado a refinanciar e a resgatar antecipadamente o contrato de locação financeira relativo ao navio Molière. Efetivamente, o financiamento dos meios de produção, neste caso o navio, está estreitamente relacionado com a atividade quotidiana da SeaFrance. Através do refinanciamento e do resgate antecipado do contrato de locação financeira, a SeaFrance pretende reduzir os seus custos operacionais, o que se integra no âmbito da reestruturação da empresa. Por consequência, o empréstimo de [confidencial] milhões de euros inscreve‑se também numa lógica de reestruturação da SeaFrance.»

39      Em seguida, nos considerandos 130 a 132, a Comissão lembrou as regras explicitadas no acórdão BP Chemicals, n.° 26, supra (EU:T:1998:199).

40      Por último, no considerando 133, a Comissão analisou a questão de saber se a recapitalização constituía um auxílio de Estado e decidiu que «[u]ma vez que os dois empréstimos têm a mesma finalidade que a recapitalização, ou seja, financiar os custos de reestruturação, que a situação económica da empresa não se alterou (continua em dificuldade) e que os empréstimos são concedidos ao mesmo tempo do que a recapitalização, esses empréstimos não [podiam] ser dissociados razoavelmente do auxílio de emergência e da recapitalização».

41      Esta fundamentação parece, na verdade, sucinta. Contudo, antes de mais, não se pode deixar de observar que as considerações da Comissão relativas à cronologia e à finalidade das medidas e ainda à situação da SeaFrance não têm qualquer erro de apreciação.

42      Com efeito, no que respeita à cronologia das medidas, é pacífico entre as partes que os empréstimos em causa eram concomitantes à recapitalização e que essas três medidas estavam previstas no plano de reestruturação submetido à apreciação da Comissão seis meses depois da execução do auxílio de emergência.

43      É igualmente pacífico entre as partes, no que diz respeito à situação da sociedade beneficiária, que, desde 2008, a SeaFrance enfrentava grandes dificuldades financeiras que conduziram, em 30 de junho de 2010, isto é, antes da notificação do auxílio de emergência, à abertura de um processo de recuperação de empresas. O processo de recuperação de empresas prosseguiu até à abertura de um processo de liquidação judicial que se seguiu à adoção da decisão impugnada (v. n.os 4, 5 e 7, supra). Portanto, as grandes dificuldades financeiras da SeaFrance existiam tanto no momento em que recebeu o auxílio de emergência como no momento em que a SNCF projetou conceder‑lhe três outras medidas previstas no plano de reestruturação.

44      No que respeita à finalidade das medidas, é pacífico que o empréstimo de 99,7 milhões de euros tinha a mesma finalidade que a recapitalização, a saber, o financiamento da reestruturação. Quanto ao empréstimo de [confidencial] milhões de euros, não colhe o argumento da República Francesa de que esse empréstimo prosseguia um objetivo patrimonial, a saber, proteger um ativo pelo exercício da opção de aquisição antecipada no navio Molière e, portanto, tinha uma finalidade diferente da recapitalização. Com efeito, foi com razão que a Comissão concluiu que esse empréstimo se inseria na lógica da reestruturação SeaFrance, na medida em que servia para refinanciar e resgatar mais cedo do que o previsto o contrato de locação financeira do navio Molière e assim reduzir os custos operacionais ligados ao financiamento dos meios de produção. Além disso, foi com razão que a Comissão sublinhou na contestação, que, quando sustentava que o único objetivo desse empréstimo era o de este substituir um compromisso fora de balanço ligado às rendas devidas pela SeaFrance por força do contrato de locação financeira, a República Francesa continuava a não apresentar um elemento suscetível de demonstrar que, antes desse empréstimo, a SNCF já estava diretamente exposta e era devedora do pagamento dessas rendas.

45      Seguidamente, vários elementos referidos pela Comissão na decisão impugnada e que fazem parte do contexto da reestruturação SeaFrance corroboram, em todo o caso, a conclusão de que os empréstimos em causa, o auxílio de emergência e a recapitalização deviam ser apreciados conjuntamente à luz do critério do investidor privado.

46      A este respeito, por um lado, resulta da decisão impugnada que, na sequência da concessão pela SNCF da linha de crédito de [confidencial] milhões de euros à SeaFrance, aceite pela Comissão como auxílio de emergência, as autoridades francesas apresentaram, em 18 de fevereiro de 2011, um plano de reestruturação inicial da SeaFrance (considerandos 1, 2 e 24 da decisão impugnada). Esse plano, que previa uma única medida de auxílio, a saber, um aumento de capital da SeaFrance no valor de 223 milhões de euros, integralmente subscrito pela SNCF Participations, foi criticado pela Comissão na decisão de abertura do procedimento formal com o fundamento de que a contribuição própria da SeaFrance para o financiamento da sua reestruturação era insuficiente e incerta (considerandos 4, 24 e 149 da decisão impugnada). Resulta ainda da decisão impugnada que, a fim de responder a estas críticas, em 12 de setembro de 2011, as autoridades francesas apresentaram um plano de reestruturação alterado em que o aumento de capital inicialmente previsto era reduzido para 166,3 milhões de euros a subscrever pela SNCF Participations e que essa redução era compensada por um empréstimo no valor de 99,7 milhões de euros concedido pela SNCF e destinado a financiar a reestruturação da SeaFrance, enquanto parte da sua contribuição própria (considerandos 24, 27, 28 e 150 da decisão impugnada). A concessão dos empréstimos em causa, em particular do empréstimo de 99,7 milhões de euros, afigura‑se, portanto, o resultado de um reajustamento da medida de auxílio única inicialmente prevista.

