Language of document : ECLI:EU:C:2021:804

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

6 de outubro de 2021 (*)

«Reenvio prejudicial — Espaço de liberdade, segurança e justiça — Decisão‑Quadro 2005/214/JAI — Execução de sanções pecuniárias — Princípio do reconhecimento mútuo — Artigo 5.o, n.o 1 — Infrações que determinam o reconhecimento e a execução de decisões sancionatórias sem verificação da dupla incriminação do ato — Artigo 5.o, n.o 3 — Infrações relativamente às quais o Estado‑Membro tem a possibilidade de sujeitar o reconhecimento e execução de decisões sancionatórias à dupla incriminação do ato — Verificação pelo Estado‑Membro de execução da qualificação jurídica dada à infração pelo Estado‑Membro de emissão na certidão que acompanha a decisão sancionatória»

No processo C‑136/20,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Zalaegerszegi Járásbíróság (Tribunal de Primeira Instância de Zalaegerszeg, Hungria), por Decisão de 12 de março de 2020, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 12 de março de 2020, no processo relativo ao reconhecimento e à execução de uma sanção pecuniária aplicada a

LU,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: J.‑C. Bonichot, presidente de secção, R. Silva de Lapuerta (relatora), vice‑presidente do Tribunal de Justiça, L. Bay Larsen, C. Toader e N. Jääskinen, juízes,

advogado‑geral: J. Richard de la Tour,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

considerando as observações apresentadas:

—        em representação do Governo húngaro, por M. Z. Fehér e R. Kissné Berta, na qualidade de agentes,

—        em representação do Governo checo, por M. Smolek, J. Vláčil e T. Machovičová, na qualidade de agentes,

—        em representação do Governo espanhol, por S. Jiménez García, na qualidade de agente,

—        em representação do Governo austríaco, por A. Posch, J. Schmoll e C. Leeb, na qualidade de agentes,

—        em representação da Comissão Europeia, por M. Wasmeier e L. Havas, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 20 de maio de 2021,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 5.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2005/214/JAI do Conselho, de 24 de fevereiro de 2005, relativa à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às sanções pecuniárias (JO 2005, L 76, p. 16), conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009 (JO 2009, L 81, p. 24) (a seguir «Decisão‑Quadro 2005/214»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo instaurado pela Bezirkshauptmannschaft Weiz (Autoridade Administrativa do Distrito de Weiz, Áustria) a respeito do reconhecimento e execução, na Hungria, de uma decisão que aplica uma sanção pecuniária a LU, cidadã húngara, devido a uma infração cometida por esta na Áustria.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        Nos termos dos considerandos 1, 2 e 4 da Decisão‑Quadro 2005/214:

«(1)      O Conselho Europeu, reunido em Tampere, em 15 e 16 de outubro de 1999, aprovou o princípio do reconhecimento mútuo, que se deve tornar a pedra angular da cooperação judiciária na União, tanto em matéria civil como penal.

(2)      O princípio do reconhecimento mútuo deverá aplicar‑se às sanções pecuniárias impostas pelas autoridades judiciárias ou administrativas, a fim de facilitar a aplicação dessas sanções num Estado‑Membro que não seja o Estado em que as sanções são impostas.

[…]

(4)      A presente decisão‑quadro deverá também abranger as sanções pecuniárias aplicadas por motivo de infrações ao código da estrada.»

4        O artigo 1.o desta decisão‑quadro, sob a epígrafe «Definições», dispõe:

«Para efeitos da presente decisão‑quadro, entende‑se por:

a)      “Decisão”, uma decisão transitada em julgado pela qual é imposta uma sanção pecuniária a uma pessoa singular ou coletiva, sempre que a decisão tenha sido tomada por:

[…]

ii)      uma autoridade do Estado de emissão que não seja um tribunal, no que respeita a uma infração qualificada como penal pela legislação do Estado de emissão, desde que a pessoa em causa tenha tido a possibilidade de ser julgada por um tribunal competente, nomeadamente em matéria penal;

iii)      uma autoridade do Estado de emissão que não seja um tribunal, no que respeita a atos que sejam puníveis segundo a legislação do Estado de emissão, por constituírem infrações às normas jurídicas, desde que a pessoa em causa tenha tido a possibilidade de ser julgada por um tribunal competente, nomeadamente em matéria penal;

[…]»

5        Nos termos do artigo 4.o, n.o 1, da referida decisão‑quadro:

«As decisões, acompanhadas da certidão prevista no presente artigo, podem ser transmitidas às autoridades competentes de um Estado‑Membro em cujo território a pessoa singular ou coletiva contra a qual tenha sido proferida uma decisão possua bens ou rendimentos, tenha a sua residência habitual ou, no caso de uma pessoa coletiva, tenha a sua sede estatutária.»

