Language of document : ECLI:EU:C:2024:463

Edição provisória

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MACIEJ SZPUNAR

apresentadas em 6 de junho de 2024 (1)

Processo C230/23

Reprobel CV

contra

Copaco Belgium NV

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Ondernemingsrechtbank Gent Afdeling Gent (Tribunal das Empresas de Gent, Secção de Gent, Bélgica)]

Reenvio prejudicial — Propriedade intelectual — Direitos de autor e direitos conexos — Diretiva 2001/29/CE — Artigo 2.° — Direito de reprodução de uma obra — Artigo 5.°, n.° 2, alíneas a) e b) — Exceções e limitações — Reprodução para uso privado — Compensação equitativa — Efeito direto — Entidade encarregada da cobrança e repartição da compensação equitativa — Possibilidade de invocar diretamente a diretiva contra essa entidade






 Introdução

1.        As questões prejudiciais no presente processo exigem que se retome uma das questões fundamentais do direito da União, nomeadamente, o problema do efeito direto das disposições das diretivas e a possibilidade de invocar essas disposições em relações verticais, ou seja, num litígio que opõe um particular a um Estado‑Membro. Embora remonte aos primórdios da construção da ordem jurídica da União, esta problemática continua a suscitar litígios e controvérsia (2).

2.        O processo em apreço diz respeito a ambos os problemas que se prendem com esta questão. Isto porque, por um lado, se trata de saber se são suscetíveis de ter efeito direto disposições de uma diretiva que, embora tendo caráter facultativo, o Estado‑Membro em causa optou por aplicar. Além disso, no processo em apreço, essa aplicação, como resulta expressamente do acórdão do Tribunal de Justiça, ocorreu de forma incompatível com o direito da União. Por outro lado, a parte no presente processo suscita uma vez mais a questão da possibilidade de invocar o efeito direto de uma disposição de uma diretiva contra uma entidade privada encarregada por um Estado‑Membro de executar uma missão de interesse público.

3.        Afigura‑se necessário que o Tribunal de Justiça esclareça a sua jurisprudência anterior relativamente a estas duas questões.

 Quadro jurídico

 Direito da União

4.        O artigo 2.° da Diretiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação (3) dispõe:

«Os Estados‑Membros devem prever que o direito exclusivo de autorização ou proibição de reproduções, diretas ou indiretas, temporárias ou permanentes, por quaisquer meios e sob qualquer forma, no todo ou em parte, cabe:

a)      Aos autores, para as suas obras;

b)      Aos artistas intérpretes ou executantes, para as fixações das suas prestações;

c)      Aos produtores de fonogramas, para os seus fonogramas;

d)      Aos produtores de primeiras fixações de filmes, para o original e as cópias dos seus filmes;

e)      Aos organismos de radiodifusão, para as fixações das suas radiodifusões, independentemente de estas serem transmitidas por fio ou sem fio, incluindo por cabo ou satélite.»

5.        Nos termos do artigo 5.°, n.° 2, alíneas a) e b), dessa diretiva:

«Os Estados‑Membros podem prever exceções ou limitações ao direito de reprodução previsto no artigo 2.° nos seguintes casos:

a)      Em relação à reprodução em papel ou suporte semelhante, realizada através de qualquer tipo de técnica fotográfica ou de qualquer outro processo com efeitos semelhantes, com exceção das partituras, desde que os titulares dos direitos obtenham uma compensação equitativa;

b)      Em relação às reproduções em qualquer meio efetuadas por uma pessoa singular para uso privado e sem fins comerciais diretos ou indiretos, desde que os titulares dos direitos obtenham uma compensação equitativa que tome em conta a aplicação ou a não aplicação de medidas de caráter tecnológico, referidas no artigo 6.°, à obra ou outro material em causa;».

 Direito belga

6.        O direito belga, na redação aplicável ao litígio no processo principal, introduziu uma remuneração a título das exceções ao direito de reprodução nos artigos 59.° e 60.° da wet van 30 juni 1994 betreffende het auteursrecht en de naburige rechten (Lei de 30 de junho de 1994, relativa aos Direitos de Autor e Direitos Conexos) (4). A remuneração era composta por uma parte fixa que dependia do número de aparelhos que permitem a reprodução de obras protegidas e por uma parte proporcional ao número de cópias feitas dessas obras.

7.        Nos termos do artigo 60a.° dessa lei, a entidade encarregada da cobrança e repartição da referida remuneração tinha o direito de pedir informações pertinentes às autoridades aduaneiras, às autoridades tributárias em matéria de imposto sobre o valor acrescentado, às autoridades de segurança social, ao serviço de fiscalização e mediação do Ministério da Economia, bem como, sob reserva de reciprocidade, às entidades estrangeiras homólogas.

8.        Com base no artigo 61.° da referida lei, o montante da remuneração era determinado pelo koninklijk besluit van 30 oktober 1997 betreffende de vergoeding verschuldigd aan auteurs en uitgevers voor het kopiëren voor privégebruik of didactisch gebruik van werken die op grafische of op soortgelijke wijze zijn vastgelegd (Decreto Real, de 30 de outubro de 1997, relativo à remuneração dos autores e dos editores pela cópia, para fins privados ou didáticos, de obras fixadas em suporte gráfico ou análogo) (5). Nos termos do artigo 7.° desse decreto, as entidades obrigadas a pagar a referida remuneração deviam apresentar à entidade encarregada da cobrança das remunerações em causa declarações mensais com informações que permitissem identificar a entidade obrigada a pagar e especificar o montante das remunerações devidas em função do número de aparelhos vendidos.

9.        Por força do koninklijk besluit van 15 oktober 1997 tot het belasten van een vennootschap met de inning en de verdeling van de vergoeding voor het kopiëren van werken die op grafische of soortgelijke wijze zijn vastgelegd (Decreto Real de 15 de outubro de 1997, relativo à determinação da entidade encarregada da cobrança e repartição da remuneração pela reprodução de obras fixadas em suportes gráficos ou analógicos)(6), a sociedade Reprobel foi encarregada da cobrança e repartição da referida remuneração.