47      Por outro lado, resulta da decisão impugnada que era unicamente a SNCF, que agia na dupla qualidade de prestador dos auxílios e locador dos fundos destinados a fazer parte da contribuição própria, a fornecer à SeaFrance os recursos necessários para financiar a reestruturação. Uma vez que nenhum investidor privado externo ao grupo SNCF intervinha a seu lado nessa operação. A este respeito, a Comissão observou igualmente que, não obstante os seus pedidos, as autoridades francesas não lhe forneceram um exemplo de uma oferta de empréstimo proveniente de um estabelecimento financeiro independente (considerando 138 da decisão impugnada).

48      O contexto da reestruturação da SeaFrance, em especial a evolução do plano de reestruturação, mostra, assim, que, para atenuar a quase inexistência de contribuição própria da SeaFrance para o financiamento da sua reestruturação, as autoridades francesas, em vez de procurarem um investidor ou um credor externo, ou na sua falta, propuseram uma solução em que era a SNCF que, sozinha, fornecia a quase totalidade dessa contribuição própria, a saber, 99,7 milhões de euros num montante total de contribuição própria de [confidencial] milhões de euros (v. considerando 150 da decisão impugnada e n.os 63 e 79, infra), intervindo como se fosse um credor externo. Ora, essa solução, baseada num simples reajustamento da medida de auxílio prevista inicialmente e num desdobramento da qualidade da SNCF, que, por um lado, atuaria através da SNCF Participations como uma entidade prestadora do auxílio e, por outro, como um suposto investidor privado ― que seria simultaneamente o único investidor privado a intervir no auxílio de emergência e na reestruturação da SeaFrance ― não pode ser aceite, na medida em que afasta a aplicação das regras relativas à contribuição própria estabelecidas nas orientações sobre o auxílio à reestruturação.

49      Por fim, contrariamente ao que sustenta a República Francesa, a taxa de juro e as garantias prestadas ligadas aos empréstimos em causa não fazem parte dos elementos pertinentes que a Comissão deve ter em conta ao examinar a questão de saber se esses empréstimos eram dissociáveis da recapitalização e do auxílio de emergência. Com efeito, a análise das condições de concessão desses empréstimos é do foro da apreciação da rentabilidade desses empréstimos, isto é, da aplicação do critério do investidor privado. Em contrapartida, o exame da dissociabilidade desses empréstimos das duas outras medidas visa determinar se o critério do investidor privado deve ser aplicado a esses empréstimos considerados como um investimento autónomo ou ao conjunto das medidas abrangidas pela decisão impugnada consideradas como um todo. Este exame constitui, portanto, uma etapa prévia à aplicação do critério do investidor privado.

50      Do mesmo modo, resulta da jurisprudência acima referida no n.° 33 que, contrariamente ao que sustenta a República Francesa, as divergências formais entre um empréstimo e uma recapitalização não impedem que se considere que essas medidas são indissociáveis. Com efeito, o que é determinante não é a forma que assumem essas intervenções do Estado, mas sim o facto de essas intervenções apresentarem, designadamente à luz da sua cronologia, da sua finalidade e da situação da empresa no momento em que ocorreram, laços tão estreitos que seja impossível dissociá‑las.

51      Em segundo lugar, no que se refere à aplicação do critério do investidor privado às medidas objeto da decisão impugnada, há que assinalar que, nos considerandos 133 e 134 da decisão recorrida, a Comissão indicou o seguinte:

«(133) A França não contesta o facto de a recapitalização constituir um auxílio, pois não há perspetivas de obter um rendimento correspondente ao que um investidor privado teria exigido. É o que se deduz também do quadro apresentado no considerando (35), que indica as necessidades de financiamento no período de 2011‑2017. Efetivamente, a empresa não poderia distribuir dividendos durante esse período. Tendo em conta os custos consideráveis do pagamento de juros e de amortização dos empréstimos referidos nos considerandos (28) a (33) e a baixa margem de lucro prevista no plano de reestruturação, essa situação prolongar‑se‑ia provavelmente para além de 2017, até ao reembolso total dos empréstimos, em 2023. Ora um investidor privado de um setor clássico como o do transporte marítimo não aceitaria a ausência total de rentabilidade de um investimento de 166,3 milhões de [euros] durante um período de doze anos. [...]

(134) Considerado no seu conjunto, o rendimento do auxílio de emergência e da recapitalização e dos dois empréstimos é inferior ao que seria exigido por um investidor privado numa economia de mercado. Efetivamente, tal como já explicado, a SNCF não pode esperar qualquer rendimento da recapitalização antes de 2023. […]»

52      Não se pode deixar de observar que a análise do rendimento que se podia esperar das medidas a que se refere a decisão impugnada, apresentada nos considerandos 133 e 134 da decisão impugnada, é sumária e concentrada na recapitalização.

