Language of document : ECLI:EU:C:2019:53

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

23 de janeiro de 2019 (*)

[Texto retificado por Despacho de 14 de março de 2019]

«Reenvio prejudicial — Política de asilo — Critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional — Regulamento (UE) n.o 604/2013 — Cláusulas discricionárias — Critérios de apreciação»

No processo C‑661/17,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pela High Court (Tribunal Superior, Irlanda), por Decisão de 21 de novembro de 2017, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 27 de novembro de 2017, no processo

M.A.,

S.A.,

A.Z.

contra

International Protection Appeals Tribunal,

Minister for Justice and Equality,

Attorney General,

Ireland,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: R. Silva de Lapuerta, vice‑presidente do Tribunal de Justiça, exercendo funções de presidente da Primeira Secção, J.‑C. Bonichot, A. Arabadjiev, E. Regan e C. G. Fernlund (relator), juízes,

advogado‑geral: E. Tanchev,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

considerando as observações apresentadas:

–        em representação de M.A., S.A. e A.Z., por M. de Blacam, SC, e G. O’Halloran, BL,

–        [Conforme retificado por Despacho de 14 de março de 2019] em representação da Irlanda, por M. Browne, G. Hodge e A. Joyce, na qualidade de agentes, assistidos por S.‑J. Hillery, BL, e M. D. Conlan Smyth, SC,

–        em representação do Governo alemão, por T. Henze e R. Kanitz, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo neerlandês, por J. Hoogveld e M. K. Bulterman, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo do Reino Unido, por C. Brodie, S. Brandon e D. Blundell, na qualidade de agentes, assistidos por J. Holmes, QC,

–        em representação da Comissão Europeia, por M. Wilderspin e M. Condou‑Durande, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 6.o e 17.o, do artigo 20.o, n.o 3, e do artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento (UE) n.o 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida (JO 2013, L 180, p. 31, a seguir «Regulamento Dublim III»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe M.A., S.A e A.Z. ao International Protection Appeals Tribunal (Tribunal de Recurso para a Proteção Internacional, Irlanda), ao Minister for Justice and Equality (Ministro da Justiça e da Igualdade, Irlanda), ao Attorney General (Irlanda), e à Ireland (Irlanda), a propósito da decisão de transferência tomada a seu respeito no âmbito do Regulamento Dublim III.

 Quadro jurídico

 Direito internacional

 Convenção de Genebra

3        A Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, assinada em Genebra, em 28 de julho de 1951 [Recueil des traités des Nations unies, vol. 189, p. 150, n.o 2545 (1954), a seguir «Convenção de Genebra»], entrou em vigor em 22 de abril de 1954. Foi completada pelo Protocolo relativo ao Estatuto dos Refugiados, celebrado em Nova Iorque em 31 de janeiro de 1967 (a seguir «Protocolo de 1967»), que entrou em vigor em 4 de outubro de 1967.

4        Todos os Estados‑Membros são partes contratantes na Convenção de Genebra e no Protocolo de 1967, tal como a República da Islândia, o Principado do Listenstaine, o Reino da Noruega e a Confederação Suíça. A União Europeia não é parte contratante na Convenção de Genebra nem no Protocolo de 1967, mas os artigos 78.o TFUE e 18.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») preveem que o direito de asilo é garantido, nomeadamente, no quadro dessa convenção e desse protocolo.

 CEDH

5        A Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»), é um acordo internacional multilateral celebrado no âmbito do Conselho da Europa, que entrou em vigor em 3 de setembro de 1953. Todos os membros do Conselho da Europa, do qual todos os Estados‑Membros da União fazem parte, são membros das Altas Partes Contratantes desta convenção.

6        O artigo 3.o da CEDH enuncia que «[n]inguém pode ser submetido a torturas nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes.»

 Direito da União

 Carta

7        O artigo 4.o da Carta dispõe:

«Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas desumanos ou degradantes.»

8        O artigo 47.o, primeiro parágrafo, da Carta enuncia:

«Toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem direito a uma ação perante um tribunal nos termos previstos no presente artigo.»

9        O artigo 52.o, n.o 3, da Carta prevê:

«Na medida em que a presente Carta contenha direitos correspondentes aos direitos garantidos pela [CEDH], o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos conferidos por essa convenção. Esta disposição não obsta a que o direito da União confira uma proteção mais ampla.»

 Regulamento Dublim III

10      A título preliminar, há que recordar que o Tratado de Amesterdão, de 2 de outubro de 1997, introduziu o artigo 63.o no Tratado CE, que atribuía competência à Comunidade Europeia para adotar as medidas recomendadas pelo Conselho Europeu, na sua reunião extraordinária realizada em Tampere (Finlândia), de 15 e 16 de outubro de 1999, relativas à criação de um regime de asilo europeu comum. A adoção dessa disposição permitiu substituir, entre os Estados‑Membros com exceção do Reino da Dinamarca, a Convenção sobre a Determinação do Estado Responsável pela Análise de um Pedido de Asilo Apresentado num Estado‑Membro das Comunidades Europeias, assinada em Dublim em 15 de junho de 1990 (JO 1997, C 254, p. 1), pelo Regulamento (CE) n.o 343/2003 do Conselho, de 18 de fevereiro de 2003, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise e um pedido de asilo apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro (JO 2003, L 50, p. 1), que entrou em vigor em 17 de março de 2003. O Regulamento Dublim III, que entrou em vigor em 19 de julho de 2013, adotado com base no artigo 78.o, n.o 2, alínea e), TFUE, veio substituir o Regulamento n.o 343/2003.

11      Os considerandos 1 a 5 do Regulamento Dublim III têm a seguinte redação:

«(1)      Deverão ser introduzidas alterações substanciais ao Regulamento [n.o 343/2003]. Por uma questão de clareza, é conveniente proceder à reformulação do referido regulamento.