6        O artigo 5.o da Decisão‑Quadro 2005/214, sob a epígrafe «Infrações», enuncia, no seu n.o 1, trigésimo terceiro travessão, bem como no seu n.o 3:

«1.      As infrações a seguir indicadas, se forem puníveis no Estado de emissão e tal como definidas na sua legislação, determinam, nos termos da presente decisão‑quadro e sem verificação da dupla incriminação do ato, o reconhecimento e a execução das decisões:

[…]

—      conduta que infrinja o código da estrada, incluindo a regulamentação dos tempos de condução e de repouso e o transporte de mercadorias perigosas;

[…]

3.      No caso de infrações não abrangidas pelo n.o 1, o Estado de execução pode sujeitar o reconhecimento e a execução de uma decisão à condição de a mesma se referir a um comportamento que constitua uma infração, nos termos do direito do Estado de execução, independentemente dos seus elementos constitutivos ou da sua qualificação.»

7        O artigo 6.o desta decisão‑quadro prevê:

«As autoridades competentes do Estado de execução devem reconhecer uma decisão transmitida nos termos do artigo 4.o, sem qualquer outra formalidade, devendo tomar imediatamente todas as medidas necessárias à sua execução, exceto se decidirem invocar um dos motivos de não reconhecimento ou de não execução previstos no artigo 7.o»

8        Nos termos do artigo 7.o da referida decisão‑quadro, sob a epígrafe «Motivos para o não reconhecimento e a não execução»:

«1.      As autoridades competentes do Estado de execução podem recusar o reconhecimento e a execução da decisão, se a certidão prevista no artigo 4.o não for apresentada, estiver incompleta ou manifestamente não corresponder à decisão.

2.      A autoridade competente do Estado de execução pode igualmente recusar o reconhecimento e a execução da decisão se se provar que:

[…]

b)      Num dos casos referidos no n.o 3 do artigo 5.o, a decisão diz respeito a atos que não constituem infração, nos termos do direito do Estado de execução;

[…]

3.      Nos casos referidos no n.o 1 e nas alíneas c), g), i) e j) do n.o 2, antes de decidir pelo não reconhecimento e pela não execução, total ou parcial, de uma decisão, a autoridade competente do Estado de execução deve consultar, por todos os meios apropriados, a autoridade competente do Estado de emissão e solicitar‑lhe, sempre que adequado, a rápida prestação de todas as informações necessárias.»

9        O artigo 20.o da Decisão‑Quadro 2005/214, sob a epígrafe «Execução», enuncia, no seu n.o 3:

«Os Estados‑Membros podem opor‑se ao reconhecimento e à execução de decisões sempre que a certidão referida no artigo 4.o levante a suspeita de que os direitos fundamentais ou os princípios jurídicos fundamentais consagrados no artigo 6.o do Tratado foram violados. Nesse caso, é aplicável o n.o 3 do artigo 7.o»

10      A certidão prevista no artigo 4.o da Decisão‑Quadro 2005/214 e que figura no anexo desta inclui, nomeadamente, uma rubrica g) na qual a autoridade de emissão deve indicar a natureza da decisão sancionatória (n.o 1), efetuar uma exposição sumária dos factos e uma descrição das circunstâncias em que a infração foi cometida (n.o 2) e, na medida em que essa infração constitua uma das infrações mencionadas no artigo 5.o, n.o 1, desta decisão‑quadro, assinalar o quadrado adequado.

