Language of document : ECLI:EU:C:1997:531

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

11 de Novembro de 1997(1)

«Concorrência — Artigos 85.°, 86.° e 90.° do Tratado CE — Indeferimento de uma queixa relativa, simultaneamente, a medidas estatais e a um comportamento de uma entidade privada — Aplicabilidade dos artigos 85.° e 86.° a empresas que cumprem a legislação nacional»

Nos processos apensos C-359/95 P e C-379/95 P,

Comissão das Comunidades Europeias, representada por Francisco Enrique González Díaz e Richard Lyal, membros do Serviço Jurídico, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo no gabinete de Carlos Gómez de la Cruz, membro do mesmo serviço, Centre Wagner, Kirchberg,
e
República Francesa, representada por Jean-François Dobelle, director-adjunto na Direcção dos Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, assistido por Catherine de Salins, sub-directora na mesma direcção, e Jean-Marc Belorgey, encarregado de missão na mesma direcção, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo na Embaixada da França, 8 B, boulevard Joseph II,

recorrentes,

que tem por objecto dois recursos interpostos do acórdão proferido pelo Tribunal de Primeira Instância das Comunidades Europeias (Primeira Secção Alargada), em 18 de Setembro de 1995, Ladbroke Racing/Comissão (T-548/93, Colect., p. II-2565), nos quais se pede a revogação deste acórdão,

sendo recorrida

Ladbroke Racing Ltd,sociedade de direito inglês, representada por Jeremy Lever, QC, e Christopher Vajda, barrister, mandatados por Stephen Kon, solicitor, com domicílio escolhido no Luxemburgo, no escritório dos advogados Winandy & Err, 60, avenue Gaston Diderich,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,



composto por: G. C. Rodríguez Iglesias, presidente, C. Gulmann, H. Ragnemalm e R. Schintgen, presidentes de secção, G. F. Mancini, P. J. G. Kapteyn (relator), J. L. Murray, D. A. O. Edward, J.-P. Puissochet, G. Hirsch e P. Jann, juízes,

advogado-geral: G. Cosmas,

secretário: H. von Holstein, secretário adjunto,

visto o relatório para audiência,

ouvidas as alegações das partes na audiência de 21 de Janeiro de 1997,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 13 de Maio de 1997,

profere o presente

Acórdão

  1. Por petições entradas na Secretaria do Tribunal de Justiça em 22 e 27 de Novembro de 1995, a Comissão das Comunidades Europeias (processo C-359/95 P) e a República Francesa (processo C-379/95 P) interpuseram recurso, nos termos do artigo 49.° do Estatuto CE do Tribunal de Justiça, do acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 18 de Setembro de 1995, Ladbroke Racing/Comissão (T-549/93, Colect., p. II-2565, a seguir «acórdão recorrido»), pelo qual este Tribunal anulou a decisão da Comissão contida na sua carta de 29 de Julho de 1993, que rejeitou uma queixa apresentada pela Ladbroke Racing Ltd (a seguir «Ladbroke») nos termos dos artigos 85.° e 86.° do Tratado CE (a seguir «decisão controvertida»).

  2. Por despacho de 29 de janeiro de 1996, o presidente do Tribunal de Justiça ordenou a apensação dos processos C-359/95 P e C-379/95 P para efeitos da fase escrita, da fase oral e do acórdão.

  3. Resulta do acórdão recorrido, n.os 2 a 7, que, em 24 de Novembro de 1989, a Ladbroke apresentou à Comissão uma queixa (IV/33.374) contra, por um lado, a República Francesa, nos termos do artigo 90.° do Tratado CE e, por outro, nos termos dos artigos 85.° e 86.° do Tratado, contra as dez principais sociedades de corridas de cavalos em França, bem como contra o Pari mutuel urbain, um agrupamento de interesse económico criado pelas referidas dez sociedades de corridas em França para gerir os respectivos direitos de organização de apostas sobre corridas de cavalos do tipo aposta mútua fora do hipódromo (a seguir «PMU»).