(2)      Uma política comum no domínio do asilo, que inclua um sistema europeu comum de asilo (SECA), faz parte integrante do objetivo da União Europeia que consiste em estabelecer progressivamente um espaço de liberdade, de segurança e de justiça aberto às pessoas que, forçadas pelas circunstâncias, procuram legitimamente proteção na União.

(3)      Na sua reunião especial de Tampere de 15 e 16 de outubro de 1999, o Conselho Europeu acordou em envidar esforços para criar um SECA, baseado na aplicação integral e global da [Convenção de Genebra] completada pelo [Protocolo de 1967], assegurando assim que ninguém será enviado para onde possa ser novamente perseguido, ou seja, mantendo o princípio da não repulsão. Neste contexto, e sem que os critérios de responsabilidade constantes do presente regulamento sejam afetados, todos os Estados‑Membros respeitam o princípio da não repulsão, sendo considerados países seguros para os nacionais de países terceiros.

(4)      As conclusões do Conselho de Tampere precisaram igualmente que o SECA deverá incluir, a curto prazo, um método claro e operacional para determinar o Estado‑Membro responsável pela análise dos pedidos de asilo.

(5)      Este método deverá basear‑se em critérios objetivos e equitativos, tanto para os Estados‑Membros como para as pessoas em causa. Deverá, permitir, nomeadamente, uma determinação rápida do Estado‑Membro responsável, por forma a garantir um acesso efetivo aos procedimentos de concessão de proteção internacional e a não comprometer o objetivo de celeridade no tratamento dos pedidos de proteção internacional.»

12      Os considerandos 13 a 17 desse regulamento preveem:

«(13)      De acordo com a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança de 1989, reconhecida pela [Carta], o interesse superior do menor deve constituir uma preocupação fundamental dos Estados‑Membros ao aplicarem o presente regulamento. […]

(14)      De acordo com a [CEDH], reconhecida pela [Carta], o respeito pela vida familiar deve constituir uma preocupação fundamental dos Estados‑Membros ao aplicarem o presente regulamento.

(15)      O tratamento conjunto dos pedidos de proteção internacional dos membros de uma família pelo mesmo Estado‑Membro constitui uma medida que permite assegurar uma análise aprofundada dos pedidos, a coerência das decisões tomadas sobre estes e a não separação dos membros de uma família.

(16)      A fim de garantir o pleno respeito pelo princípio da unidade da família e o interesse superior da criança, a existência de uma relação de dependência entre o requerente e o seu filho, irmão, o pai ou a mãe devido a gravidez ou maternidade, estado de saúde ou idade avançada do requerente deverão constituir critérios de responsabilidade vinculativos. Se o requerente for um menor não acompanhado, a presença de um membro da família ou familiar no território de outro Estado‑Membro que dele possa cuidar deverá igualmente constituir um critério de responsabilidade vinculativo.

(17)      Os Estados‑Membros deverão ter a possibilidade de afastar a aplicação dos critérios de responsabilidade, em especial por razões humanitárias e compassivas, a fim de permitir reunir membros da família, familiares ou outros parentes, e de analisar um pedido de proteção internacional que lhes tenha sido apresentado, ou a outro Estado‑Membro, mesmo que tal análise não seja da sua responsabilidade nos termos dos critérios vinculativos previstos no presente regulamento.»

13      Os considerandos 19, 32, 39 e 41 do referido regulamento dispõem:

«(19)       A fim de garantir a proteção efetiva dos direitos das pessoas em causa, deverão ser previstas garantias legais e o direito efetivo de recurso contra as decisões de transferência para o Estado‑Membro responsável, nos termos, nomeadamente, do artigo 47.o da [Carta]. A fim de garantir o respeito do direito internacional, o direito efetivo de recurso contra essas decisões deverá abranger a análise da aplicação do presente regulamento e da situação jurídica e factual no Estado‑Membro para o qual o requerente é transferido.

[…]

(32)      No que se refere ao tratamento das pessoas abrangidas pelo âmbito de aplicação do presente regulamento, os Estados‑Membros encontram‑se vinculados pelas obrigações que lhes incumbem por força de instrumentos de direito internacional, nomeadamente pela jurisprudência pertinente do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

[…]

(39)      O presente regulamento respeita os direitos fundamentais e observa os princípios reconhecidos, nomeadamente, pela [Carta]. Em particular, o presente regulamento visa assegurar o pleno respeito do direito de asilo garantido pelo artigo 18.o da [Carta], bem como dos direitos nela reconhecidos nos artigos 1.o, 4.o, 7.o, 24.o e 47.o Por conseguinte, o presente regulamento deverá ser aplicado em conformidade.

[…]

(41)      Nos termos do artigo 3.o e do artigo 4.o‑A, n.o 1, do Protocolo n.o 21 relativo à posição do Reino Unido e da Irlanda em relação ao Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça, anexo ao TUE e ao TFUE, aqueles Estados‑Membros notificaram que desejam participar na adoção e na aplicação do presente regulamento.»

14      O artigo 1.o do mesmo regulamento enuncia:

«O presente regulamento estabelece os critérios e mecanismos para a determinação do Estado‑Membro responsável pela análise dos pedidos de proteção internacional apresentados num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro […]»

15      O artigo 3.o do Regulamento Dublim III dispõe:

«1.      Os Estados‑Membros analisam todos os pedidos de proteção internacional apresentados por nacionais de países terceiros ou por apátridas no território de qualquer Estado‑Membro, inclusive na fronteira ou nas zonas de trânsito. Os pedidos são analisados por um único Estado‑Membro, que será aquele que os critérios enunciados no capítulo III designarem como responsável.

2.      Caso o Estado‑Membro responsável não possa ser designado com base nos critérios enunciados no presente regulamento, é responsável pela análise do pedido de proteção internacional o primeiro Estado‑Membro em que o pedido tenha sido apresentado.

Caso seja impossível transferir um requerente para o Estado‑Membro inicialmente designado responsável por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado‑Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.o da [Carta], o Estado‑Membro que procede à determinação do Estado‑Membro responsável prossegue a análise dos critérios estabelecidos no capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado‑Membro seja designado responsável.