53      Todavia, por um lado, a Comissão aplicou corretamente o critério do investidor privado ao conjunto indissociável das medidas composto dos empréstimos em causa, da recapitalização e do auxílio de emergência. Com efeito, ao ter em conta o impacto que o pagamento dos juros e o reembolso dos empréstimos em causa tinha sobre a rentabilidade da recapitalização, a Comissão entrou numa análise global do rendimento que a SNCF, como investidor privado único, podia esperar das medidas executadas ou que previa no âmbito do auxílio de emergência e à reestruturação da SeaFrance, apreciadas como um todo. Assim, podia concluir, sem cometer qualquer erro manifesto de apreciação, que o rendimento global esperado desse conjunto indissociável de medidas não correspondia a um rendimento que podia esperar um investidor privado, sem ter que proceder a uma análise precisa da questão de saber se as condições de concessão de cada um dos empréstimos em causa obedeciam às condições do mercado.

54      Por outro lado, pelas razões acima expostas no n.° 48, os elementos do contexto da reestruturação da SeaFrance acima mencionados nos n.os 46 e 47 corroboram a conclusão de que um investidor privado numa economia de mercado não teria tomado a favor da SeaFrance o conjunto das medidas tomadas pela SNCF, referidas na decisão impugnada.

55      Resulta do exposto que a Comissão, em conformidade com a jurisprudência acima referida no n.° 32, examinou o contexto global da concessão desses empréstimos à SeaFrance. Daqui resulta igualmente que, contrariamente ao que sustenta a República Francesa, a Comissão não presumiu, mas demonstrou, tendo presente a finalidade, a cronologia dos empréstimos em causa e a situação da sociedade beneficiária, não deixando de ter em conta outros elementos pertinentes do processo, tais como a evolução do plano de reestruturação, o desdobramento do papel da SNCF e a inexistência de um investidor privado externo ao grupo SNCF, que os empréstimos em causa não podiam ser razoavelmente dissociados da recapitalização da SeaFrance e da abertura de uma linha de crédito a seu favor, a título de auxílio de emergência e, por conseguinte, ser considerados um investimento autónomo à luz do critério do investidor privado.

56      Resulta igualmente do exposto que, ao disponibilizar à SeaFrance conjuntamente os empréstimos em causa, a recapitalização e o auxílio de emergência, o Estado francês, atuando através da SNCF, permitiu à SeaFrance uma vantagem que esta não poderia ter obtido em condições normais de mercado. Foi, portanto, com razão que, no considerando 142 da decisão impugnada, a Comissão qualificou esses empréstimos de auxílios de Estado.

57      Os argumentos da República Francesa baseados na prática anterior da Comissão não podem pôr esta conclusão em causa.

58      Com efeito, segundo a jurisprudência, é unicamente no âmbito do artigo 107.°, n.° 1, TFUE, que deve ser apreciado o caráter de auxílio de Estado de uma determinada medida, e não à luz de uma alegada prática decisória anterior da Comissão (acórdão de 15 de novembro de 2011, Comissão e Espanha/Government of Gibraltar e Reino Unido, C‑106/09 P e C‑107/09 P, Colet, EU:C:2011:732, n.° 136). Aliás, seria particularmente delicado tomar como base uma prática anterior da Comissão no domínio dos auxílios de emergência e à reestruturação, no qual a apreciação de cada caso depende muito da situação financeira individual do beneficiário do auxílio, da situação económica geral do setor em que tem atividade e do quadro regulamentar em que evolui.

59      Daí resulta que a República Francesa não se pode basear numa prática anterior da Comissão para demonstrar um erro que esta teria cometido na apreciação da existência de um auxílio de Estado no caso presente.

60      Em todo o caso, o exame do mérito desses argumentos, apresentado a seguir, não permite identificar qualquer erro na decisão impugnada.

61      Por um lado, a República Francesa alega que a prática anterior da Comissão não permite justificar a generalização da solução seguida no acórdão BP Chemicals, n.° 26, supra (EU:T:1998:199). Assim, na decisão de 26 de maio de 2010 relativa ao auxílio à reestruturação das atividades de carga da SNCB (n.° 726/2009) (a seguir «decisão SNCB‑carga»), que envolvia uma sociedade‑mãe que prestava o auxílio em circunstâncias semelhantes às que foram examinadas na decisão impugnada, a Comissão não procedeu a uma análise global das medidas de auxílio e reconheceu, em contrapartida, que um empréstimo concedido pela SNCB à sua nova filial criada no âmbito da reestruturação das atividades de carga e que acompanhava um aumento de capital dessa filial pela SNCB, tinha sido concedido em condições de mercado. Este empréstimo não constituía, portanto, um auxílio de Estado e podia ser tido em conta a título de contribuição própria dessa filial à reestruturação. Segundo a República Francesa, esta diferença na análise de casos semelhantes, que não pode ser explicada pelas diferenças no quadro jurídico aplicável, é contrária aos princípios da segurança jurídica, da boa administração e da igualdade de tratamento.