 Direito húngaro

11      O artigo 112.o da Az Európai Unió tagállamaival folytatott bűnügyi együttműködésről szóló 2012. évi CLXXX. Törvény (Lei CLXXX de 2012, Relativa à Cooperação em Matéria Penal entre os Estados‑Membros da União Europeia), na versão aplicável aos factos no processo principal, enuncia:

«A assistência mútua em matéria de execução [inclui:]

[…]

c)      A assistência mútua para a execução de sanções pecuniárias e outras obrigações pecuniárias;

[…]»

12      Segundo o artigo 113.o desta lei, a execução da sanção ou da medida em causa é efetivada sempre que se deva ter em consideração a sentença proferida noutro Estado‑Membro.

13      O artigo 140.o‑A, n.os 3 e 4, da referida lei dispõe:

«3.      No caso das infrações penais referidas no anexo 12, o tribunal não pode recusar‑se a aplicar a sanção pecuniária aplicada por outro Estado‑Membro com o fundamento de que a decisão que aplica uma sanção proferida pelo referido Estado não pode ser tida em conta por não estar preenchido o requisito da dupla incriminação.

4.      O disposto no n.o 3 é aplicável mutatis mutandis também no caso de a autoridade do outro Estado‑Membro promover a execução de uma sanção pecuniária aplicada no referido Estado por um ato constitutivo de uma infração administrativa nesse mesmo Estado. […]»

 Direito austríaco

14      O artigo 103.o, n.o 2, da Bundesgesetz vom 23. Juni 1967 über das Kraftfahrwesen (Kraftfahrgesetz 1967 — KFG  1967) (Lei Federal Relativa aos Veículos Automóveis), de 23 de junho de 1967 (BGB1. 267/1967), na versão aplicável aos factos no processo principal (a seguir «KFG 1967»), dispõe:

«A autoridade pode solicitar informações sobre a identidade da pessoa que, num determinado momento, conduzia um veículo identificado pela respetiva matrícula ou que utilizou um reboque identificado pela respetiva matricula ou que estacionou o veículo ou o reboque pela última vez num local específico antes de um determinado momento. Essas informações, que devem incluir o nome e o endereço da pessoa em causa, devem ser comunicadas pelo titular da matrícula — no caso de exame de condução ou de condução ligada a uma transferência do veículo, pelo titular da autorização; caso esse titular não tenha possibilidade de fornecer essas informações, tem a obrigação de designar a pessoa que o possa fazer e que, por conseguinte, é o destinatário da obrigação de informação; as informações fornecidas pela pessoa sobre quem recai a obrigação de informação não isentam a autoridade do dever de as confirmar se tal se revelar necessário atendendo às circunstâncias do caso concreto. As informações devem ser enviadas imediatamente e, caso tenham sido solicitadas por escrito, no prazo de duas semanas a contar da notificação; se essas informações não puderem ser fornecidas sem os correspondentes registos, estes devem ser efetuados. O poder de a autoridade exigir tais informações tem primazia sobre o direito ao silêncio.»

15      Por força do artigo 134.o, n.o 1, da KFG 1967:

«Quem violar a presente lei federal […] comete uma contraordenação e é punido com coima até 5 000 euros e, subsidiariamente, com pena privativa de liberdade até seis semanas.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

16      Por auto de contraordenação de 6 de junho de 2018, que se tornou definitivo em 1 de janeiro de 2019, a Autoridade Administrativa do Distrito de Weiz aplicou a LU, ao abrigo das disposições conjugadas do artigo 103.o, n.o 2, e do artigo 134.o, n.o 1, da KFG 1967, uma sanção pecuniária no montante de 80 euros, com o fundamento de que esta, em cujo nome está matriculado um veículo envolvido numa infração rodoviária cometida em 28 de dezembro de 2017 no território do município de Gleisdorf (Áustria), tinha cometido uma infração administrativa ao não ter respondido, no prazo fixado pela legislação austríaca, ao seu pedido para que indicasse o nome do condutor do referido veículo ou de quem o estacionou.