  4. A gestão pelo PMU dos direitos das sociedades de corridas à organização destas apostas era assegurada inicialmente sob a forma de «serviço comum» prestado no quadro de um decreto de 11 de Julho de 1930, relativo à extensão da aposta mútua fora do hipódromo, o qual, adoptado com base no artigo 186.° da lei de finanças de 16 de Abril de 1930, dispunha no seu artigo 1.°: «Poderá proceder-se, com a autorização do ministro da Agricultura, à organização e funcionamento da aposta mútua fora dos hipódromos através de sociedades de corridas parisienses que actuem conjuntamente com sociedades de corridas de província». Segundo o disposto no artigo 13.° do Decreto n.° 74-954, de 14 de Novembro de 1974, relativo às sociedades de corridas de cavalos, a PMU assegura, a partir daquela data, a gestão dos direitos de sociedades de corridas nas apostas mútuas fora do hipódromo, a título exclusivo, na medida em que tais disposições prevêem que «as sociedades de corridas autorizadas a organizar a aposta mútua fora dos hipódromos... confiem a sua gestão a um serviço comum denominado Pari mutuel urbain». Esta exclusividade do PMU é, além disso, protegida pela proibição de outras pessoas promoverem ou aceitarem apostas sobre as corridas de cavalos (artigo 8.° do despacho interministerial de 13 de Setembro de 1985, que aprova o Regulamento do Pari mutuel urbain). Esta exclusividade abrange as apostas no estrangeiro sobre as corridas organizadas em França, bem como as aceites em França sobre as corridas organizadas no estrangeiro, que apenas podem ser promovidas pelas sociedades autorizadas e/ou o PMU (artigo 15.°, n.° 3, da Lei n.° 64-1279, de 23 de Dezembro de 1964, lei de finanças para 1965, e artigo 21.° do Decreto n.° 83-878, de 4 de Outubro de 1983, relativo às sociedades de corridas de cavalos e à aposta mútua) (n.° 3 do acórdão recorrido).

  5. A queixa referia-se, designadamente, a este modo de organização em França das apostas mútuas fora do hipódromo.

  6. Quanto à parte da queixa contra o PMU e as sociedades membros, a Ladbroke invocou a existência de acordos ou práticas concertadas das sociedades de corridas autorizadas em França, entre si e com o PMU, tendo por objecto, em violação do artigo 85.° do Tratado, conceder ao PMU direitos exclusivos para a gestão e organização da aposta mútua fora do hipódromo sobre as corridas organizadas ou controladas pelas mesmas sociedades (n.° 5 do acórdão recorrido). A atribuição desses direitos exclusivos ao PMU constituía também, em violação do artigo 86.° do Tratado, abuso de posição dominante por parte das sociedades de corridas (n.° 6 do acórdão recorrido).

  7. Esta parte da queixa censurava, por outro lado, acordos ou práticas concertadas que tinham por objecto, em violação do artigo 85.° do Tratado, apoiar um pedido de obtenção de um auxílio de Estado a favor do PMU, bem como permitir ao PMU alargar as suas actividades a outros Estados-Membros além da República Francesa (n.° 5 do acórdão recorrido). Tinha igualmente por objectivo vista que fosse posto termo às infracções ao artigo 86.° do Tratado resultantes da obtenção pelo PMU de um auxílio de Estado ilegal e da utilização das vantagens resultantes deste auxílio para afrontar a concorrência. Por último, a Ladbroke informou a Comissão de outros abusos de posição dominante por parte do PMU, consistentes na exploração dos apostadores, utilizadores dos seus serviços (n.° 6 do acórdão recorrido).