Caso não possa efetuar‑se uma transferência ao abrigo do presente número para um Estado‑Membro designado com base nos critérios estabelecidos no capítulo III ou para o primeiro Estado‑Membro onde foi apresentado o pedido, o Estado‑Membro que procede à determinação do Estado‑Membro responsável passa a ser o Estado‑Membro responsável.

3.      Os Estados‑Membros mantêm a faculdade de enviar um requerente para um país terceiro seguro, sem prejuízo das regras e garantias previstas na Diretiva 2013/32/UE.»

16      O artigo 6.o deste regulamento, sob a epígrafe «Garantias dos menores», prevê:

«1.      O interesse superior da criança deve constituir um aspeto fundamental a ter em conta pelos Estados‑Membros relativamente a todos os procedimentos previstos no presente regulamento.

[…]

3.      Os Estados‑Membros cooperam estreitamente a fim de determinar o interesse superior da criança, e, em especial, tomam em consideração os seguintes fatores:

a) As possibilidades de reagrupamento familiar;

[…]

4.      Para efeitos da aplicação do artigo 8.o, o Estado‑Membro onde foi apresentado o pedido de proteção internacional pelo menor não acompanhado deve tomar assim que possível as medidas adequadas para identificar os membros da família, irmãos ou os familiares do menor não acompanhado presentes no território dos Estados‑Membros, salvaguardando simultaneamente o interesse superior da criança.

[…]»

17      O artigo 7.o, n.os 1 e 2, do referido regulamento, que figura no capítulo III deste, enuncia:

«1.      Os critérios de determinação do Estado‑Membro responsável aplicam‑se pela ordem em que são enunciados no presente capítulo.

2.      A determinação do Estado‑Membro responsável em aplicação dos critérios enunciados no presente capítulo é efetuada com base na situação existente no momento em que o requerente tiver apresentado pela primeira vez o seu pedido de proteção internacional junto de um Estado‑Membro.»

18      O artigo 8.o, n.o 1, do mesmo regulamento dispõe:

«Se o requerente for um menor não acompanhado, o Estado‑Membro responsável será o Estado em que se encontrar legalmente um membro da família ou um irmão do menor não acompanhado, desde que seja no interesse superior do menor. Se o requerente for um menor casado, cujo cônjuge não se encontre legalmente no território dos Estados‑Membros, o Estado‑Membro responsável será aquele em que o pai, a mãe ou outro adulto responsável pelo menor, por força da lei ou da prática desse Estado‑Membro, ou um irmão, se encontrarem legalmente.»

19      O artigo 11.o do Regulamento Dublim III, sob a epígrafe «Procedimento relativo à família», prevê:

«Se vários membros de uma família e/ou irmãos menores solteiros apresentarem pedidos de proteção internacional no mesmo Estado‑Membro em simultâneo, ou em datas suficientemente próximas para que os procedimentos de determinação do Estado‑Membro responsável sejam conduzidos em conjunto, e se a aplicação dos critérios enunciados no presente regulamento conduzir à sua separação, a determinação do Estado‑Membro responsável baseia‑se nas seguintes disposições:

a)      É responsável pela análise dos pedidos de proteção internacional de todos os membros da família e/ou dos irmãos menores solteiros o Estado‑Membro que os critérios designarem como responsável pela tomada a cargo do maior número de membros da família e/ou dos irmãos;

b)      Caso contrário, é responsável o Estado‑Membro que os critérios designarem como responsável pela análise do pedido do membro mais idoso da família».

20      O artigo 17.o deste regulamento, sob a epígrafe «Cláusulas discricionárias», tem a seguinte redação:

«1.      Em derrogação do artigo 3.o, n.o 1, cada Estado‑Membro pode decidir analisar um pedido de proteção internacional que lhe seja apresentado por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, mesmo que essa análise não seja da sua competência por força dos critérios definidos no presente regulamento.

O Estado‑Membro que tenha decidido analisar um pedido de proteção internacional nos termos do presente número torna‑se o Estado‑Membro responsável e assume as obrigações inerentes a essa responsabilidade. […]»

21      O artigo 20.o, n.o 3, do referido regulamento dispõe:

«Para efeitos da aplicação do presente regulamento, a situação do menor que acompanhe o requerente e corresponda à definição de membro da família é indissociável da situação de seu membro da família e é da competência do Estado‑Membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional desse membro da família, mesmo que o menor não seja requerente, desde que seja no interesse superior do menor. O mesmo se aplica aos filhos nascidos após a chegada dos requerentes ao território dos Estados‑Membros, não havendo necessidade de iniciar para estes um novo procedimento de tomada a cargo.»

22      O artigo 27.o, n.o 1, do mesmo regulamento prevê:

«O requerente ou outra pessoa referida no artigo 18.o, n.o 1, alíneas c) ou d), tem direito a uma via de recurso efetiva, sob a forma de recurso ou de pedido de revisão, de facto e de direito, da decisão de transferência, para um órgão jurisdicional.»

23      O artigo 29.o, n.os 1 e 2, do Regulamento Dublim III enuncia:

«1.      A transferência do requerente [....] do Estado‑Membro requerente para o Estado‑Membro responsável efetua‑se em conformidade com o direito nacional do Estado‑Membro requerente, após concertação entre os Estados‑Membros envolvidos, logo que seja materialmente possível e, o mais tardar, no prazo de seis meses […]

[…]

2.        Se a transferência não for executada no prazo de seis meses, o Estado‑Membro responsável fica isento da sua obrigação de tomada ou retomada a cargo da pessoa em causa, e a responsabilidade é transferida para o Estado‑Membro requerente. […]»

24      O artigo 35.o, n.o 1, deste regulamento dispõe:

«Os Estados‑Membros devem notificar sem demora à Comissão as autoridades específicas responsáveis pelo cumprimento das obrigações decorrentes do presente regulamento e respetivas alterações. Os Estados‑Membros devem assegurar que essas autoridades disponham dos recursos necessários para cumprirem a sua missão e, nomeadamente, para responderem, nos prazos previstos, aos pedidos de informações, de tomada a cargo e de retomada a cargo de requerentes.»