62      Não se pode deixar de observar que, com o seu argumento baseado na Decisão SNCB‑carga, a República Francesa censura a Comissão, no essencial, por ter recusado, na decisão impugnada, que o empréstimo de 99,7 milhões de euros concedido pelas autoridades da SNCF a SeaFrance pudesse fazer parte da contribuição própria da SeaFrance para o financiamento da sua reestruturação, enquanto na decisão SNCB‑carga, considerou que um empréstimo concedido pela SNCB à sua filial «carga», uma vez que era concedido em condições do mercado, não era um auxílio de Estado e podia ser incluído na contribuição própria dessa filial para as necessidades de financiamento da reestruturação.

63      A este respeito, antes de mais, para além do facto de, ao contrário da reestruturação da SeaFrance, a restruturação das atividades de carga da SNCB não ter sido feita no contexto do auxílio de emergência de uma empresa em dificuldade, mas sim no contexto de um vasto plano de reestruturação industrial e comercial do setor, há que salientar uma grande diferença no quadro regulamentar aplicável. Com efeito, a reestruturação das atividades de carga da SNCB estava sujeita às Orientações comunitárias sobre os auxílios estatais às empresas de transporte ferroviário (JO 2008, C 184, p. 13). Essas orientações constituem um quadro regulamentar específico no setor do transporte ferroviário, derrogatório do regime das orientações sobre o auxílio à reestruturação, nomeadamente no que respeita ao nível da contribuição própria do beneficiário do auxílio. Com efeito, o n.° 82 dessas orientações prevê que a Comissão poderá aceitar contribuições próprias inferiores às previstas nas orientações sobre o auxílio à reestruturação. Foi nesta base que a Comissão aceitou uma contribuição própria da filial carga da SNCB de nível entre 15 e 25% das necessidades de financiamento da reestruturação (v. considerandos 246 a 249 da decisão SNCB‑carga). Em seguida, embora seja verdade que a Comissão admitiu na decisão SNCB‑carga que uma parte da contribuição própria da filial «carga» da SNCB fosse constituída por um empréstimo concedido pela SNCB em condições de mercado, resulta do considerando 113 da referida decisão, que, para satisfazer as necessidades de financiamento da reestruturação, essa filial devia igualmente contratar junto de uma instituição de crédito uma linha de crédito externa de um montante de 50 milhões de euros. Assim, contrariamente ao plano de reestruturação da SeaFrance, o plano de reestruturação das atividades de carga da SNCB previa a intervenção de agentes externos ao grupo SNCB. Por último, o montante do empréstimo que a SNCB devia conceder à sua filial «carga» representava uma parte relativamente limitada da contribuição própria. Com efeito, esse empréstimo era de 25 milhões de euros e o montante total da contribuição própria da filial «carga» era de 135 milhões de euros para um custo total da reestruturação da ordem dos 490 milhões de euros (v. considerando 248 da decisão SNCB‑carga). Em contrapartida, segundo o plano de reestruturação alterado da SeaFrance, o empréstimo de 99,7 milhões de euros representava entre 85% e 95% da contribuição própria da SeaFrance para o financiamento da sua reestruturação, dado que o montante total dessa contribuição ascendia a [confidencial] milhões de euros, para um custo total da reestruturação de [confidencial] milhões de euros (v. considerandos 35 e 150 da decisão impugnada).

64      Resulta destas observações que, contrariamente ao que sustenta a República Francesa, os casos apreciados pela Comissão na decisão SNCB‑carga e na decisão impugnada não eram semelhantes. Uma alegada diferença na sua análise não pode, por conseguinte, ser considerada contrária aos princípios da segurança jurídica, da boa administração e da igualdade de tratamento.

65      Por outro lado, a República Francesa sustenta que, nas suas decisões anteriores, a Comissão procedeu a uma dissociação de diferentes medidas anunciadas simultaneamente e que as isolou umas das outras para efeitos da aplicação do teste do investidor privado. A este respeito, invoca a Decisão 2009/613/CE da Comissão, de 8 de abril de 2009, relativa às medidas C 7/07 (ex NN 82/06 e NN 83/06) aplicadas pelo Reino Unido a favor do Royal Mail (JO L 210, p. 16, a seguir «decisão Royal Mail»), na qual a Comissão dissociou diferentes medidas de auxílios previstas a favor da Royal Mail pelo facto de prosseguirem objetivos diferentes, e a Decisão 2009/973/CE da Comissão, de 13 de julho de 2009, relativa aos auxílios à reestruturação da Combus AS (JO L 345, p. 28, a seguir «decisão Combus»), na qual a Comissão considerou que duas injeções de capital realizadas em maio de 1999 e em janeiro de 2001 deviam ser consideradas duas medidas distintas, apesar de o Governo prestador dos auxílios ter considerado que tinham o mesmo objetivo, a saber, a reestruturação e a recapitalização da Combus AS com vista à sua privatização.