  8. Quanto à parte da queixa que se refere à República Francesa, a Ladbroke alegou que esta violou, desde logo, os artigos 3.°, alínea g), [anterior artigo 3.°, alínea f)], 5.°, 52.°, 53.°, 85.°, 86.° e 90.°, n.° 1, do Tratado CE, com a publicação e a manutenção de uma legislação que dá base legal aos acordos das sociedades de corridas de cavalos entre si, por um lado, e com o PMU, por outro, concedendo a este direitos exclusivos em matéria de aceitação de apostas fora do hipódromo e proibindo a quem quer que seja promover ou aceitar, a não ser por intermédio do PMU, apostas fora dos hipódromos sobre as corridas de cavalos organizadas em França. Além disso, violou igualmente os artigos 3.°, alínea g) [antigo artigo 3.°, alínea f)], 52.°, 53.°, 59.°, 62.°, 85.°, 86.° e 90.°, n.° 1, do Tratado CE, com a publicação e a manutenção da legislação que proíbe a qualquer pessoa a realização em França de apostas sobre as corridas organizadas no estrangeiro, a não ser através das sociedades autorizadas e/ou do PMU. Por último, segundo a Ladbroke, a República Francesa violou os artigos 90.°, n.° 1, 92.° e 93.° do Tratado CE, em virtude dos auxílios ilegais concedidos ao PMU (n.° 7 do acórdão recorrido).

  9. Pela decisão controvertida, a Comissão rejeitou a queixa formulada contra o PMU e as sociedades membros quanto aos artigos 85.° e 86.° do Tratado com fundamento, por um lado, na inaplicabilidade dos artigos 85.° e 86.° do Tratado, e, por outro, na ausência de interesse comunitário (n.os 13 a 19 do acórdão recorrido).

  10. A Comissão não tomou posição quanto aos aspectos da queixa formulada contra a República Francesa em relação ao artigo 90.° do Tratado. Antes de a Comissão adoptar a decisão controvertida, foi julgada inadmissível uma acção por omissão, proposta pela Ladbroke pelo facto de a Comissão se ter abstido de fazer uso dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 90.°, n.° 3, do Tratado, por acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 27 de Outubro de 1994, Ladbroke/Comissão, T-32/93, Colect., p. II-1015, n.° 37) (n.° 10 do acórdão recorrido).

  11. Pelo acórdão recorrido, o Tribunal de Primeira Instância anulou a decisão controvertida por, ao indeferir definitivamente a parte da queixa que se referia ao PMU e às sociedades membros, por inaplicabilidade dos artigos 85.° e 86.° do Tratado e pela falta de interesse comunitário, sem previamente ter terminado o exame da compatibilidade da legislação nacional francesa com as regras da concorrência do Tratado, a Comissão não ter cumprido a obrigação de examinar atentamente os elementos de facto e de direito trazidos ao seu conhecimento pelas queixosas para poder dar satisfação à exigência de certeza que deve caracterizar uma decisão final sobre a existência ou não de uma infracção (n.° 50 do acórdão recorrido). Segundo o Tribunal, a Comissão assentou assim, a sua fundamentação numa interpretação viciada por erro de direito sobre as condições em que pode ser feita uma apreciação definitiva sobre a existência ou não das infracções alegadas (n.° 51 do acórdão recorrido).

  12. Para mais ampla exposição da matéria de facto na origem do litígio, remete-se para os n.os 1 a 19 do acórdão recorrido.

  13. A Comissão conclui pedindo que o Tribunal se digne:

    1)    anular o acórdão recorrido na medida em que este anulou a decisão controvertida;

    2)    negar provimento ao recurso interposto ao abrigo do artigo 173.° do Tratado CE e

    3)    condenar a Ladbroke nas despesas efectuadas no Tribunal de Primeira Instância e no Tribunal de Justiça.

  14. A República Francesa conclui pedindo que o Tribunal se digne:

    1)    anular o acórdão recorrido na medida em que este anulou a decisão controvertida e

    2)    julgar procedentes os pedidos formulados pela Comissão no Tribunal de Primeira Instância.