 Direito irlandês

25      A legislação nacional aplicável é o European Union (Dublin System) Regulations 2014 [Regulamento relativo à União Europeia (Sistema de Dublim) de 2014] (SI n.o 525/2014, a seguir «regulamento nacional»). As suas principais disposições para efeitos do presente processo são as seguintes.

26      O artigo 2(2) do regulamento nacional dispõe que um termo ou uma expressão utilizada simultaneamente neste regulamento e no Regulamento Dublim III deve ter o mesmo significado que esse termo ou essa expressão tem no regulamento da União.

27      A expressão «decisão de transferência» é definida no artigo 2(1) do regulamento nacional como sendo uma decisão adotada pelo Refugee Applications Commissioner (Comissário para os Refugiados, Irlanda), em conformidade com o Regulamento Dublim III, de transferir um requerente nos casos em que o Estado, no caso vertente a Irlanda, é o Estado‑Membro requerente e o Estado‑Membro requerido aceitou a tomada a cargo ou a retomada a cargo desse requerente.

28      O artigo 3(1) do regulamento nacional prevê que o Comissário para os Refugiados exerce as funções de um Estado‑Membro que procede à determinação do Estado‑Membro responsável, de um Estado‑Membro requerente e de um Estado‑Membro requerido. O n.o 2 deste artigo indica que o Ministro da Justiça e da Igualdade exerce as funções de Estado‑Membro que procede à transferência.

29      Segundo o artigo 3(3) do regulamento nacional, o Comissário para os Refugiados exerce todas as funções previstas no artigo 6.o do Regulamento Dublim III, que faz, ele próprio, referência ao interesse superior da criança «relativamente a todos os procedimentos previstos no presente regulamento».

30      Nos termos do artigo 6(1) do regulamento nacional, um requerente pode interpor recurso da decisão de transferência.

31      O artigo 6(9) do regulamento nacional dispõe que tribunal de recurso confirma ou anula a decisão de transferência.

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

32      Resulta da decisão de reenvio que S.A., nacional de um Estado terceiro, entrou no Reino Unido, munida de um visto de estudante, durante o ano de 2010, e que, no ano seguinte, M.A., igualmente nacional de um Estado terceiro, se juntou a ela após ter obtido um visto para pessoa dependente. A.Z., filho de ambos, nasceu no Reino Unido, no mês de fevereiro de 2014. Os pais renovaram o seu visto anualmente até ao encerramento do estabelecimento de ensino onde estudava S.A., tendo esse encerramento causado a caducidade dos seus vistos.

33      S.A. e M.A. foram então para a Irlanda onde, em 12 de janeiro de 2016, apresentaram pedidos de asilo. O pedido relativo à criança estava incluído no pedido relativo à sua mãe.

34      Em 7 de abril de 2016, o Comissário para os Refugiados dirigiu ao Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte um pedido para efeitos de tomada a cargo desses pedidos de asilo com fundamento no Regulamento Dublim III.

35      Em 1 de maio de 2016, este Estado‑Membro deu o seu acordo para a referida tomada a cargo.

36      S.A. e M.A. invocaram perante o Comissário para os Refugiados problemas de saúde que M.A. enfrentava, bem como o facto de a criança ser objeto de uma avaliação pelo Health Service Executive (Administração dos Serviços de Saúde, Irlanda) relacionada com um problema de saúde.

37      O Comissário para os Refugiados recomendou a transferência para o Reino Unido, considerando, por decisão desfavorável a S.A. e a M.A., que não havia que aplicar o artigo 17.o do Regulamento Dublim III.

38      S.A. e M.A. contestaram a decisão de transferência no International Protection Appeals Tribunal (Tribunal de Recurso para a Proteção Internacional), baseando‑se principalmente nesse artigo 17.o e em fundamentos ligados à retirada do Reino Unido da União.

39      Em 10 de janeiro de 2017, este órgão jurisdicional confirmou a decisão de transferência, após ter observado que não era competente para exercer o poder discricionário previsto no referido artigo 17.o Julgou igualmente improcedentes os argumentos relativos à saída do Reino Unido da União porquanto a situação pertinente para apreciar a legalidade dessa decisão era a que existia à data em que foi chamado a decidir.

40      S.A. e M.A. recorreram então para a High Court (Tribunal Superior, Irlanda).

41      Esse órgão jurisdicional considera que, em princípio, para resolver o litígio nele pendente, há que determinar, previamente, as implicações que pode ter para o sistema de Dublim o processo de saída do Reino Unido da União.

42      Além disso, indica que os termos utilizados no regulamento nacional, que reproduzem os que figuram no Regulamento Dublim III, devem ter o mesmo sentido que estes últimos. Daí deduz que é necessário interpretar este último regulamento para resolver o litígio nele pendente.

43      Nestas circunstâncias, a High Court (Tribunal Superior) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Estando em causa a transferência de um requerente de proteção para o Reino Unido ao abrigo do Regulamento [Dublim III], a autoridade nacional competente, ao apreciar quaisquer questões decorrentes do poder discricionário previsto no artigo 17.o [deste regulamento] e/ou relativas à proteção dos direitos fundamentais no Reino Unido, está obrigada a não ter em consideração as circunstâncias que se verificam no momento dessa apreciação no que se refere à proposta de retirada do Reino Unido da União Europeia?

2)      O conceito de “Estado‑Membro que procede à determinação do Estado‑Membro responsável” constante do Regulamento [Dublim III] inclui o papel do Estado‑Membro que exerce o poder reconhecido ou conferido pelo artigo 17.o do regulamento?

3)      As funções que incumbem a um Estado‑Membro nos termos do artigo 6.o do Regulamento [Dublim III] incluem o poder reconhecido ou conferido pelo artigo 17.o do regulamento?