66      No que respeita à decisão Royal Mail, embora, apesar da argumentação do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte, a Comissão tenha concluído que se devia dissociar, para efeitos da sua análise à luz do princípio do investidor privado, as medidas adotadas pelo Reino Unido relativamente à Royal Mail em 2007, a saber, uma alteração das facilidades de crédito, uma medida relativa ao regime das pensões dos trabalhadores do Royal Mail e um empréstimo acionista, resulta dos considerandos 101 e 102 dessa decisão que essa conclusão se baseava numa extensa análise da natureza, dos objetivos e da cronologia dessas medidas, efetuada nos n.os 5.2, 5.3 e 5.4 dessa decisão. No termo deste exame, a Comissão chegou à conclusão de que as facilidades de crédito de 2007 representavam a continuação das medidas concedidas já em 2003, enquanto a medida relativa às pensões tinha sido instituída em 2007. Além disso, em razão de particularidades dos auxílios relativamente ao financiamento dos regimes de pensões, esta última medida não estava sujeita às regras aplicáveis ao auxílio à reestruturação. No que se refere ao empréstimo acionista, a Comissão considerou que tinha sido concedido posteriormente às outras medidas e seguia um objetivo distinto.

67      No que respeita à decisão Combus, basta salientar que, nesta decisão, a Comissão rejeitou a argumentação do Reino da Dinamarca de que as duas injeções de capital efetuadas em 1999 e em 2001 a favor da Combus constituíam uma única medida de auxílio e deviam ser apreciadas conjuntamente, principalmente pelo facto de a primeira dessas injeções de capital, visto não ter sido notificada à Comissão e não ser objeto de um plano de reestruturação em conformidade com as regras então aplicáveis, dever ser considerada um auxílio ilegal e incompatível com o mercado interno (v. considerandos 287, 318 e 328 da decisão).

68      Assim, o exame das decisões invocadas pela República Francesa mais não faz do que demonstrar que tanto o facto de a Comissão não ter aplicado o raciocínio baseado no acórdão BP Chemicals, n.° 26, supra (EU:T:1998:199), na decisão SNCB‑carga, como o facto de, nas decisões da Royal Mail e Combus, ter rejeitado, com base nesse raciocínio, a argumentação do Reino Unido e do Reino da Dinamarca e ter decidido dissociar as medidas em causa nessas decisões para efeitos da sua análise se explicam pelas circunstâncias específicas de cada uma dessas decisões, que não são comparáveis às circunstâncias do caso presente.

69      Resulta de todas estas considerações que o primeiro fundamento deve ser julgado improcedente.

 Quanto ao segundo fundamento, baseado numa violação do conceito de auxílio de Estado na aceção do artigo 107.°, n.° 1, TFUE, na medida em que a Comissão considerou erradamente que as autoridades francesas não demonstraram que, apreciados isoladamente, os empréstimos em causa foram concedidos a uma taxa de mercado

70      Com o segundo fundamento, a República Francesa sustenta, no essencial, que a Comissão considerou erradamente que os empréstimos em causa, apreciados isoladamente, não tinham sido concedidos a uma taxa de mercado. Os argumentos apresentados pela República Francesa no âmbito do presente fundamento baseiam‑se na afirmação de que um empréstimo concedido por uma entidade pública que respeite a taxa fixada pela Comissão na sua Comunicação de 19 de janeiro de 2008 sobre a revisão do método de fixação das taxas de referência e de atualização (JO C 14, p. 6, a seguir «comunicação relativa às taxas de referência»), deve ser considerado um empréstimo concedido a uma taxa de mercado. Entende, portanto, que esse empréstimo não gera nenhuma vantagem para o beneficiário e não pode ser qualificado de auxílio de Estado.

71      Este fundamento articula‑se em torno de duas partes, nas quais a República Francesa critica a Comissão, por um lado, por ter afastado a aplicação da comunicação relativa às taxas de referência e, por outro, pelo facto de esta ter concluído erradamente que, para ser conforme com o mercado, a taxa dos empréstimos deveria situar‑se em torno de 14%.

72      A este respeito, há que precisar que a apreciação isolada dos empréstimos em causa do ponto de vista da adequação da taxa aplicada a esses empréstimos em relação a uma taxa de mercado foi efetuada na decisão impugnada por acréscimo. Com efeito, após ter concluído, no considerando 134 da decisão recorrida, que os empréstimos constituíam um auxílio de Estado na medida em que, apreciados com a recapitalização e o auxílio de emergência, não proporcionavam à SNCF um rendimento exigido por um investidor privado em economia de mercado, a Comissão indicou, no mesmo considerando, que «[m]esmo que o rendimento dos dois empréstimos, considerado individualmente, correspondesse às condições de mercado, o que não é o caso, tal não seria suficiente para que as medidas, na sua totalidade, fossem conformes com o princípio do investidor privado numa economia de mercado». A Comissão analisou, em seguida, nos considerandos 135 a 141 da decisão recorrida, a questão de saber que taxas devem ser associadas aos empréstimos em causa apreciados isoladamente para corresponder às condições do mercado. No termo deste exame, concluiu que essa taxa deveria situar‑se em torno de 14%, que ultrapassa a taxa de 8,5% proposta pelas autoridades francesas.