17      A Autoridade Administrativa do Distrito de Weiz, enquanto autoridade competente do Estado de emissão, enviou a decisão de sanção pecuniária ao Zalaegerszegi Járásbíróság (Tribunal de Primeira Instância de Zalaegerszeg, Hungria), autoridade competente do Estado de execução, para efeitos de execução dessa decisão. Na certidão prevista no artigo 4.o da Decisão‑Quadro 2005/214, que acompanhava a referida decisão, a autoridade administrativa do Estado de emissão tinha indicado que a infração administrativa que deu origem ao auto de contraordenação de 6 de junho de 2018 se incluía na categoria das infrações de «conduta que infrin[ge] o código da estrada», prevista no artigo 5.o, n.o 1, trigésimo terceiro travessão, da Decisão‑Quadro 2005/214.

18      O Zalaegerszegi Járásbíróság (Tribunal de Primeira Instância de Zalaegerszeg) tem dúvidas quanto à possibilidade de dar encaminhamento ao pedido da autoridade de emissão para a execução da decisão sancionatória na Hungria, tendo em conta a qualificação jurídica dada à infração que deu origem ao auto de contraordenação de 6 de junho de 2018 de «conduta que infrin[ge] o código da estrada» por esta autoridade. Com efeito, o referido órgão jurisdicional interroga‑se sobre se esta infração se integra efetivamente na categoria das infrações previstas no artigo 5.o, n.o 1, trigésimo terceiro travessão, da Decisão‑Quadro 2005/214.

19      O órgão jurisdicional de reenvio admite que, no Acórdão de 5 de dezembro de 2019, Centraal Justitieel Incassobureau (Reconhecimento e execução de sanções pecuniárias) (C‑671/18, EU:C:2019:1054), o Tribunal de Justiça declarou que a autoridade competente do Estado de execução não pode recusar o reconhecimento e a execução de uma decisão que aplica uma sanção pecuniária relativa a uma infração rodoviária, na aceção da referida disposição desta decisão‑quadro, quando essa sanção tenha sido aplicada à pessoa em nome da qual o veículo em causa está registado, com base numa presunção de responsabilidade prevista na legislação nacional do Estado de emissão, desde que esta presunção possa ser ilidida.

20      Todavia, aquele órgão jurisdicional observa que, no processo que deu origem a esse acórdão, a sanção tinha sido aplicada na sequência de uma violação das disposições relativas ao código da estrada.

21      Ora, a situação é diferente no processo principal, uma vez que os factos imputados a LU constituem sobretudo uma recusa em respeitar uma ordem das autoridades austríacas competentes para indicar a identidade da pessoa que conduzia o veículo no momento da prática da infração, do que uma «conduta que infrin[ge] o código da estrada», na aceção do artigo 5.o, n.o 1, trigésimo terceiro travessão, da Decisão‑Quadro 2005/214.

22      Nestas condições, a infração em causa no processo principal pode não integrar nenhuma das que determinam o reconhecimento e a execução de decisões sancionatórias sem verificação da dupla incriminação do ato.

23      De resto, qualificar a referida infração de «conduta que infrin[ge] o código da estrada» constitui uma interpretação exageradamente extensiva do artigo 5.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2005/214 e é contrária ao objetivo desta última.

24      À luz destas considerações, o Zalaegerszegi Járásbíróság (Tribunal de Primeira Instância de Zalaegerszeg) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve o artigo 5.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro [2005/214] ser interpretado no sentido de que, se o Estado‑Membro de emissão indicar uma das condutas enumeradas na referida disposição, a autoridade do Estado‑Membro de execução não tem nenhuma margem de discricionariedade suplementar para recusar a execução, devendo aplicar [a decisão sancionatória]?

2)      Em caso de resposta negativa à questão anterior, pode a autoridade do Estado‑Membro de execução sustentar que a conduta indicada na decisão do Estado‑Membro de emissão não corresponde à conduta descrita na lista?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à admissibilidade

25      O Governo austríaco alega que o pedido de decisão prejudicial é inadmissível, uma vez que não permite ao Tribunal de Justiça determinar se a resposta às questões prejudiciais é necessária para decidir o litígio no processo principal.

26      Com efeito, segundo o referido Governo, estas questões visam determinar se o órgão jurisdicional de reenvio pode recusar a execução da decisão sancionatória em causa no processo principal em aplicação do artigo 5.o, n.o 3, e do artigo 7.o, n.o 2, alínea b), da Decisão‑Quadro 2005/214, o que implica, antes de mais, averiguar se a infração imputada a LU integra uma das infrações mencionadas na lista que figura no artigo 5.o, n.o 1, desta decisão‑quadro e, em caso negativo, se constitui uma infração nos termos do direito do Estado de execução, na aceção do artigo 5.o, n.o 3, da referida decisão‑quadro.