 Factos do processo principal, tramitação processual e questões prejudiciais

10.      A Copaco Belgium NV, sociedade de direito belga (a seguir «sociedade Copaco») é uma distribuidora de material informático para empresas e consumidores, incluindo aparelhos de cópia, como fotocopiadoras e scanners. A este título, estava sujeita ao pagamento de uma remuneração pela reprodução de obras.

11.      No Acórdão Hewlett‑Packard Belgium(7), o Tribunal de Justiça declarou, nomeadamente, que o artigo 5.°, n.° 2, alíneas a) e b), da Diretiva 2001/29 se opõe, em princípio, a uma legislação nacional, como a belga, que combina uma remuneração fixa com uma remuneração proporcional sem, no entanto, assegurar mecanismos que permitam ajustar o montante da remuneração ao prejuízo efetivo sofrido pelos titulares dos direitos de autor (8). Em março de 2017, entraram em vigor novas disposições no direito belga relativas à remuneração pela reprodução de obras, em conformidade com as diretrizes resultantes desse acórdão.

12.      Na sequência do referido acórdão, a sociedade Copaco recusou‑se a pagar as faturas que lhe tinham sido emitidas pela sociedade Reprobel com base nas declarações que tinha apresentado relativas ao período compreendido entre novembro de 2015 e dezembro de 2016. Isto porque a sociedade Copaco considera que, em conformidade com o Acórdão Hewlett‑Packard Belgium, o sistema belga de remuneração da reprodução de obras era, durante o período controvertido, incompatível com o direito da União.

13.      Em 16 de dezembro de 2020, a sociedade Reprobel intentou uma ação judicial contra a sociedade Copaco, exigindo o pagamento da remuneração pela reprodução de obras em dívida, acrescido de juros e uma indemnização. O processo foi remetido ao órgão jurisdicional de reenvio em função da sua competência territorial. A sociedade Copaco alega, nesse órgão jurisdicional, que o artigo 5.°, n.° 2, alíneas a) e b), da Diretiva 2001/29 tem efeito direto e que a sociedade Reprobel é uma emanação do Estado contra a qual esse efeito direto pode ser invocado. A sociedade Reprobel contesta estas duas afirmações.

14.      Nestas circunstâncias, o Ondernemingsrechtbank Gent Afdeling Gent (Tribunal das Empresas de Gent, Secção de Gent, Bélgica) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Pode um particular opor, em sua defesa, a uma entidade, como a [sociedade Reprobel], na medida em que esta tenha sido encarregada pelo Estado, mediante mandato real, de assegurar a cobrança e a repartição da(s) compensação(ões) equitativa(s) prevista(s) no artigo 5.°, n.° 2, alíneas a) e b), da Diretiva 2001/29, e seja controlada pelo Estado, a incompatibilidade com o direito da União de uma norma nacional que essa entidade pretende impor a esse particular?

2)      É relevante para a resposta a esta questão o facto de o controlo exercido pelo Estado sobre esta entidade incluir, nomeadamente:

–        A obrigação de essa entidade transmitir sempre ao ministro competente uma cópia do pedido de dados enviado aos devedores, necessário tanto para a cobrança como para a repartição da taxa de reprografia, para que o mesmo possa conhecer o modo como a entidade exerce o seu direito de controlo e decidir se é oportuno determinar, por decreto ministerial, o conteúdo, o número e a frequência dos pedidos de dados para que a referida entidade não perturbe mais do que o necessário a atividade das pessoas inquiridas;

–        A obrigação de a entidade recorrer ao representante do ministro para transmitir um pedido de dados, necessário para a cobrança da taxa de reprografia proporcional, a enviar aos devedores, aos concessionários, grossistas ou retalhistas, às sociedades de leasing ou às sociedades de manutenção de aparelhos, se o devedor não tiver colaborado na cobrança, entendendo‑se para o efeito que a entidade tem igualmente a obrigação de transmitir uma cópia deste pedido ao ministro competente a fim de que este possa determinar o conteúdo, o número e a frequência dos pedidos de dados para que a referida entidade não perturbe mais do que o necessário a atividade das pessoas inquiridas;

–        A obrigação de a entidade submeter à aprovação do ministro competente as regras de repartição da taxa de reprografia, bem como quaisquer alterações aí introduzidas;

–        A obrigação de a entidade submeter à aprovação do ministro competente o formulário de declaração por si elaborado, sob pena de este não poder ser distribuído?

3)      É relevante para a resposta à questão submetida o facto de a entidade dispor dos seguintes poderes:

–        O poder de exigir todos os dados necessários à cobrança da taxa de reprografia a todas as pessoas devedoras da taxa, pessoas sujeitas à obrigação de contribuição, concessionários, grossistas ou retalhistas, sociedades de leasing e empresas de manutenção de aparelhos. O pedido deve sempre incluir obrigatoriamente a menção das sanções penais aplicáveis em caso de incumprimento do prazo fixado ou de comunicação de informações incompletas ou inexatas;

–        O poder de exigir a todos os devedores que forneçam todos os dados relativos às obras copiadas necessários à repartição da taxa de reprografia;

–        O poder de obter todas as informações necessárias ao desempenho das suas funções junto da Administração Aduaneira e dos Impostos Especiais de Consumo, da Administração [do imposto sobre o valor acrescentado] e do Instituto Nacional de Segurança Social?

4)      O artigo 5.°, n.° 2, alíneas a) e b), da Diretiva 2001/29 tem efeito direto?

5)      Deve um órgão jurisdicional nacional, a pedido de um particular, afastar a aplicação de uma norma nacional se esta norma imposta pelo Estado for contrária ao referido artigo 5.°, n.° 2, alíneas a) e b), da Diretiva 2001/29, mais especificamente porque esta norma impõe ao particular, em violação do referido artigo, o pagamento de taxas?»

15.      O pedido de decisão prejudicial deu entrada no Tribunal de Justiça em 13 de abril de 2023. Apresentaram observações escritas as partes no processo principal, o Governo Belga e a Comissão Europeia. As mesmas partes, bem como o Governo Francês, estiveram representados na audiência realizada em 6 de março de 2024.