73      Resulta da jurisprudência que, na medida em que determinados fundamentos de uma decisão possam, por si só, justificá‑la suficientemente, os vícios de que possam estar feridos outros fundamentos do ato não têm, seja como for, influência no seu dispositivo. Por outro lado, é jurisprudência assente que um fundamento que, mesmo que seja procedente, seja inapto para levar à anulação pretendida pelo recorrente deve ser julgado inoperante (v. despacho de 26 de fevereiro de 2013, Castiglioni/Comissão, T‑591/10, EU:T:2013:94, n.os 44 e 45 e jurisprudência aí referida). No caso, resulta dos n.os 55 e 56, supra, que foi corretamente que a Comissão concluiu que os empréstimos em causa eram indissociáveis da recapitalização e do auxílio de emergência e que, conjuntamente, essas medidas constituíam auxílios de Estado. Eventuais erros cometidos pela Comissão na apreciação isolada dos empréstimos em causa não podem, portanto, afetar a legalidade da decisão impugnada. Improcede, portanto, o segundo fundamento da República Francesa, sem que seja necessário conhecer da admissibilidade do documento que a Comissão juntou na audiência (v. n.° 18, supra).

 Quanto ao terceiro fundamento, relativo a erros de direito e de facto, na medida em que a Comissão considerou que o auxílio à reestruturação era incompatível com o artigo 107.°, n.° 3, alínea c), TFUE, interpretado à luz das orientações sobre o auxílio à reestruturação

74      Com o terceiro fundamento, a República Francesa alega, no essencial, que a Comissão cometeu erros de facto e de direito na apreciação da compatibilidade do auxílio à reestruturação de SeaFrance com o mercado interno, na medida em que concluiu que não estava preenchido o requisito de uma contribuição própria real, isenta de auxílio e tão elevada quanto possível, prevista nas orientações sobre o auxílio à reestruturação.

75      A este respeito, há que recordar as regras da contribuição própria, previstas nos n.os 7, 43 e 44 das orientações sobre o auxílio à reestruturação.

76      Antes de mais, o n.° 7 das orientações sobre o auxílio à reestruturação prevê que, «[n]o âmbito [da revisão das orientações sobre o auxílio à reestruturação de 2004], convém reafirmar com maior clareza o princípio de que [a] contribuição [do beneficiário na reestruturação] deve ser real e isenta de auxílios [; a] contribuição do beneficiário tem um duplo objetivo: por um lado, demonstrar que os mercados (proprietários e credores) acreditam na possibilidade de um regresso a uma situação de viabilidade num período de tempo razoável; por outro, garantir que o auxílio à reestruturação é limitado ao mínimo necessário para restaurar a viabilidade, limitando ao mesmo tempo as distorções da concorrência».

77      Em seguida, segundo o ponto 43 das orientações sobre o auxílio à reestruturação, «[o] montante e intensidade do auxílio devem ser limitados aos custos mínimos estritamente necessários para permitir a reestruturação em função das disponibilidades financeiras da empresa, dos seus acionistas ou do grupo empresarial de que faz parte [...; os] beneficiários do auxílio devem contribuir de forma significativa para o plano de reestruturação através dos seus fundos próprios, incluindo a venda de ativos que não sejam indispensáveis para a sobrevivência da empresa, ou através de um financiamento externo obtido em condições de mercado[; t]al contribuição constitui um sinal de que os mercados acreditam na exequibilidade do retorno a uma situação de viabilidade[; d]eve ser real, isto é, efetiva, com exclusão de todos os potenciais benefícios, nomeadamente a nível de tesouraria, e deve ser tão elevada quanto possível».

78      Por último, o n.° 44 das orientações sobre o auxílio à reestruturação fixa limites mínimos para a contribuição própria exigida, que, no caso das grandes empresas, é de 50% das necessidades de financiamento da reestruturação. Prevê igualmente que, em circunstâncias excecionais, a Comissão pode aceitar uma contribuição própria mais baixa.

79      No caso, a Comissão salientou, no considerando 150 da decisão impugnada que, segundo o plano de reestruturação alterado, a contribuição própria da SeaFrance na sua reestruturação era de [confidencial] milhões de euros e era composta por um empréstimo de 99,7 milhões de euros e pelo produto da alienação de três navios no valor de [confidencial] milhões de euros. A Comissão excluiu o empréstimo de 99,7 milhões de euros dessa contribuição própria tendo em conta dois elementos.

80      Por um lado, indicou, nos considerandos 158 e 160 da decisão impugnada, que, tal como o empréstimo de [confidencial] milhões de euros, o empréstimo de 99,7 milhões de euros constituía um auxílio de Estado e, portanto, não podia ser tomado em consideração como uma contribuição própria que deve estar isenta de auxílio.

81      Por outro lado, a Comissão indicou, nos considerandos 161 e 163 da decisão impugnada que, de qualquer modo, de acordo com os pontos 7 e 43 das orientações sobre o auxílio à reestruturação, a contribuição própria deve indicar que os mercados acreditam na possibilidade do regresso da empresa beneficiária do auxílio à viabilidade. Ora, no caso, devido ao facto de a autoridade prestadora do auxílio e a sociedade‑mãe do beneficiário do auxílio constituírem uma só pessoa, a saber, a SNCF, e à simultaneidade das medidas em causa, essa finalidade não pode ser respeitada, na falta de uma contribuição real obtida de um investidor ou de um credor externo à SNCF. Segundo a Comissão, o comportamento da autoridade que concede o auxílio não demonstrava que os mercados do beneficiário acreditavam no retorno à viabilidade.