4)      O conceito de [“]tutela jurisdicional efetiva[”] aplica‑se a uma decisão em primeira instância ao abrigo do artigo 17.o do Regulamento [Dublim III] de modo a garantir a possibilidade de recurso de uma tal decisão ou uma via de reparação equivalente e/ou de modo a que a legislação nacional que prevê um processo de recurso de uma decisão em primeira instância nos termos do regulamento seja interpretada no sentido de que abrange o recurso de uma decisão tomada ao abrigo do artigo 17.o?

5)      O artigo 20.o, n.o 3, do Regulamento [Dublim III] tem por efeito que, na falta de prova que ilida a presunção de que é do superior interesse do menor tratar a sua situação como indissociável da dos progenitores, a autoridade nacional competente não é obrigada a analisar tal interesse superior separadamente do dos progenitores, enquanto questão distinta ou como ponto de partida para a apreciação sobre se a transferência deve ou não ter lugar?»

 Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

44      O órgão jurisdicional de reenvio pediu que o processo fosse submetido à tramitação prejudicial urgente prevista no artigo 23.o‑A do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia. A título subsidiário, esse órgão jurisdicional pediu que o processo fosse submetido a tramitação acelerada, em aplicação do artigo 105.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

45      No que respeita, em primeiro lugar, ao pedido relativo à tramitação prejudicial urgente, em 4 de dezembro de 2017, o Tribunal de Justiça decidiu, sob proposta do juiz‑relator, ouvido o advogado‑geral, não deferir este pedido.

46      No que se refere, em segundo lugar, ao pedido de submeter o presente processo à tramitação acelerada prevista no artigo 105.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, o presidente do Tribunal de Justiça decidiu, através do seu Despacho de 20 de dezembro de 2017, M.A. e o. (C‑661/17, não publicado, EU:C:2017:1024), indeferir esse pedido.

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à admissibilidade

47      A Irlanda sustenta que, uma vez que as consequências jurídicas de uma eventual retirada do Reino Unido da União ainda não são conhecidas, as questões relativas a tais consequências devem ser consideradas hipotéticas. Por conseguinte, qualquer decisão que o Tribunal de Justiça possa proferir nesta fase no que respeita à situação que se apresentará após a data em que está previsto que esse Estado‑Membro deixe de ser um Estado‑Membro da União é de natureza hipotética. Ora, segundo jurisprudência constante (Acórdão de 27 de fevereiro de 2014, Pohotovosť, C‑470/12, EU:C:2014:101, n.os 27 e 29 e jurisprudência referida), o Tribunal de Justiça não dá resposta a questões de natureza hipotética ou consultivas.

48      A este respeito, há que recordar que, segundo jurisprudência constante, o processo instituído pelo artigo 267.o TFUE é um instrumento de cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais, graças ao qual o primeiro fornece aos segundos os elementos de interpretação do direito da União que lhes são necessários para a resolução do litígio que lhes cabe decidir (Acórdão de 8 de dezembro de 2016, Eurosaneamientos e o., C‑532/15 e C‑538/15, EU:C:2016:932, n.o 26 e jurisprudência referida).

49      No âmbito desta cooperação, o juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal. Consequentemente, desde que as questões submetidas sejam relativas à interpretação ou à validade de uma regra de direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (Acórdão de 8 de dezembro de 2016, Eurosaneamientos e o., C‑532/15 e C‑538/15, EU:C:2016:932, n.o 27 e jurisprudência referida).

50      Daqui resulta que as questões relativas à interpretação do direito da União submetidas pelo juiz nacional no quadro regulamentar e factual que define sob a sua responsabilidade, e cuja exatidão não cabe ao Tribunal de Justiça verificar, gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre um pedido formulado por um órgão jurisdicional nacional quando for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (Acórdão de 8 de dezembro de 2016, Eurosaneamientos e o., C‑532/15 e C‑538/15, EU:C:2016:932, n.o 28 e jurisprudência referida).

51      No caso vertente, importa salientar que o órgão jurisdicional de reenvio explicou detalhadamente a razão pela qual considerou que, para se pronunciar sobre o litígio que lhe foi submetido, é necessário analisar as consequências que poderia ter a eventual retirada do Reino Unido da União no âmbito do Regulamento Dublim III.

52      Nestas condições, a interpretação solicitada pelo órgão jurisdicional de reenvio não se afigura desprovida de pertinência para resolver o litígio que lhe foi submetido. Por conseguinte, há que responder às questões submetidas pela High Court (Tribunal Superior, Irlanda).

 Quanto ao mérito

 Quanto à primeira questão

53      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III deve ser interpretado no sentido de que a circunstância de um Estado‑Membro, determinado como «responsável» na aceção deste regulamento, ter notificado a sua intenção de se retirar da União em conformidade com o artigo 50.o TUE obriga o Estado‑Membro que procede a essa determinação a analisar ele próprio, em aplicação da cláusula discricionária prevista nesse artigo 17.o, n.o 1, o pedido de proteção em causa.

54      A este respeito, importa recordar que a notificação por um Estado‑Membro da sua intenção de se retirar da União em conformidade com o artigo 50.o TUE não tem por efeito suspender a aplicação do direito da União nesse Estado‑Membro e que, consequentemente, este direito continua plenamente em vigor nesse Estado até à sua retirada efetiva da União (Acórdão de 19 de setembro de 2018, RO, C‑327/18 PPU, EU:C:2018:733, n.o 45).

55      Conforme exposto no n.o 10 do presente acórdão, o Regulamento Dublim III substituiu o Regulamento n.o 343/2003. No que se refere à cláusula discricionária prevista no artigo 17.o, n.o 1, do primeiro regulamento, o Tribunal de Justiça já precisou que, uma vez que os termos dessa disposição coincidem, no essencial, com os da cláusula de soberania que figurava no artigo 3.o, n.o 2, do Regulamento n.o 343/2003, a interpretação desta última disposição é igualmente transponível para o artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III (Acórdão de 16 de fevereiro de 2017, C. K. e o., C‑578/16 PPU, EU:C:2017:127, n.o 53).