  15. A Ladbroke conclui pedindo que o Tribunal se digne:

    1)    negar provimento aos recursos interpostos nos processos C-359/95 P e C-379/95 P;

    2)    condenar a Comissão e a República Francesa a suportar as despesas efectuadas pela Ladbroke;

    3)    a título subsidiário, caso o Tribunal de Justiça dê provimento aos recursos, apreciar o litígio e decidir quanto às questões não resolvidas, suscitadas no recurso interposto pela Ladbroke no processo T-548/93, ou remeter o processo ao Tribunal de Primeira Instância para que este decida sobre estas questões.

  16. Em apoio do recurso, a Comissão adianta três fundamentos. O primeiro consiste em erro de direito, na medida em que o Tribunal de Primeira Instância considerou que, quando o artigo 90.°, por um lado, e os artigos 85.° e 86.° do Tratado, por outro, podem ser relevantes para efeitos da solução do mesmo litígio, a Comissão deve concluir a sua análise à luz do artigo 90.°, antes de se pronunciar quanto à aplicabilidade dos artigos 85.° e 86.°, ou quanto à existência de interesse comunitário em dar sequência à queixa. O Tribunal de Primeira Instância estabeleceu, por isso, uma ordem de prioridades entre o procedimento previsto no Regulamento n.° 17 do Conselho, de 6 de Fevereiro de 1962, Primeiro Regulamento de execução dos artigos 85.° e 86.° do Tratado (JO 1962, 13, p. 204; EE 8 F1 p. 22), e o processo instaurado contra um Estado-Membro porincumprimento das suas obrigações, o que é incompatível com o poder discricionário da Comissão para decidir que aspecto de uma queixa deve ser apreciado em primeiro lugar, e contra quem (as empresas ou o Estado-Membro) deve o procedimento ser instaurado em primeiro lugar.

  17. O segundo fundamento consiste em erro de direito, na medida em que o Tribunal entendeu que aquele princípio geral se deve aplicar mesmo quando uma verificação nos termos do artigo 90.° do Tratado não é logicamente necessária para averiguação da aplicabilidade dos artigos 85.° a 86.° do Tratado. No caso concreto, o Tribunal de Primeira Instância não teve em conta a conclusão da Comissão segundo a qual, seja qual for a compatibilidade da legislação francesa com o Tratado, não se verificavam determinadas condições prévias exigidas para aplicação dos artigos 85.° e 86.° e, em qualquer caso, não existia interesse suficiente para dar sequência à queixa no que se refere aos artigos 85.° e 86.°

  18. O terceiro fundamento consiste em falta de fundamentação, na medida em que o Tribunal não cumpriu a obrigação de, por um lado, esclarecer por que razão a Comissão tinha de analisar a legislação francesa à luz do artigo 90.° antes de rejeitar os pedidos formulados na queixa no que se refere aos artigos 85.° e 86.° e, por outro lado, de indicar por que motivo a Comissão não podia ter em conta o interesse comunitário ao determinar a prioridade a conceder aos diferentes aspectos da queixa, ou de que forma a Comissão apreciou de modo manifestamente incorrecto, no caso concreto, o interesse comunitário.

  19. A República Francesa invoca também três fundamentos em apoio do seu recurso. O Primeiro consiste num erro de direito, na medida em que o Tribunal de Primeira Instância não teve em conta a jurisprudência do Tribunal de Justiça nos termos da qual, quando medidas estatais não deixam liberdade de acção às empresas, como sucedeu no caso concreto a partir de 1974, os artigos 85.° e 86.° do Tratado não podem ser aplicados às mesmas empresas enquanto as referida medidas se mantiverem em vigor.

  20. Em resposta a este fundamento do Governo francês, a Comissão esclarece, contudo, que há que distinguir entre as medidas estatais que impõem às empresas comportamentos contrários aos artigos 85.° e 86.° do Tratado e as medidas que, sem imporem qualquer comportamento contrário às referidas disposições, criam um quadro jurídico que, por si só, limita a concorrência. No primeiro caso, a Comissão considera que o artigo 85.° se aplica ao comportamento das empresas não obstante a existência de obrigações legais nacionais, independentemente da eventual aplicação dos artigos 3.°, alínea g), 5.° e 85.° do Tratado às referidas medidas estatais. Efectivamente, a Comissão afirma que uma empresa pode e deve, por força do primado do direito comunitário e do efeito directo dos artigos 85.°, n.° 1, e 86.° do Tratado, recusar-se a obedecer a uma medida estatal que lhe imponha um comportamento contrário a estas disposições.