 Análise

16.      O órgão jurisdicional de reenvio submete, no processo em apreço, cinco questões prejudiciais. As três primeiras dizem respeito à possibilidade de considerar uma entidade como a sociedade Reprobel uma emanação de um Estado‑Membro, com a consequência de uma disposição de uma diretiva poder ser invocada diretamente por um particular contra esse Estado‑Membro. Por sua vez, as duas últimas questões dizem respeito à questão de saber se o artigo 5.°, n.° 2, alíneas a) e b), da Diretiva 2001/29 pode ser invocado diretamente. Proponho começar a análise por estas duas últimas questões.

 Quanto à quarta e quinta questões prejudiciais

17.      Com as suas quarta e quinta questões prejudiciais, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, no essencial, determinar se o artigo 5.°, n.° 2, alíneas a) e b), da Diretiva 2001/29 tem efeito direto, pelo que um particular o pode invocar perante um órgão jurisdicional nacional a fim de evitar o pagamento de uma taxa a título de uma compensação equitativa, quando essa taxa é cobrada com base em disposições nacionais incompatíveis com as disposições referidas da Diretiva 2001/29.

 Quanto ao princípio do efeito direto

18.      O princípio do efeito direto das disposições do direito da União remonta aos primórdios deste sistema jurídico. Com efeito, como é sobejamente conhecido, o Tribunal de Justiça consagrou este princípio no Acórdão van Gend & Loos (9), que foi fundamental para esse sistema jurídico. A aplicação do princípio do efeito direto a disposições de diretivas que reúnam determinadas condições foi confirmada no Acórdão van Duyn (10). Atualmente, o Tribunal de Justiça formula esse princípio do seguinte modo:

«Resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que, sempre que as disposições de uma diretiva se afigurem, do ponto de vista do seu conteúdo, incondicionais e suficientemente precisas, os particulares têm o direito de as invocar nos tribunais nacionais contra o Estado, quer quando este não as tenha transposto para o direito nacional nos prazos previstos na diretiva, quer quando delas tenha feito uma transposição incorreta […].

O Tribunal de Justiça precisou que uma disposição do direito da União é, por um lado, incondicional quando prevê uma obrigação que não está sujeita a nenhuma condição nem está subordinada, na sua execução ou nos seus efeitos, à adoção de um ato das instituições da União ou dos Estados‑Membros e, por outro, é suficientemente precisa para ser invocada por um litigante e aplicada pelo juiz quando prevê uma obrigação em termos inequívocos.

Além disso, o Tribunal de Justiça declarou que ainda que uma diretiva confira aos Estados‑Membros uma certa margem de apreciação na adoção das modalidades da sua aplicação, pode considerar‑se que uma disposição dessa diretiva tem caráter incondicional e preciso quando impõe aos Estados‑Membros, em termos inequívocos, uma obrigação de resultado precisa, que não está subordinada a nenhuma condição relativa à aplicação da regra nela enunciada […]»(11).

19.      É neste contexto que deve ser ponderada a resposta à quarta e quinta questões.

 Quanto à aplicação ao processo em apreço

20.      A sociedade Reprobel e os Governos Belga e Francês alegam que, tendo em conta a ampla margem de apreciação de que dispõem os Estados‑Membros na organização do sistema de compensação equitativa previsto no artigo 5.°, n.° 2, alíneas a) e b), da Diretiva 2001/29 e no seu financiamento, estas disposições não são suficientemente incondicionais e precisas para que lhes seja atribuído efeito direto com base na jurisprudência do Tribunal de Justiça acima referida.

21.      Esta tese parece discutível à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça segundo a qual estas disposições impõem ao Estado‑Membro que introduziu a exceção de cópia privada uma obrigação de resultado, no sentido de que este Estado tem o dever de assegurar uma cobrança efetiva da compensação equitativa (12), que deve necessariamente ser calculada com base no critério do prejuízo causado aos titulares do direito (13) e cujo encargo financeiro deve, em princípio, ser suportado pelos utilizadores finais(14). Por conseguinte, o Tribunal de Justiça não teve dificuldades em encontrar, nas disposições em causa, regras precisas e incondicionais relativas à forma como é constituída a compensação equitativa nelas previstas.

22.      No entanto, antes de mais, e independentemente de saber se a própria obrigação de prever essa compensação cumpre os critérios de efeito direto mencionados no n.° 18 das presentes conclusões, o argumento das partes no processo identificadas é, na minha opinião, totalmente inoperante no contexto do presente processo. Isto porque não se trata de declarar o efeito direto das disposições referidas da Diretiva 2001/29 in abstrato, mas em relação com o litígio no processo principal. Ora, no processo não está em causa o pagamento, diretamente com base nas referidas disposições, da compensação equitativa, mas o direito da sociedade Copaco de recusar o pagamento de uma taxa destinada a financiar essa compensação e cobrada de maneira incompatível com essa diretiva (a seguir «taxa controvertida»).

23.      Ao examinar a questão do efeito direto do direito da União, há que ter em conta todas as normas, ou seja, regras jurídicas que decorrem das disposições desse direito e das quais os particulares retiram direitos precisos e incondicionais em relação ao Estado. Essas regras não têm necessariamente de resultar diretamente da redação literal das disposições, mas podem, com base nestas, ser construídas por via de interpretação, especialmente através da interpretação do Tribunal de Justiça. Com efeito, como acertadamente observa a sociedade Copaco, a interpretação das disposições do direito da União feita pelo Tribunal de Justiça a título prejudicial clarifica e precisa o significado e o alcance da mesma, tal como deve ser ou deveria ter sido entendida e aplicada desde a data da sua entrada em vigor, pelo que essa interpretação deve ser tida em conta para determinar se essa disposição é suficientemente precisa para se considerar que tem efeito direto (15).

24.      No que respeita às disposições do artigo 5.°, n.° 2, alíneas a) e b) da Diretiva 2001/29 decorrem daí, nomeadamente, três normas jurídicas. Em primeiro lugar, o poder de os Estados‑Membros preverem exceções ao direito de reprodução previstas nessas disposições; esta regra é de caráter facultativo. Em segundo lugar, a imposição de prever uma compensação equitativa para os titulares desse direito de reprodução; esta norma tem caráter vinculativo para os Estados‑Membros que introduziram as exceções em causa. Em terceiro e último lugar, um determinado número de normas decorrentes da jurisprudência do Tribunal de Justiça que estipulam os princípios em que se deve basear essa compensação equitativa. Por conseguinte, os Estados‑Membros não são obrigados a prever no seu direito nacional as exceções previstas no artigo 5.°, n.° 2, alíneas a) e b), da Diretiva 2001/29. No entanto, se o fizerem, são igualmente obrigados a introduzir a compensação equitativa referida nessas disposições e estão vinculados pelas regras relativas à conceção e financiamento dessa compensação que, segundo o Tribunal de Justiça, decorrem das disposições referidas.