27      Ora, o pedido de decisão prejudicial não permite verificar se este último requisito está preenchido, uma vez que o órgão jurisdicional de reenvio não especificou se a infração cometida por LU constitui uma infração ao abrigo do direito húngaro.

28      A este respeito, é verdade que, como decorre dos próprios termos do artigo 267.o TFUE, a decisão prejudicial solicitada deve ser «necessária» para permitir ao órgão jurisdicional de reenvio proferir o «julgamento da causa» no processo que lhe foi submetido (Acórdão de 26 de março de 2020, Miasto Łowicz e Prokurator Generalny, C‑558/18 e C‑563/18, EU:C:2020:234, n.o 45).

29      Todavia, no âmbito da cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais instituída pelo artigo 267.o TFUE, o juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal. Consequentemente, desde que as questões submetidas sejam relativas à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (Acórdão de 12 de maio de 2021, Altenrhein Luftfahrt, C‑70/20, EU:C:2021:379, n.o 25).

30      Daqui resulta que as questões relativas à interpretação do direito da União submetidas pelo juiz nacional no quadro regulamentar e factual que define sob a sua responsabilidade, e cuja exatidão não cabe ao Tribunal de Justiça verificar, gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre um pedido apresentado por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (Acórdão de 12 de maio de 2021, Altenrhein Luftfahrt, C‑70/20, EU:C:2021:379, n.o 26).

31      No caso em apreço, em primeiro lugar, importa salientar que as questões prejudiciais têm por objeto a interpretação de uma disposição do direito da União.

32      Em segundo lugar, importa recordar que, uma vez que o processo prejudicial não tem por objeto a interpretação de disposições legislativas ou regulamentares nacionais, o facto de a decisão de reenvio não ser perfeitamente precisa na sua descrição do direito nacional não pode ter como efeito privar o Tribunal de Justiça da competência para responder à questão prejudicial submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio (v., neste sentido, Acórdão de 1 de dezembro de 2005, Burtscher, C‑213/04, EU:C:2005:731, n.o 33).

33      Em terceiro lugar, há que constatar que, independentemente da questão relativa aos requisitos de aplicação do artigo 5.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2005/214, a resposta do Tribunal de Justiça permitirá clarificar a questão de saber se a autoridade do Estado de execução dispõe de margem de apreciação para pôr em causa a qualificação jurídica dada a uma infração pela autoridade de emissão, segundo a qual a referida infração integra a lista prevista no artigo 5.o, n.o 1, desta decisão‑quadro.

34      Nestas condições, e tendo em conta a jurisprudência recordada nos n.os 28 a 30 do presente acórdão, o pedido de decisão prejudicial é admissível.

 Quanto ao mérito

35      Com as suas questões prejudiciais, que devem ser examinadas em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 5.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2005/214 deve ser interpretado no sentido de que a autoridade competente do Estado de execução pode recusar o reconhecimento e a execução de uma decisão que aplica, a título definitivo, uma sanção pecuniária, quando considere que a infração em causa, tal como qualificada e descrita pela autoridade do Estado‑Membro de emissão na certidão prevista no artigo 4.o desta decisão‑quadro, não integra uma das categorias para as quais o referido artigo 5.o, n.o 1, não prevê a verificação da dupla incriminação do ato.

36      A este respeito, importa recordar, antes de mais, que, como resulta, em especial, dos seus artigos 1.o e 6.o, bem como dos considerandos 1 e 2, a Decisão‑Quadro 2005/214 tem por objetivo estabelecer um mecanismo eficaz de reconhecimento e execução transfronteiriço das decisões pelas quais é aplicada, a título definitivo, uma sanção pecuniária a uma pessoa singular ou a uma pessoa coletiva, após a prática de uma das infrações enumeradas no seu artigo 5.o [Acórdão de 5 de dezembro de 2019, Centraal Justitieel Incassobureau (Reconhecimento e execução de sanções pecuniárias), C‑671/18, EU:C:2019:1054, n.o 29 e jurisprudência referida].