82      A Comissão concluiu daí, no considerando 165 da decisão impugnada, que a contribuição própria da SeaFrance isenta de auxílio era de [confidencial] milhões de euros, ou seja, menos de [confidencial]% do custo da sua reestruturação, e que era insuficiente à luz das disposições do ponto 44 das orientações sobre o auxílio à reestruturação.

83      A este respeito, antes de mais, a República Francesa sustenta que o empréstimo de 99,7 milhões de euros não constitui um auxílio de Estado e afirma que foi erradamente que a Comissão excluiu esse empréstimo da contribuição própria da SeaFrance.

84      Em seguida, a República Francesa sustenta que, para preencher as condições estabelecidas nas orientações da Comissão, basta demonstrar que o financiamento previsto como contribuição própria é real, o mais elevado possível e isento de auxílio. Considera que, ao afirmar que a contribuição própria deve ainda provar a convicção dos mercados na possibilidade do regresso do beneficiário à viabilidade, a Comissão transformou essa convicção numa condição distinta e suplementar da condição do caráter de isenta de auxílio, e, consequentemente, violou o conceito de contribuição própria.

85      Por último, a República Francesa sustenta que a Comissão violou o conceito de contribuição própria ao afirmar, nos considerandos 161, 163 e 164 da decisão recorrida, que o financiamento da reestruturação SeaFrance pela SNCF não demonstra que os mercados acreditassem na possibilidade do retorno da SeaFrance à viabilidade, em particular, pelo facto de a autoridade prestadora do auxílio e a sociedade‑mãe do beneficiário do auxílio, locadora dos fundos, constituírem uma única pessoa jurídica.

86      Resulta da análise do primeiro fundamento que foi com razão que a Comissão concluiu que os empréstimos em causa, a recapitalização e o auxílio de emergência, apreciados conjuntamente, constituíam auxílios de Estado. Por conseguinte, há que observar que foi com razão que a Comissão excluiu o empréstimo de 99,7 milhões de euros da contribuição própria da SeaFrance, sem que seja necessário examinar os outros argumentos da República Francesa.

87      Por último, a República Francesa sustenta que foi erradamente que a Comissão observou no considerando 166 da decisão impugnada que as autoridades francesas não tinham invocado a cláusula das circunstâncias excecionais prevista no n.° 44 das orientações sobre o auxílio à reestruturação nem apresentado qualquer prova da existência dessa situação excecional.

88      Este argumento deve ser rejeitado. É certo que as autoridades francesas se referiram sucintamente na notificação de 18 de fevereiro de 2011 e na carta de 12 de setembro de 2011 ao n.° 44 das orientações sobre o auxílio à reestruturação, nos termos do qual, em circunstâncias excecionais e em situações de dificuldade particular que devem ser demonstradas pelo Estado‑Membro, a Comissão pode aceitar uma contribuição própria inferior aos 50% aplicáveis às grandes empresas.

89      No entanto, não se pode deixar de observar que, para fundamentar a aplicação da cláusula das circunstâncias excecionais prevista no referido ponto, as referidas autoridades se limitaram a indicar, por um lado, que a crise económica que atinge o mercado do Reino Unido e o estrangulamento dos mercados financeiros resultavam em dificuldades especiais para a SeaFrance e, por outro, que na decisão SNCB‑carga a Comissão tinha aceitado uma contribuição própria compreendida entre 15% e 25%. Ora, uma vez que a crise económica e o estrangulamento dos mercados financeiros afetam a generalidade das empresas, não podem ser qualificados de circunstâncias excecionais ou dificuldades particulares em relação a uma única empresa. A invocação de um precedente relativo à prática anterior da Comissão também não pode demonstrar a existência de circunstâncias excecionais ou de uma situação de dificuldade particular da empresa beneficiária do auxílio à reestruturação. A Comissão teve, portanto, razão ao concluir que as autoridades francesas não apresentaram o mínimo elemento de prova da existência de tais circunstâncias.

90      Resulta do exposto que o terceiro fundamento deve ser julgado improcedente.

 Quanto ao quarto fundamento, relativo à violação do artigo 345.° TFUE

91      Com o quarto fundamento, a República Francesa sustenta que a Comissão violou o artigo 345.° TFUE que prevê que os Tratados não prejudicam o regime da propriedade nos Estados‑Membros e que institui, segundo a jurisprudência, o princípio da igualdade de tratamento entre as empresas detidas total ou parcialmente pelo Estado ou estabelecimentos públicos, por um lado, e as empresas detidas pelos particulares, por outro.

92      Com o argumento principal apresentado no quadro do presente fundamento, a República Francesa sustenta que a Comissão violou o princípio da igualdade de tratamento, na medida em que resulta da decisão impugnada que, para beneficiar de uma medida de auxílio à reestruturação, uma empresa em dificuldade, filial de uma empresa pública, é obrigada a financiar‑se no mercado, junto de credores externos ao seu grupo, para completar o auxílio recebido. Ora, na mesma situação, uma filial de um grupo privado poderia apoiar‑se, para financiar a sua reestruturação, num auxílio público e no apoio de seu acionista, sem ter que demonstrar a sensatez desse financiamento. Assim, a Comissão baseou a sua decisão numa presunção da inexistência de conformidade com o mercado do comportamento de um acionista público. A violação do princípio da igualdade de tratamento entre empresas públicas e empresas privadas manifesta‑se na decisão impugnada pela recusa da Comissão de ter em conta as características intrínsecas dos empréstimos propostos pela SNCF para efeitos da aplicação do critério do investidor privado. Resulta, assim, da decisão impugnada que a uma empresa como a SeaFrance, detida a 100% por uma empresa pública, não pode ser concedido um empréstimo pelo seu único acionista quando esse acionista procede também a uma recapitalização dessa empresa.