25.      Entre estes princípios figuram as regras de caráter negativo que o Tribunal de Justiça estabeleceu no Acórdão Hewlett‑Packard Belgium no que respeita especificamente ao modo de cobrança da taxa controvertida na Bélgica. Segundo esse acórdão, não é admissível o financiamento da compensação equitativa referida no artigo 5.°, n.° 2, alíneas a) e b), da Diretiva 2001/29 através de uma remuneração cobrada conjuntamente como remuneração fixa e remuneração proporcional, quando o montante da remuneração fixa é calculado apenas em função da velocidade com que o aparelho em causa é suscetível de efetuar as reproduções, o montante da remuneração proporcional varia consoante o devedor tenha cooperado ou não para a cobrança dessa remuneração e o sistema combinado no seu conjunto não inclua mecanismos, nomeadamente de reembolso, que permitam a aplicação complementar dos critérios do prejuízo efetivo e do prejuízo estabelecido de forma fixa relativamente às diferentes categorias de utilizadores (16). As características da taxa acima descrita correspondem às características da taxa controvertida. São estas normas, resultantes da interpretação que o Tribunal de Justiça deu ao artigo 5.°, n.° 2, alíneas a) e b), da Diretiva 2001/29, que a sociedade Copaco invoca e é o efeito direto destas normas que é objeto da quarta questão prejudicial.

26.      O caráter incondicional destas normas para o Estado‑Membro que introduziu as exceções ao direito de reprodução previstas no artigo 5.°, n.° 2, alíneas a) e b), da Diretiva 2001/29 não suscita dúvidas. Resta saber se essas normas são suficientemente precisas para poderem ser consideradas como tendo efeito direto.

27.      Esta análise das normas do direito da União na perspetiva de terem um caráter suficientemente preciso feita pelo Tribunal de Justiça deve abranger a determinação dos beneficiários e devedores e o conteúdo desta proteção, decorrentes dessas normas (17). Começarei por esta última questão.

28.      As normas jurídicas em causa constituem uma proibição de os Estados‑Membros instituírem uma taxa destinada a financiar a compensação equitativa prevista no artigo 5.°, n.° 2, alíneas a) e b), da Diretiva 2001/29 com características como as descritas no n.° 4 do dispositivo do Acórdão Hewlett‑Packard Belgium. O Tribunal de Justiça já apreciou, no Acórdão van Gend & Loos (18), o facto de este tipo de proibição, ou seja, uma obrigação de não agir imposta ao Estado‑Membro, ser suscetível de constituir fonte de direitos positivos para os particulares.

29.      Quanto à taxa destinada a financiar a compensação equitativa, os particulares têm o direito de não suportar o encargo financeiro dessa taxa se esta for cobrada em violação dos princípios que decorrem, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, do artigo 5.°, n.° 2, alíneas a) e b), da Diretiva 2001/29 (19). É verdade que, na sua jurisprudência anterior, o Tribunal de Justiça sublinhou a necessidade de incluir no sistema de compensação equitativa o direito ao reembolso de uma taxa indevidamente cobrada para financiar essa compensação. Contudo, na minha opinião, é evidente que os particulares têm o direito de recusar o pagamento de tal taxa quando o pagamento ainda não tenha sido efetuado e a incompatibilidade com as referidas disposições da Diretiva 2001/29 do sistema nacional que fixa a compensação equitativa resulte claramente de um acórdão do Tribunal de Justiça já proferido e tenha sido confirmada por decisões de órgãos jurisdicionais nacionais. Isto porque impor, nessa situação, ao interessado em causa o pagamento dessa taxa e que aguarde, em seguida, o seu reembolso seria ilógico e tornaria excessivamente difícil o exercício dos direitos que lhe conferem as disposições da União.

30.      Por conseguinte, há que considerar que as disposições do artigo 5.°, n.° 2, alíneas a) e b), da Diretiva 2001/29, tal como interpretadas no Acórdão Hewlett‑Packard Belgium, estabelecem um direito incondicional e suficientemente preciso de os particulares recusarem o pagamento de uma taxa destinada a financiar a compensação equitativa prevista nessas disposições, se essa taxa apresentar características como as enumeradas no n.° 4 do dispositivo do referido acórdão.

31.      No que diz respeito à determinação das entidades habilitadas a tal recusa estas também estão definidas de modo preciso; trata‑se de qualquer entidade devedora da taxa suprarreferida. Também não há dúvidas quanto à determinação da entidade devedora. Com efeito, são os Estados‑Membros que estão habilitados, por força do artigo 5.°, n.° 2, alíneas a) e b), da Diretiva 2001/29, a introduzir, nas respetivas ordens jurídicas, as exceções ao direito de reprodução aí previstas e são também eles que têm a obrigação de estabelecer, a esse título, uma compensação equitativa e um sistema de financiamento dessa compensação. Por conseguinte, os Estados‑Membros estão também necessariamente sujeitos a qualquer obrigação, positiva ou negativa, relacionada com a conceção desse sistema e decorrente da jurisprudência do Tribunal de Justiça, incluindo a proibição de cobrar taxas incompatíveis com as disposições referidas da Diretiva 2001/29.

32.      No processo em apreço, a incompatibilidade com o artigo 5.°, n.° 2, alíneas a) e b), da Diretiva 2001/29 das disposições belgas que instituem a taxa controvertida, na redação aplicável ao processo principal, resultava univocamente do Acórdão Hewlett‑Packard Belgium o que levou à alteração destas disposições. As disposições da diretiva referida, tendo em conta a sua interpretação pelo Tribunal de Justiça, são, por conseguinte, suficientemente precisas e incondicionais para declarar a incompatibilidade das disposições nacionais com as mesmas (20). Assim, como sustenta, e bem, a sociedade Copaco, o órgão jurisdicional de reenvio deve ignorar essas disposições nacionais e declarar que o pedido da sociedade Reprobel baseado nas mesmas não tem fundamento.