56      Nos termos do artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III, um pedido de proteção internacional é analisado por um único Estado‑Membro, que é aquele que os critérios enunciados no capítulo III deste regulamento designam como responsável.

57      Em derrogação do artigo 3.o, n.o 1, o artigo 17.o, n.o 1, do referido regulamento prevê que cada Estado‑Membro pode decidir analisar um pedido de proteção internacional que lhe seja apresentado por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, mesmo que essa análise não seja da sua competência por força de tais critérios.

58      Resulta claramente da redação do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III que esta disposição é de natureza facultativa, na medida em que deixa à discrição de cada Estado‑Membro a decisão de proceder à análise de um pedido de proteção internacional que lhe seja apresentado, mesmo que essa análise não seja da sua competência por força dos critérios de determinação do Estado‑Membro responsável definidos nesse regulamento. O exercício desta faculdade não está, por outro lado, sujeito a nenhum requisito particular (v., neste sentido, Acórdão de 30 de maio de 2013, Halaf, C‑528/11, EU:C:2013:342, n.o 36). A referida faculdade visa permitir a cada Estado‑Membro decidir soberanamente, em função de considerações políticas, humanitárias ou práticas, aceitar analisar um pedido de proteção internacional mesmo que não seja responsável nos termos dos critérios definidos pelo referido regulamento (Acórdão de 4 de outubro de 2018, Fathi, C‑56/17, EU:C:2018:803, n.o 53).

59      Tendo em conta o alcance do poder de apreciação assim conferido aos Estados‑Membros, cabe ao Estado‑Membro em causa determinar as circunstâncias em que pretende fazer uso da faculdade conferida pela cláusula discricionária prevista no artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III e aceitar analisar ele próprio um pedido de proteção internacional pelo qual não é responsável por força dos critérios definidos nesse regulamento.

60      Esta constatação é, aliás, coerente, por um lado, com a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa às disposições facultativas, segundo a qual essas disposições conferem um poder de apreciação alargado aos Estados‑Membros (Acórdão de 10 de dezembro de 2013, Abdullahi, C‑394/12, EU:C:2013:813, n.o 57 e jurisprudência referida), e, por outro, com o objetivo do referido artigo 17.o, n.o 1, ou seja, preservar as prerrogativas dos Estados‑Membros no exercício do direito de conceder proteção internacional (Acórdão de 5 de julho de 2018, X, C‑213/17, EU:C:2018:538, n.o 61 e jurisprudência referida).

61      Atendendo às considerações precedentes, há que responder à primeira questão que o artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III deve ser interpretado no sentido de que a circunstância de um Estado‑Membro, determinado como «responsável» na aceção deste regulamento, ter notificado a sua intenção de se retirar da União em conformidade com o artigo 50.o TUE não obriga o Estado‑Membro que procede a essa determinação a analisar ele próprio, em aplicação da cláusula discricionária prevista nesse artigo 17.o, n.o 1, o pedido de proteção em causa.

 Quanto à segunda questão

62      Resulta dos elementos dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça que a segunda questão assenta na premissa de que, na Irlanda, cabe ao Comissário para os Refugiados proceder à determinação do Estado‑Membro responsável por força dos critérios definidos no Regulamento Dublim III, ao passo que o exercício da cláusula discricionária, prevista no artigo 17.o, n.o 1, deste regulamento, é assegurado pelo Ministro da Justiça e da Igualdade.

63      Nestas condições, há que considerar que, com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o Regulamento Dublim III deve ser interpretado no sentido de que impõe que a determinação do Estado responsável em aplicação dos critérios definidos nesse regulamento e o exercício da cláusula discricionária prevista no artigo 17.o, n.o 1, do referido regulamento sejam assegurados pela mesma autoridade nacional.

64      Importa recordar, antes de mais, que resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o poder de apreciação conferido aos Estados‑Membros pelo artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III faz parte integrante dos mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável por um pedido de asilo previstos nesse regulamento. Assim, a decisão, adotada por um Estado‑Membro com fundamento nessa disposição, de analisar ou não um pedido de proteção internacional para o qual não é competente tendo em conta os critérios enunciados no capítulo III do referido regulamento, aplica o direito da União (v., neste sentido, Acórdão de 16 de fevereiro de 2017, C. K. e o., C‑578/16 PPU, EU:C:2017:127, n.o 53 e jurisprudência referida).

65      Em seguida, há que observar que o Regulamento Dublim III não contém, no entanto, nenhuma disposição que precise qual é a autoridade habilitada a tomar uma decisão ao abrigo dos critérios definidos nesse regulamento relativos à determinação do Estado‑Membro responsável ou ao abrigo da cláusula discricionária prevista no artigo 17.o, n.o 1, do referido regulamento. Este último também não precisa se um Estado‑Membro deve confiar o ónus da aplicação de tais critérios e o da aplicação dessa cláusula discricionária à mesma autoridade.

66      Em contrapartida, o artigo 35.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III prevê que os Estados‑Membros devem notificar sem demora à Comissão «as autoridades […] responsáveis» específicas pelo cumprimento das obrigações decorrentes desse regulamento e respetivas alterações.

67      Decorre da redação desta disposição, em primeiro lugar, que cabe aos Estados‑Membros determinar quais as autoridades nacionais competentes para aplicar o Regulamento Dublim III. Em segundo lugar, a expressão «as autoridades […] responsáveis» que figura nesse artigo 35.o implica que um Estado‑Membro tem liberdade para confiar o ónus da aplicação dos critérios definidos nesse regulamento relativos à determinação do Estado‑Membro responsável e o da aplicação da «cláusula discricionária» prevista no artigo 17.o, n.o 1, do referido regulamento a autoridades diferentes.