93      Este argumento da República Francesa resulta de uma interpretação errada do princípio da igualdade de tratamento entre as empresas públicas e as empresas privadas e da inobservância do papel que desempenha o critério do investidor privado na aplicação desse princípio, devendo ser rejeitado.

94      Importa recordar que o critério do investidor privado constitui uma emanação do princípio da igualdade de tratamento entre os setores público e privado, princípio segundo o qual os capitais postos à disposição de uma empresa, direta ou indiretamente, pelo Estado, em circunstâncias que correspondem às condições normais do mercado, não podem ser qualificados de auxílios de Estado (v. acórdão de 12 de dezembro de 1996, Air France/Comissão, T‑358/94, Colet, EU:T:1996:194, n.° 70 e jurisprudência aí referida). Assim, a aplicação deste critério permite evitar a discriminação de uma vantagem concedida a uma empresa por meio de recursos do Estado, mas em condições do mercado, ser considerada um auxílio de Estado só por causa da proveniência estatal dos recursos.

95      No presente caso, a Comissão não baseou a sua decisão numa presunção da inexistência de conformidade com o mercado do comportamento de um acionista público, mas sim no facto de, por provirem de recursos estatais, os empréstimos em causa serem suscetíveis de constituir um auxílio de Estado. A fim de evitar uma qualificação automática desses empréstimos de auxílio de Estado e, assim, uma violação do princípio da igualdade de tratamento invocada pela República Francesa, a Comissão analisou‑os à luz do critério do investidor privado. Considerou, assim, que estes empréstimos eram indissociáveis das outras medidas executadas ou projetadas pelo Estado francês, através da SNCF, a favor da SeaFrance e que, apreciados conjuntamente, essas medidas e esses empréstimos não correspondiam ao critério do investidor privado.

96      Assim, o facto de não poder ser concedido à SeaFrance um empréstimo pelo seu único acionista, por esse acionista ter procedido igualmente a uma recapitalização da empresa, não é o resultado de uma violação do princípio da igualdade de tratamento entre as empresas privadas e públicas mas o resultado de uma aplicação correta do critério do investidor privado.

97      Os outros argumentos que a República Francesa no âmbito do presente fundamento também não podem ser acolhidos.

98      Por um lado, segundo a República Francesa, a Comissão violou o princípio da igualdade de tratamento entre as empresas públicas e as empresas privadas quando, com o fundamento de os empréstimos de 99,7 milhões de euros e de [confidencial] milhões de euros não terem sido propostos por um agente externo à SNCF, pediu às autoridades francesas que apresentassem um exemplo de uma proposta de empréstimo de um estabelecimento financeiro independente, uma cotação ou uma proposta de taxas provenientes de um banco comercial, em vez de aplicar a esses empréstimos uma taxa resultante da aplicação da comunicação relativa às taxas de referência.

99      Este argumento em nada demonstra uma violação do princípio da igualdade de tratamento pela Comissão. Os pedidos da Comissão devem ser considerados simples atos de verificação de que os empréstimos em causa correspondem ao critério do investidor privado, executados em conformidade com a jurisprudência que obriga a Comissão, quando se revele que este critério pode ser aplicável, a pedir ao Estado‑Membro em causa todas as informações pertinentes que lhe permitam verificar se os requisitos de aplicabilidade e de aplicação deste critério estão preenchidos (v., neste sentido, acórdão Comissão/EDF e o., já referido no n.° 31, supra, EU:C:2012:318, n.° 104).

100    Por outro lado, alega‑se que a Comissão violou o princípio da igualdade de tratamento entre as empresas públicas e as empresas privadas, ao considerar que os empréstimos em causa não podiam ser considerados uma contribuição própria da SeaFrance para a sua reestruturação unicamente pelo facto de não terem sido propostos por um agente externo à SNCF.

101    Este argumento resulta de uma leitura errada da decisão impugnada. Com efeito, como foi acima referido no n.° 80, a Comissão rejeitou o empréstimo de 99,7 milhões de euros da contribuição própria pelo facto de esse empréstimo não poder ser considerado isento de auxílio.

102    Resulta do exposto que o quarto fundamento deve ser julgado improcedente.

103    Consequentemente, deve ser negado integralmente provimento ao recurso.

 Quanto às despesas

104    Por força do disposto no artigo 87.°, n.° 2, do Regulamento de Processo do Tribunal Geral, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a recorrente sido vencida, há que condená‑la nas despesas, em conformidade com o pedido da Comissão.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL GERAL (Oitava Secção)

decide:

1)      É negado provimento ao recurso

2)      A República Francesa é condenada nas despesas.

Gratsias

Kancheva

Wetter

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 15 de janeiro de 2015.

Assinaturas


* Língua do processo: francês.


1      Dados confidenciais ocultados.