 Resposta às questões

33.      Tendo em conta o que precede, proponho que se responda à quarta e quinta questões prejudiciais no sentido de que o artigo 5.°, n.° 2, alíneas a) e b), da Diretiva 2001/29 tem efeito direto, pelo que um particular o pode invocar perante um órgão jurisdicional nacional para se isentar ao pagamento de uma taxa a título da compensação equitativa, quando essa taxa é cobrada com base em disposições nacionais incompatíveis com as disposições da Diretiva 2001/29 referidas, incluindo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à sua interpretação.

34.      No contexto do processo principal, isso implica que se declare, evidentemente, que a sociedade Reprobel pode ser considerada uma emanação do Estado belga, o que nos leva à análise das três primeiras questões prejudiciais.

 Quanto à primeira a terceira questões prejudiciais

35.      Com a primeira a terceira questões prejudiciais, que proponho examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pretende essencialmente saber se as disposições do direito da União podem ser invocadas diretamente por particulares, para afastar a aplicação de disposições nacionais contrárias a esse direito, contra uma entidade encarregada por um Estado‑Membro de cobrar taxas destinadas a financiar a compensação equitativa na aceção do artigo 5.°, n.° 2, alíneas a) e b), da Diretiva 2001/29, bem como do pagamento desta compensação aos titulares dos direitos e que dispõe de poderes especiais para o exercício das suas funções.

36.      No processo principal, é pacífico que a sociedade Reprobel não é um órgão do Estado belga. No entanto, segundo a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, os particulares podem invocar diretamente as disposições do direito da União não só contra os Estados‑Membros e as suas autoridades em sentido estrito mas também, em especial, contra entidades encarregadas de prestar um serviço de interesse público e que disponham de poderes especiais que exorbitem das normas aplicáveis às relações entre particulares (21). Por conseguinte, não é necessário que essas entidades estejam sujeitas à autoridade ou ao controlo do Estado (22).

37.      Os Advogados‑Gerais E. Sharpston (23) e N. Emiliou (24) fizeram recentemente uma análise pormenorizada destes critérios. Não vou aqui repetir as suas interessantíssimas considerações teóricas sobre este assunto — remeto, a este respeito, para a leitura das referidas conclusões. Contudo, cingir‑me‑ei às questões relacionadas com as circunstâncias específicas do processo em apreço.

 Quanto às missões de interesse público

38.      A sociedade Reprobel não é um órgão de direito público e também não é controlado pelo Estado belga de uma forma que permita considerar que faz estruturalmente parte deste. Por conseguinte, há que ponderar se cumpre uma missão de interesse público e se dispõe, para o efeito, de poderes especiais que exorbitem das normas aplicáveis às relações entre particulares.

39.      Como já referi, são os Estados‑Membros que estão habilitados, por força do artigo 5.°, n.° 2, alíneas a) e b), da Diretiva 2001/29, a introduzir, nas respetivas ordens jurídicas, as exceções ao direito de reprodução aí previstas e são também eles que têm a obrigação de estabelecer, a esse título, uma compensação equitativa e um sistema de financiamento dessa compensação (25). O Tribunal de Justiça declarou que, em princípio, o custo desse financiamento deve ser repercutido sobre os utilizadores finais habilitados a título dessas exceções. No entanto, tendo em conta as dificuldades práticas para identificar os utilizadores privados, é permitido aos Estados‑Membros estabelecer uma taxa a cargo de fabricantes e distribuidores de aparelhos e suportes que permitem a reprodução de obras e outro material protegido por direitos de reprodução, ou de prestadores de serviços de reprodução, que repercutem o encargo financeiro nos utilizadores finais, tal como se depreende, no preço destes dispositivos, aparelhos ou serviços (26).

40.      Neste contexto, importa ainda salientar que o prejuízo sofrido pelos titulares do direito de reprodução é, em grande medida, hipotético, nomeadamente no que respeita à exceção prevista no artigo 5.°, n.° 2, alínea b), da Diretiva 2001/29. Isto porque seria muito difícil para o titular fazer valer esse direito em relação a atos que os utilizadores praticam no domínio privado e que consideram uma forma natural de utilizar uma cópia legalmente adquirida de uma obra. A introdução das referidas exceções a este direito é, por conseguinte, um elemento que se inscreve no domínio das políticas públicas. No âmbito desta política, o Estado, por um lado, legaliza os atos que os utilizadores teriam praticado de qualquer das maneiras, independentemente da questão da sua liciture, tendo em conta a baixa probabilidade de esses atos serem detetados e de lhes ser imputada responsabilidade. Por outro lado, assegura aos titulares de direitos rendimentos que, na maior parte dos casos, seriam altamente difíceis de obter diretamente dos utilizadores.

41.      Uma taxa cobrada deste modo reveste caráter de taxa de direito público sobre aparelhos de cópia e suportes, que é suportada por todos os adquirentes desses aparelhos, suportes ou serviços habilitados a beneficiar das exceções previstas no artigo 5.°, n.° 2, alíneas a) e b), da Diretiva 2001/29 (27). Por conseguinte, não depende da utilização efetiva das exceções referidas pelos utilizadores. Com efeito, como o Tribunal de Justiça declarou há que presumir que beneficiam totalmente dos poderes de que dispõem na matéria (28). Em contrapartida, os Estados‑Membros que fixam o montante da taxa sobre os aparelhos e suportes estão incumbidos de a fixar a um nível tal que as receitas daí resultantes compensem o prejuízo efetivo que os titulares de direitos de autor e de direitos conexos sofrem devido à aplicação dessas exceções (29).

42.      Não se trata, portanto, de uma troca de prestações recíprocas entre os utilizadores finais e os titulares de direitos, mas de uma regulamentação em vigor erga omnes segundo a qual qualquer pessoa abrangida pelas exceções em causa tem o direito de praticar os atos abrangidos pelas exceções previstas no artigo 5.°, n.° 2, alíneas a) e b), da Diretiva 2001/29, enquanto os titulares de direitos recebem uma compensação pelo prejuízo sofrido, cujo montante é calculado como um montante fixo, financiada pelas taxas pagas por todos os adquirentes de aparelhos e suportes de cópia ou destinatários de serviços de reprodução que podem beneficiar das referidas exceções. A cobrança dessa taxa e o pagamento de uma compensação equitativa aos beneficiários constituem, por conseguinte, missões de interesse público.