  21. Pelo contrário, no segundo caso, e em certas circunstâncias, o artigo 85.° pode não ser aplicável. Sucede assim no caso presente, em que a legislação de 1974 não impunha a celebração de um acordo entre as principais sociedades de corridas, ela própria confiando exclusivamente ao PMU a organização das apostas mútuas fora do hipódromo. O efeito restritivo da concorrência resulta, assim, directamente da legislação nacional, sem que seja necessário um comportamento por parte da empresa.

  22. O segundo fundamento do Governo francês invoca um erro de direito, na medida em que o Tribunal de Primeira Instância não teve em conta a jurisprudência constante segundo a qual uma entidade que apresenta um pedido nos termos do Regulamento n.° 17 não tem o direito de exigir uma decisão definitiva quanto à existência ou não de uma alegada infracção aos artigos 85.° e 86.° do Tratado. O Tribunal não teve em conta, designadamente, a fundamentação da Comissão relativa à ausência de interesse comunitário em dar sequência à queixa, que se baseia na circunstância de, a partir de 1974, a ausência de concorrência no mercado francês da aceitação de apostas resultar directamente da legislação, pelo que a eventual verificação de uma infracção aos artigos 85.° e 85.° por parte das sociedades de corridas e pelo PMU não teria qualquer efeito útil sobre a situação da concorrência a partir daquela data; quanto ao período anterior a 1974, a verificação de uma eventual infracção às regras do Tratado só poderia levar à concessão de uma indemnização, cujo pagamento a Comissão não tem competência para ordenar.

  23. O terceiro fundamento do Governo francês assenta num erro de direito que consiste em que o Tribunal de Primeira Instância pôs em causa o poder discricionário da Comissão para agir contra um Estado-Membro devido a uma legislação alegadamente contrária ao Tratado.

  24. Convém salientar que, nos seus vários fundamentos, a Comissão e a República Francesa, embora em termos e com finalidades distintas, contestam os fundamentos da argumentação do Tribunal segundo a qual a Comissão deveria, em primeiro lugar, ter concluído a sua análise quanto à compatibilidade da legislação nacional francesa com as regras de concorrência do Tratado, antes de poder rejeitar definitivamente a queixa apresentada no que se refere aos artigos 85.° e 86.° do Tratado.

  25. Deve, por isso, ser analisada esta argumentação, bem como o raciocínio que lhe está subjacente.

  26. No n.° 46 do acórdão recorrido, o Tribunal declarou que a Comissão «...procedeu à abertura do processo de exame da queixa da recorrente com base no artigo 90.° do Tratado, a fim de apreciar a compatibilidade da legislação nacional francesa com as outras disposições do Tratado e que tal procedimento ainda está pendente». Conforme o Tribunal referiu, convinha «...por conseguinte... examinar se a Comissão podia rejeitar definitivamente a queixa da recorrente com base nos artigos 85.° e 86.° do Tratado e do Regulamento n.° 17, sem antes ter terminado o exame da queixa com base no artigo 90.° do Tratado».

  27. No n.° 47 do acórdão recorrido, o Tribunal salientou que «... a Comissão sustentou, na fase escrita do processo e na audiência, que o problema de concorrência suscitado pela queixa da recorrente apenas podia ser resolvido mediante exame da compatibilidade da legislação nacional francesa sobre o monopólio legal do PMU com as normas do Tratado e uma eventual intervenção com base no artigo 90.° do Tratado e que, por isso, este exame revestia carácter prioritário, sendo o seu resultado válido para todos os acordos prévios ou futuros entre as sociedades de corridas (contestação, n.° 46)». O Tribunal concluiu daqui que «... a apreciação, face aos artigos 85.° e 86.° do Tratado, dos comportamentos das sociedades de corridas e do PMU denunciados pela Ladbroke na sua queixa não podia ser feita sem uma prévia avaliação da legislação nacional face às disposições do Tratado».