68      Esta apreciação é igualmente corroborada por outras disposições do Regulamento Dublim III, tais como o artigo 4.o, n.o 1, o artigo 20.o, n.os 2 e 4, ou o seu artigo 21.o, n.o 3, nas quais as expressões «as suas autoridades competentes», «as autoridades», «as autoridades competentes do Estado‑Membro em causa», «às autoridades competentes de um Estado‑Membro» ou ainda «às autoridades do Estado‑Membro requerido» foram utilizadas.

69      Atendendo às considerações precedentes, há que responder à segunda questão que o Regulamento Dublim III deve ser interpretado no sentido de que não impõe que a determinação do Estado responsável por força dos critérios definidos nesse regulamento e o exercício da cláusula discricionária prevista no artigo 17.o, n.o 1, do referido regulamento sejam assegurados pela mesma autoridade nacional.

 Quanto à terceira questão

70      Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 6.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III deve ser interpretado no sentido de que impõe que um Estado‑Membro que não é responsável, por força dos critérios enunciados nesse regulamento, pela análise de um pedido de proteção internacional tenha em conta o superior interesse da criança e que analise ele próprio esse pedido, em aplicação do artigo 17.o, n.o 1, do referido regulamento.

71      Atendendo a que resulta desde logo dos n.os 58 e 59 do presente acórdão que o exercício da faculdade conferida aos Estados‑Membros pela cláusula discricionária prevista no artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III não está sujeito a nenhuma condição especial e que cabe, em princípio, a cada Estado‑Membro determinar as circunstâncias em que deseja fazer uso desta faculdade e aceitar analisar ele próprio um pedido de proteção internacional pelo qual não é responsável por força dos critérios definidos nesse regulamento, há que concluir que as considerações relativas ao superior interesse da criança também não podem obrigar um Estado‑Membro a fazer uso da referida faculdade e a analisar ele próprio um pedido que não lhe incumbe.

72      Daqui decorre que o artigo 6.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III deve ser interpretado no sentido de que não impõe a um Estado‑Membro que não é responsável, por força dos critérios enunciados nesse regulamento, pela análise de um pedido de proteção internacional que tenha em conta o superior interesse da criança e que analise ele próprio esse pedido, em aplicação do artigo 17.o, n.o 1, do referido regulamento.

 Quanto à quarta questão

73      Com a sua quarta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III deve ser interpretado no sentido de que impõe que seja previsto um recurso da decisão de não fazer uso da faculdade prevista no artigo 17.o, n.o 1, do mesmo regulamento.

74      Nos termos do artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III, o requerente de proteção internacional tem direito a uma via de recurso efetiva, sob a forma de recurso ou de pedido de revisão, de facto e de direito, da decisão de transferência, para um órgão jurisdicional.

75      Assim, este artigo não prevê expressamente o recurso da decisão de não fazer uso da faculdade prevista no artigo 17.o, n.o 1, deste regulamento.

76      Além disso, o objetivo de celeridade no tratamento dos pedidos de proteção internacional e, designadamente, da determinação do Estado‑Membro responsável, subjacente ao procedimento instituído pelo Regulamento Dublim III e recordado no considerando 5 deste regulamento, convida a não multiplicar as vias de recurso.

77      É certo que o princípio da proteção jurisdicional efetiva constitui um princípio geral do direito da União que atualmente se encontra plasmado no artigo 47.o da Carta (Acórdão de 10 de julho de 2014, Telefónica e Telefónica de España/Comissão, C‑295/12 P, EU:C:2014:2062, n.o 40 e jurisprudência referida) e nos termos do qual qualquer pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem direito a um recurso efetivo num tribunal nos termos previstos neste artigo.

78      Todavia, se um Estado‑Membro recusa fazer uso da cláusula discricionária prevista no artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III, isso equivale necessariamente a que esse Estado‑Membro adote uma decisão de transferência. A recusa do Estado‑Membro de fazer uso dessa cláusula poderá, sendo caso disso, ser impugnada no âmbito de um recurso de uma decisão de transferência.

79      Por conseguinte, o artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III deve ser interpretado no sentido de que não impõe que seja previsto um recurso da decisão de não fazer uso da faculdade prevista no artigo 17.o, n.o 1, deste regulamento, sem prejuízo de essa decisão poder ser impugnada no âmbito de um recurso da decisão de transferência.

80      Além disso, e a fim de dar uma resposta útil ao órgão jurisdicional de reenvio, na medida em que as questões submetidas estão, no caso vertente, ligadas à notificação do Estado‑Membro, determinado como responsável por força dos critérios fixados pelo Regulamento Dublim III, da sua intenção de se retirar da União em conformidade com o artigo 50.o TUE, há que indicar que esta notificação, como decorre do n.o 54 do presente acórdão, não tem por efeito suspender a aplicação do direito da União nesse Estado‑Membro e que, por conseguinte, esse direito, do qual faz parte o Sistema Europeu Comum de Asilo, bem como a confiança mútua e a presunção de respeito, pelos Estados‑Membros, dos direitos fundamentais, continua plenamente em vigor no referido Estado‑Membro até à sua retirada efetiva da União.

81      Acrescente‑se igualmente que, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a transferência de um requerente para um Estado‑Membro não deve ser efetuada se existirem sérias razões para crer que essa notificação levaria o requerente a correr um risco real de ser sujeito nesse Estado‑Membro a tratos desumanos ou degradantes, na aceção do artigo 4.o da Carta (Acórdão de 16 de fevereiro de 2017, C. K. e o., C‑578/16 PPU, EU:C:2017:127, n.o 65).

82      Neste contexto, importa salientar que não se pode considerar que tal notificação pode, em si mesma, levar a que o interessado seja exposto a tal risco.