43.      Por conseguinte, o argumento da sociedade Reprobel de que atua como organização de gestão coletiva de direitos de autor e direitos conexos é descabido. Esta sociedade até pode atuar também como organização de gestão coletiva. No entanto tal não altera o facto de que ao cobrar a taxa controvertida e ao pagar uma compensação equitativa, esta sociedade prossegue uma missão de interesse público e não faz a gestão de direitos exclusivos. Isto porque os titulares dos direitos de autor e direitos conexos não lhe confiam voluntariamente (30) a gestão do direito de reprodução, uma vez que este direito simplesmente não existe no âmbito abrangido pelas exceções em questão. Em contrapartida, os utilizadores não pagam aos titulares de direitos uma remuneração pela utilização efetiva de obras ou outro material protegido, dado que esta é gratuita, mas financiam, sob a forma de um imposto indireto, uma compensação pela perda de direitos exclusivos por parte dos titulares (31).

44.      É também por esta razão que o ponto de vista do Governo Francês de que a sociedade Reprobel não presta um serviço de interesse público, mas de interesse privado dos titulares de direitos de autor e direitos conexos, não é pertinente. Com efeito, as exceções ao direito de reprodução previstas nas referidas disposições da Diretiva 2001/29 são aplicadas no interesse público e visam estabelecer o direito universal das pessoas singulares de copiar obras e outro material protegido para seu uso pessoal, sem que seja necessário obter o consentimento dos titulares. Em contrapartida, a compensação equitativa desses titulares é o corolário deste direito e serve para preservar um justo equilíbrio entre os interesses em jogo, o que é inteiramente do interesse público.

 Quanto aos direitos especiais

45.      No que diz respeito aos direitos específicos de uma entidade como a sociedade Reprobel, que exorbitem das normas aplicáveis às relações entre particulares, um direito fundamental deste tipo é o próprio direito de exigir aos fabricantes e distribuidores de aparelhos e suportes de cópia o pagamento da taxa controvertida. Nas relações entre particulares baseadas no princípio da igualdade das partes, um pedido de pagamento está sempre associado a um facto jurídico determinado, como um contrato, um ato ilícito ou qualquer outro facto que dê origem a uma relação jurídica entre duas ou mais pessoas nominalmente determinadas. Em contrapartida, a entidade que tem o direito de cobrar a taxa controvertida tem, por força da lei, o direito de exigir o seu pagamento a qualquer pessoa que faça parte de um conjunto de devedores abstratamente determinado. Trata‑se, por conseguinte, do imperium do Estado.

46.      Para tal, há que distinguir a situação de tal entidade da dos fabricantes e distribuidores que apenas têm a possibilidade de facto de repercutir o encargo financeiro da taxa em questão, por via contratual, nos seus clientes, no preço dos aparelhos e suportes vendidos. Do mesmo modo, qualquer vendedor de um produto tem, evidentemente, sob reserva das condições do mercado, a possibilidade de ser compensado, no preço desse bem, pelas despesas da sua produção ou aquisição, bem como por tributos públicos, especialmente os impostos indiretos. Assim, na medida em que estes fabricantes e distribuidores participam na missão de interesse público aqui em causa, do ponto de vista jurídico apenas estão obrigados a determinadas prestações e não dispõem de poderes especiais que exorbitem das normas aplicáveis às relações entre particulares.

47.      A este respeito, é irrelevante a circunstância, alegada pela sociedade Reprobel e pelo Governo Belga, de não ser esta sociedade, mas as autoridades públicas, que determinam o montante da taxa controvertida. A realização de uma missão de interesse público não implica que a entidade que executa essa missão determine ela própria «de A a Z» todos os aspetos da missão ou que os seus poderes específicos devam ser discricionários. Pelo contrário, a execução da missão confiada pressupõe, por definição, que o mandante estipule os limites da ação do mandatário. A liberdade de agir, limitada por uma autoridade pública, de uma entidade encarregada de uma missão de interesse público confirma tanto mais que essa entidade atua em nome do Estado e constitui uma emanação deste na aceção da jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao efeito direto do direito da União.

48.      Este argumento é, aliás, de dois gumes, uma vez que se se considerar que a sociedade Reprobel se limita a executar as disposições estabelecidas pelo Estado belga e não dispõe de quaisquer poderes próprios na matéria, o litígio no processo principal ainda mais deve ser considerado um litígio vertical — entre a sociedade Copaco e esse Estado. Isto porque, como a referida sociedade acertadamente sustenta, seria completamente ilógico que o Rei (leia‑se: o Estado belga) não pudesse cobrar a taxa controvertida e a sociedade Reprobel, que executa involuntariamente as suas instruções, o pudesse fazer.

49.      O poder de exigir, de forma juridicamente efetiva, o pagamento da taxa controvertida constitui um poder especial da sociedade Reprobel que exorbita das normas aplicáveis às relações entre particulares, poder esse que, na minha opinião, por si só bastaria para considerar esta sociedade uma emanação do Estado belga. O ponto essencial é que este poder decorre diretamente das disposições da lei e não das relações jurídicas individuais desta sociedade com as entidades devedoras.

50.      Para cumprir a missão de interesse público que lhe foi confiada, a sociedade Reprobel dispõe, além disso, de uma série de poderes específicos de caráter informativo. Em primeiro lugar, tem o direito de solicitar tanto às entidades devedoras da taxa controvertida como aos outros operadores ativos no mercado dos aparelhos de cópia (como as sociedades encarregadas da manutenção desses aparelhos) que forneçam todas as informações necessárias para determinar as entidades devedoras e os montantes devidos por estas. Por sua vez, essas entidades são obrigadas a fornecer essas informações sob pena de aplicação de sanções penais.