  28. Segundo o Tribunal, no caso de a Comissão concluir pela conformidade entre a legislação nacional em causa e as normas do Tratado, a conformidade dos comportamentos das sociedades de corridas de cavalos e do PMU faria com que tais comportamentos devessem ser igualmente considerados conformes às disposições dos artigos 85.° e 86.° do Tratado, ao passo que, a não conformidade de tais comportamentos com a legislação nacional poderia conduzir à conclusão de que constituíam infracções aos artigos 85.° e 85.° do Tratado (n.° 48 do acórdão recorrido). Ao invés, caso a Comissão verificasse que a legislação não era conforme às disposições do Tratado, teria que examinar seguidamente se o facto de as sociedades e o PMU actuarem de acordo com as disposições duma legislação nacional contrária às normas do Tratado podia ou não determinar a adopção de medidas contra aquelas sociedades, visando pôr termo às infracções ao disposto nos artigos 85.° e 86.° do Tratado (n.° 49 do acórdão recorrido).

  29. Assim, o Tribunal, no n.° 50 do acórdão recorrido, concluiu que «... não pode considerar-se que a Comissão, ao rejeitar definitivamente a queixa da recorrente com base nos artigos 85.° e 86.° do Tratado sem previamente ter terminado o exame da compatibilidade da legislação nacional francesa com as disposições do Tratado, tenha cumprido a obrigação de examinar atentamente os elementos de facto e de direito trazidos ao seu conhecimento pelas queixosas... para poder dar satisfação à exigência de certeza que deve caracterizar uma decisão final sobre a existência ou não de uma infracção... Não podia pois, nesta altura, concluir pela não aplicabilidade das disposições referidas do Tratado aos comportamentos das principais sociedades de corridas francesas e do PMU postos em causa pela recorrente e, consecutivamente, pela ausência de interesse comunitário na averiguação das infracções por ela alegadas com o fundamento de que se tratava de antigas violações às normas de concorrência».

  30. O raciocínio do Tribunal baseia-se, assim, no pressuposto de que a legalidade, à luz dos artigos 85.° e 86.° do Tratado, do comportamento das empresas que obedecem à legislação nacional, bem como o procedimento que há interesse em instaurar contra as mesmas, devem ser apreciados em função da compatibilidade ou não da referida legislação com o Tratado.

  31. A este respeito, deve salientar-se que a compatibilidade de uma legislação nacional com as regras de concorrência do Tratado não pode ser considerada determinante no âmbito do exame da aplicabilidade dos artigos 85.° e 86.° do Tratado aos comportamentos de empresas que obedecem à referida legislação.

  32. Se é certo que a apreciação dos comportamentos das sociedades de corridas e do PMU, à luz dos artigos 85.° e 86.° do Tratado, impõe uma apreciação prévia da legislação francesa, essa apreciação tem, contudo, como único objecto a incidência que a mesma legislação pode ter sobre os referidos comportamentos.