83      A este respeito, importa salientar, em primeiro lugar, que o Sistema Europeu Comum de Asilo foi concebido num contexto que permite supor que todos os Estados que nele participam, quer sejam Estados‑Membros ou Estados terceiros, respeitam os direitos fundamentais, incluindo os direitos que assentam na Convenção de Genebra e no Protocolo de 1967, a saber, o princípio da não repulsão, bem como na CEDH, e, portanto, que estes Estados podem conceder‑se, no que se refere ao respeito destes direitos fundamentais, confiança mútua (v., neste sentido, Acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o., C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865, n.o 78), uma vez que todos esses Estados são, além disso, como indicado nos n.os 3 a 5 do presente acórdão, todos eles partes tanto na Convenção de Genebra e no Protocolo de 1967 como na CEDH.

84      Em segundo lugar, no que se refere aos direitos fundamentais que são reconhecidos a um requerente de proteção internacional, além da codificação, no artigo 3.o, n.o 2, do Regulamento Dublim III, da jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à existência das deficiências sistémicas do procedimento de asilo e das condições de acolhimento dos requerentes no Estado‑Membro determinado como responsável, na aceção desse regulamento, os Estados‑Membros, como decorre dos considerandos 32 e 39 do referido regulamento, estão igualmente vinculados na aplicação desse regulamento pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e pelo artigo 4.o da Carta (Acórdão de 16 de fevereiro de 2017, C. K. e o., C‑578/16 PPU, EU:C:2017:127, n.o 63). Uma vez que esse artigo 4.o corresponde ao artigo 3.o da CEDH, a proibição de tratos desumanos ou degradantes prevista na primeira destas disposições tem, em conformidade com o artigo 52.o, n.o 3, da Carta, o mesmo sentido e o mesmo alcance que os que lhe confere essa convenção (v., neste sentido, Acórdão de 16 de fevereiro de 2017, C. K. e o., C‑578/16 PPU, EU:C:2017:127, n.o 67).

85      Em terceiro lugar, como foi exposto no n.o 83 do presente acórdão, uma vez que os Estados‑Membros são partes na Convenção de Genebra e no Protocolo de 1967, bem como na CEDH, dois acordos internacionais em que assenta o Sistema Europeu Comum de Asilo, a manutenção de um Estado‑Membro da sua participação nestas convenções e no protocolo não está ligada à sua pertença à União. Daqui resulta que a decisão de um Estado‑Membro de se retirar da União não afeta as suas obrigações de respeitar a Convenção de Genebra e o Protocolo de 1967, incluindo o princípio da não repulsão, bem como o artigo 3.o da CEDH.

86      Atendendo às considerações precedentes, há que responder à quarta questão que o artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III deve ser interpretado no sentido de que não impõe que seja previsto um recurso da decisão de não fazer uso da faculdade prevista no artigo 17.o, n.o 1, desse regulamento, sem prejuízo de esta decisão poder ser impugnada no âmbito de um recurso da decisão de transferência.

 Quanto à quinta questão

87      Com a sua quinta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 20.o, n.o 3, do Regulamento Dublim III deve ser interpretado no sentido de que, na falta de prova em contrário, esta disposição estabelece uma presunção segundo a qual é do superior interesse da criança tratar a situação dessa criança de forma indissociável da dos seus pais.

88      Há que observar que resulta claramente da redação do artigo 20.o, n.o 3, do Regulamento Dublim III que é esse o caso. Daqui resulta que só no caso de se provar que tal análise efetuada conjuntamente com a dos pais da criança não é do superior interesse da criança é que há que tratar a situação desta última separadamente da dos seus pais.

89      Esta conclusão é conforme com os considerandos 14 a 16, bem como, designadamente, com o artigo 6.o, n.os 3, alínea a), e n.o 4, com o artigo 8.o, n.o 1, e com o artigo 11.o do Regulamento Dublim III. Decorre destas disposições que o respeito da vida familiar e, mais especificamente, a preservação da unidade do grupo familiar é, em princípio, do superior interesse da criança.

90      Atendendo às considerações precedentes há que responder à quinta questão que o artigo 20.o, n.o 3, do Regulamento Dublim III deve ser interpretado no sentido de que, na falta de prova em contrário, esta disposição estabelece uma presunção de que é do superior interesse da criança tratar a situação dessa criança de forma indissociável da dos seus pais.

 Quanto às despesas

91      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

1)      O artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento (UE) n.o 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do EstadoMembro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos EstadosMembros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, deve ser interpretado no sentido de que a circunstância de um EstadoMembro, determinado como «responsável» na aceção deste regulamento, ter notificado a sua intenção de se retirar da União Europeia em conformidade com o artigo 50.o TUE não obriga o EstadoMembro que procede a essa determinação a analisar ele próprio, em aplicação da cláusula discricionária prevista nesse artigo 17.o, n.o 1, o pedido de proteção em causa.

2)      O Regulamento n.o 604/2013 deve ser interpretado no sentido de que não impõe que a determinação do Estado responsável por força dos critérios definidos nesse regulamento e o exercício da cláusula discricionária prevista no artigo 17.o, n.o 1, do referido regulamento sejam assegurados pela mesma autoridade nacional.

3)      O artigo 6.o, n.o 1, do Regulamento n.o 604/2013 deve ser interpretado no sentido de que não impõe a um EstadoMembro que não é responsável, por força dos critérios enunciados nesse regulamento, pela análise de um pedido de proteção internacional que tenha em conta o superior interesse da criança e que analise ele próprio esse pedido, em aplicação do artigo 17.o, n.o 1, do referido regulamento.

4)      O artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento n.o 604/2013 deve ser interpretado no sentido de que não impõe que seja previsto um recurso da decisão de não fazer uso da faculdade prevista no artigo 17.o, n.o 1, desse regulamento, sem prejuízo de esta decisão poder ser impugnada no âmbito de um recurso da decisão de transferência.

5)      O artigo 20.o, n.o 3, do Regulamento n.o 604/2013 deve ser interpretado no sentido de que, na falta de prova em contrário, esta disposição estabelece uma presunção de que é do superior interesse da criança tratar a situação dessa criança de forma indissociável da dos seus pais.

Assinaturas


*      Língua do processo: inglês.