51.      Este poder exorbita das normas aplicáveis às relações entre particulares. Com efeito, ninguém, numa situação normal, é obrigado a fornecer, sob pena de aplicação de uma sanção, informações a terceiros sobre a sua atividade económica e muito menos sobre a de outrem. Pelo contrário, essas informações estão muitas vezes protegidas como segredos comerciais e a obrigação de as divulgar só existe em situações específicas e por força de disposições específicas, como em processos fiscais ou auditorias contabilísticas, ou no contexto de uma relação jurídica que vincula um particular a outra entidade especificamente identificada.

52.      Por conseguinte, o argumento do Governo Belga segundo o qual a situação da sociedade Reprobel deve ser comparada à de um banco, que também pode exigir informações aprofundadas sobre a situação financeira dos seus clientes, é inoperante. A diferença está justamente no facto de um banco só poder solicitar essas informações a clientes seus que tenham voluntariamente celebrado ou pretendam celebrar um contrato com o banco e de a única sanção em caso de não prestação dessas informações poder ser a não celebração ou a rescisão do contrato (32). No entanto, nenhum banco tem o poder de exigir quaisquer informações a pessoas com as quais não tenha nenhuma relação jurídica. Em contrapartida, os fabricantes e distribuidores de aparelhos e suportes de cópia são obrigados por lei a fornecer informações à sociedade Reprobel, sem para isso deverem estabelecer um vínculo jurídico com a mesma.

53.      Também não é pertinente a questão suscitada pela sociedade Reprobel e pelo Governo Belga de a sociedade Reprobel não ter poderes para impor sanções a entidades que não cumpram a obrigação de lhe transmitir informação. Os critérios do Acórdão Foster não exigem que a entidade encarregada de uma missão de interesse público disponha de todos os poderes de que normalmente dispõem as autoridades do Estado, incluindo o direito de impor sanções. O incumprimento das obrigações de informação para com a sociedade Reprobel é, segundo as informações constantes do pedido de decisão prejudicial, passível de sanção penal que, pela sua própria natureza, só órgãos jurisdicionais são competentes para aplicar. Por outro lado, a própria existência dessas sanções demonstra a especificidade dos poderes da sociedade em causa.

54.      Em segundo lugar, a sociedade Reprobel tem o direito de obter as informações necessárias para o desempenho das suas funções junto das autoridades aduaneiras, fiscais e da segurança social. Também este poder exorbita das normas aplicáveis às relações entre particulares. Isto porque nem a mais ampla transparência da vida social prevê que os particulares se possam informar junto dessas autoridades sobre outros particulares, com exceção das informações em princípio públicas, como o registo para efeitos do imposto sobre o valor acrescentado. Tais informações não são, porém, suficientes para cumprir a missão confiada à sociedade Reprobel pelo que deve tratar‑se de informações mais amplas, como o volume de importações de aparelhos ou suportes de cópia ou o volume de negócios dos produtores ou distribuidores de tais aparelhos e suportes. Ora, estas informações não são fornecidas pelas autoridades públicas a entidades que não disponham de poderes especiais.

55.      Por conseguinte, são mais uma vez infundados os argumentos do Governo Francês segundo os quais o poder da sociedade Reprobel de solicitar informações às autoridades públicas não se aplica às suas relações com os devedores da taxa controvertida, como exigido pelo Acórdão Foster. Em primeiro lugar, nem nesse acórdão nem na jurisprudência posterior o Tribunal de Justiça exige que os poderes especiais de uma entidade que presta um serviço de interesse público incidam, de maneira estrita e exclusiva, sobre as relações diretas dessa entidade com um particular. Estes poderes devem ser‑lhe conferidos «para esse efeito» de execução da missão de interesse público que lhe foi confiada (33). Em segundo lugar, não se pode sustentar com seriedade, como faz o Governo Francês, que o direito da sociedade Reprobel de pedir informações junto das autoridades aduaneiras e tributárias diz respeito às relações dessa sociedade com essas autoridades e não com os devedores da taxa controvertida. A sociedade Reprobel tem o direito de obter informações, não sobre a sua situação fiscal ou aduaneira, mas sobre a atividade dos devedores, a fim de determinar o montante correspondente à taxa controvertida que lhes é devido. Por conseguinte, isso diz respeito, de um modo evidente, às suas relações com essas entidades.

 Síntese

56.      As considerações precedentes levam‑me a concluir que a sociedade Reprobel preenche os chamados critérios do Acórdão Foster, uma vez que presta um serviço de interesse público e dispõe, para esse efeito, de poderes que exorbitam das normas aplicáveis às relações entre particulares.

57.      Esta conclusão é passível de generalização. A introdução no direito nacional de exceções ao direito de reprodução previstas no artigo 5.°, n.° 2, alíneas a) e b), da Diretiva 2001/29 constitui uma ação do Estado no interesse público, nomeadamente, no interesse de todos os utilizadores de obras e outro material protegidos por este direito que sejam pessoas singulares. Do mesmo modo, constitui um ato de interesse público pagar aos titulares do direito a compensação equitativa prevista nessas mesmas disposições e organizar um sistema de financiamento dessa compensação, especialmente através de uma taxa ou de outro encargo cobrado aos fabricantes ou distribuidores de aparelhos e suportes que permitem beneficiar das referidas exceções ao direito de reprodução. Por conseguinte, a entidade encarregada da cobrança dessa taxa e do pagamento de uma compensação equitativa aos titulares do direito está a prestar um serviço de interesse público. Para esse efeito, a entidade dispõe necessariamente de poderes que exorbitam das normas aplicáveis às relações entre particulares, a começar pelo direito de exigir o pagamento de tal taxa (34). Os particulares podem, por conseguinte, invocar diretamente o direito da União num litígio com essa entidade, pedindo a não aplicação das disposições nacionais contrárias a esse direito.

58.      Assim, proponho que se responda à primeira a terceira questões prejudiciais no sentido de que os particulares podem invocar o efeito direto das disposições do direito da União para evitar que lhes sejam aplicadas disposições nacionais contrárias a esse direito em relação a uma entidade encarregada por um Estado‑Membro de cobrar taxas destinadas a financiar uma compensação equitativa, na aceção do artigo 5.°, n.° 2, alíneas a) e b), da Diretiva 2001/29, e do pagamento dessa compensação aos titulares dos direitos, e que dispõe de poderes especiais para o exercício das suas funções.