  33. Efectivamente, os artigos 85.° e 86.° do Tratado referem-se apenas a comportamentos contrários à concorrência adoptados pelas empresas por sua própria iniciativa (v., neste sentido, no que se refere ao artigo 86.° do Tratado, acórdãos de 20 de Março de 1985, Itália/Comissão, 41/83, Recueil, p. 873, n.os 18 a 20; de 19 de Março de 1991, França/Comissão, designado «Terminais», C-202/88, Colect., p. I-1223, n.° 55, e de 13 de Dezembro de 1991, GB-Inno-BM, C-18/88, Colect., p. I-5941, n.° 20). Se às empresas é imposto por uma legislação nacional um comportamento contrário à concorrência, ou se esta legislação cria um quadro jurídico que, por si só, elimina qualquer possibilidade de comportamento concorrencial da sua parte, os artigos 85.° e 86.° não são aplicáveis. Numa situação deste tipo, como resulta das referidas disposições, a limitação da concorrência não é causada por comportamentos autónomos das empresas (v., igualmente, acórdão de 16 de Dezembro de 1975, Suicker Unie e o./Comissão, 40/73 a 48/73, 50/73, 54/73, 55/73, 56/73, 111/73, 113/73 e 114/73, Colect., p. 563, n.os 36 a 72 e, mais em especial, n.os 65 e 66, bem como os n.os 71 e 72).

  34. Pelo contrário, os artigos 85.° e 86.° do Tratado podem ser aplicados se se revelar que a legislação nacional deixa subsistir a possibilidade de existência de concorrência, susceptível de ser entravada, limitada ou falseada por comportamentos autónomos das empresas (v. acórdãos de 29 de Outubro de 1980, Van Landewyck e o./Comissão, 209/78 a 215/78 e 218/78, Recueil, p. 3125; de 10 de Dezembro de 1985, Stichting Sigarettenindustrie e o./Comissão, 240/82, 241/82, 242/82, 261/82, 262/82, 268/82 e 269/82, Recueil, p. 3831, e de 17 de Julho de 1997, Ferriere Nord/Comissão, C-219/95 P, ainda não publicado na Colectânea).

  35. No âmbito da análise pela Comissão quanto à aplicabilidade dos artigos 85.° e 86.° do Tratado aos comportamentos das empresas, a avaliação prévia de uma legislação nacional que tem incidência sobre esses comportamentos só incide, portanto, sobre a questão de saber se a referida legislação deixa subsistir a possibilidade de existência de concorrência, susceptível de ser entravada, limitada ou falseada por comportamentos autónomos da parte das empresas.

  36. Daqui resulta que o Tribunal cometeu um erro de direito ao decidir que a Comissão, por ter rejeitado definitivamente a queixa invocando a inaplicabilidade dos artigos 85.° e 86.° do Tratado e a ausência de interesse comunitário antes de terminar o seu exame quanto à compatibilidade da legislação nacional francesa com as regras de concorrência do Tratado, baseou o seu raciocínio numa interpretação juridicamente errada das condições em que a apreciação definitiva quanto à existência ou não das infracções alegadas pode ser efectuada.

  37. Assim, sem que seja necessário analisar os restantes argumentos invocados pelasrecorrentes, deve ser anulado o acórdão recorrido.

    Quanto à remessa do processo ao Tribunal de Primeira Instância

  38. Por força do primeiro parágrafo do artigo 54.° do Estatuto CE do Tribunal de Justiça, quando o recurso for procedente, o Tribunal de Justiça anulará a decisão do Tribunal de Primeira Instância. Pode, neste caso, julgar definitivamente o litígio, se este estiver em condições de ser julgado, ou remeter o processo ao Tribunal de Primeira Instância para julgamento.

  39. Dado que o litígio não está em condições de ser decidido, uma vez que o Tribunal de Primeira Instância só decidiu relativamente a uma das acusações formuladas pela Ladbroke, deve o processo ser-lhe novamente remetido.

    Pelos fundamentos expostos,

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

    decide:

    1. É anulado o acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 18 de Setembro de 1995, Ladbroke Racing/Comissão (T-548/93).

    2. O processo é remetido ao Tribunal de Primeira Instância.

    3. Reserva-se para final a decisão quanto às despesas.


    Rodríguez Iglesias         Gulmann         Ragnemalm
    Schintgen

    Mancini            Kapteyn             Murray

    Edward

            Puissochet            Hirsch            Jann

    Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 11 de Novembro de 1997.

    O secretário

    O presidente

    R. Grass

    G. C. Rodríguez Iglesias


1: Língua do processo: inglês.