 Conclusão

59.      Tendo em conta todas as considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões prejudiciais submetidas pelo Ondernemingsrechtbank Gent Afdeling Gent (Tribunal das Empresas de Gent, Secção de Gent, Bélgica) do seguinte modo:

1)      O artigo 5.°, n.° 2, alíneas a) e b), da Diretiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação tem efeito direto, pelo que um particular o pode invocar perante um órgão jurisdicional nacional para se isentar ao pagamento de uma taxa a título da compensação equitativa, quando essa taxa é cobrada com base em disposições nacionais incompatíveis com as disposições da Diretiva 2001/29 referidas, incluindo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à sua interpretação.

2)      Os particulares podem invocar o efeito direto das disposições do direito da União para evitar que lhes sejam aplicadas disposições nacionais contrárias a esse direito em relação a uma entidade encarregada por um Estado‑Membro de cobrar taxas destinadas a financiar uma compensação equitativa, na aceção do artigo 5.°, n.° 2, alíneas a) e b), da Diretiva 2001/29, e do pagamento dessa compensação aos titulares dos direitos, e que dispõe de poderes especiais para o exercício das suas funções.


1      Língua original: polaco.


2      V. o recente Acórdão de 11 de abril de 2024, Gabel Industria Tessile e Canavesi (C‑316/22, EU:C:2024:301) e as Conclusões do Advogado‑Geral N. Emiliou no processo Gabel Industria Tessile e Canavesi (C‑316/22, EU:C:2023:885).


3      JO 2001, L 167, p. 10.


4      Belgisch Staatsblad de 27 de julho de 1994, p. 19297.


5      Belgisch Staatsblad de 7 de novembro de 1997, p. 29874.


6      Belgisch Staatsblad de 7 de novembro de 1997, p. 29873.


7      Acórdão de 12 de novembro de 2015 (C‑572/13, a seguir «Acórdão Hewlett‑Packard Belgium», EU:C:2015:750).


8      Acórdão Hewlett‑Packard Belgium, n.° 4 do dispositivo.


9      Acórdão de 5 de fevereiro de 1963 (26/62, EU:C:1963:1).


10      Acórdão de 4 de dezembro de 1974 (41/74, EU:C:1974:133).


11      Acórdão de 8 de março de 2022, Bezirkshauptmannschaft Hartberg‑Fürstenfeld (Efeito direto) (C‑205/20, EU:C:2022:168, n.os 17 a 19).


12      Acórdão de 9 de fevereiro de 2012, Luksan (C‑277/10, EU:C:2012:65, n.° 106).


13      Acórdão de 21 de outubro de 2010, Padawan (C‑467/08, EU:C:2010:620, n.° 42).


14      Acórdão de 16 de junho de 2011, Stichting de Thuiskopie (C‑462/09, EU:C:2011:397, n.° 29).


15      V., neste sentido, Acórdãos de 22 de setembro de 2016, Microsoft Mobile Sales International e o. (C‑110/15, EU:C:2016:717, n.° 59) e 6 de setembro de 2018, Hampshire (C‑17/17, EU:C:2018:674, n.os 58 a 60).


16      Acórdão Hewlett‑Packard Belgium, n.° 4 do dispositivo.


17      V., neste sentido, Acórdão de 6 de setembro de 2018, Hampshire (C‑17/17, EU:C:2018:674, n.° 56).


18      Acórdão de 5 de fevereiro de1963 (26/62, EU:C:1963:1).


19      V., em especial, o Acórdão Hewlett‑Packard Belgium, n.°s 85 a 87, e também Acórdão de 22 de setembro de 2016, Microsoft Mobile Sales International e o. (C‑110/15, EU:C:2016:717, n.os 37, 54 e 55).


20      Mais precisamente, a condição de aplicação destas disposições está preenchida uma vez que o Reino da Bélgica introduziu no seu direito nacional exceções ao direito de reprodução aí previstas.


21      V. Acórdãos de 12 de julho de 1990, Foster e o. (C‑188/89, a seguir «Acórdão Foster», EU:C:1990:313, n.° 20) e 10 de outubro de 2017, Farrell (C‑413/15, EU:C:2017:745, n.°s 33 e 34). São os chamados «critérios do Acórdão Foster».


22      V. Acórdão de 10 de outubro de 2017, Farrell (C‑413/15, EU:C:2017:745, n.os 27 a 29).


23      Conclusões da Advogada‑Geral E. Sharpston, no processo Farrell (C‑413/15, EU:C:2017:492, n.os 35 a 54 e 130 a 147).


24      Conclusões do Advogado‑Geral N. Emiliou, no processo Gabel Industria Tessile e Canavesi (C‑316/22, EU:C:2023:885, n.°s 33 a 47).


25      N.° 31 das presentes conclusões.


26      Acórdão Hewlett‑Packard Belgium, n.°s 69 e 70 e jurisprudência aí referida.


27      A este respeito, o âmbito de aplicação das disposições do artigo 5.°, n.° 2, alíneas a) e b) é diferente. A exceção prevista na alínea b) aplica‑se apenas às pessoas singulares que fazem reproduções para uso privado, ao passo que a exceção prevista na alínea a) abrange todas as categorias de utilizadores e de reproduções, para qualquer fim (v. Acórdão Hewlett‑Packard Belgium, n.°s 30 a 34).


28      V., neste sentido, Acórdão Hewlett‑Packard Belgium, n.°s 36 e 85 e jurisprudência referida.


29      Acórdão Hewlett‑Packard Belgium, n.° 72 e jurisprudência referida.


30      Nem mesmo obrigatoriamente, como é o caso quando a lei prevê uma gestão coletiva obrigatória.


31      Que sofram um prejuízo devido às referidas exceções ao direito exclusivo, o que não sucede numa situação de exploração desse direito a título oneroso (v., por último, Acórdão de 8 de setembro de 2022, Ametic, C‑263/21, EU:C:2022:644, n.° 68).


32      A prestação de informações falsas pode ser considerada uma fraude e dar origem a responsabilidade civil ou penal. No entanto, a obrigação de prestar informações decorre da relação jurídica que une o cliente ao banco.


33      Acórdão Foster, n.° 20.


34      V., neste sentido, Acórdão de 8 de setembro de 2022, Ametic (C‑263/21, EU:C:2022:644, n.°s 68 a 72).