37      Assim, esta decisão‑quadro tem por objetivo, sem proceder à harmonização das legislações dos Estados‑Membros em matéria de direito penal, garantir a execução das sanções pecuniárias nesses Estados por meio do princípio do reconhecimento mútuo (Acórdão de 4 de março de 2020, Bank BGŻ BNP Paribas, C‑183/18, EU:C:2020:153, n.o 49).

38      Por conseguinte, é o princípio do reconhecimento mútuo que subjaz à economia da Decisão‑Quadro 2005/214. Este último princípio implica, por força do artigo 6.o desta decisão‑quadro, que os Estados‑Membros devem, em princípio, reconhecer uma decisão pela qual é aplicada uma sanção pecuniária que foi transmitida em conformidade com o artigo 4.o da referida decisão‑quadro, sem que sejam exigidas outras formalidades, e de tomar imediatamente todas as medidas necessárias à sua execução, devendo os motivos de não reconhecimento ou de não execução dessa decisão ser interpretados de forma restritiva [v., neste sentido, Acórdão de 5 de dezembro de 2019, Centraal Justitieel Incassobureau (Reconhecimento e execução de sanções pecuniárias), C‑671/18, EU:C:2019:1054, n.o 31 e jurisprudência referida].

39      Por outro lado, importa recordar que tanto o princípio da confiança mútua entre os Estados‑Membros como o princípio do reconhecimento mútuo, ele próprio assente na confiança recíproca entre estes últimos, têm, no direito da União, uma importância fundamental, uma vez que permitem a criação e a manutenção de um espaço sem fronteiras internas (Acórdão de 10 de janeiro de 2019, ET, C‑97/18, EU:C:2019:7, n.o 17 e jurisprudência referida).

40      Neste contexto, a autoridade competente do Estado‑Membro de execução deve, em princípio, reconhecer e executar a decisão transmitida, apenas podendo recusá‑lo, por derrogação à regra geral, caso se verifique um dos motivos de não reconhecimento ou de não execução expressamente previstos na Decisão‑Quadro 2005/214 [v., neste sentido, Acórdão de 5 de dezembro de 2019, Centraal Justitieel Incassobureau (Reconhecimento e execução de sanções pecuniárias), C‑671/18, EU:C:2019:1054, n.o 33].

41      Quanto à qualificação da infração que deu origem à decisão sancionatória em causa, importa salientar que, em conformidade com a redação do artigo 5.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2005/214, determinam o reconhecimento e a execução das decisões, sem verificação da dupla incriminação do ato, as infrações que figuram na lista prevista nesta disposição, se forem puníveis no Estado de emissão e «tal como definidas na sua legislação».

42      Por conseguinte, a autoridade do Estado de execução está, em princípio, vinculada pela apreciação feita pela autoridade do Estado de emissão, relativa à qualificação da infração em causa, nomeadamente no que respeita à questão de saber se a referida infração integra uma das categorias de infrações que figuram na lista prevista no artigo 5.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2005/214.

43      Assim, uma vez que a autoridade do Estado de emissão qualifica a infração de infração abrangida por uma das categorias de infrações que figuram na lista prevista no artigo 5.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2005/214, e transmite a decisão que sanciona a infração em conformidade com o artigo 4.o desta decisão‑quadro, a autoridade do Estado de execução deve, em princípio, reconhecer e executar a referida decisão.

44      Esta conclusão é corroborada pela análise do contexto em que se insere o artigo 5.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2005/214. Com efeito, por um lado, resulta da redação do artigo 7.o, n.o 1, desta decisão‑quadro que os motivos para o não reconhecimento e a não execução são expressamente previstos por esta. Por outro lado, nos termos do artigo 7.o, n.o 3, da referida decisão‑quadro, nos casos referidos no seu artigo 7.o, n.o 1, a autoridade competente do Estado‑Membro de execução deve, antes de decidir pelo não reconhecimento e pela não execução da decisão, consultar, por todos os meios apropriados, a autoridade competente do Estado de emissão e solicitar‑lhe, sempre que adequado, a rápida prestação de todas as informações necessárias.

45      Por outro lado, uma interpretação do artigo 5.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2005/214 que permita à autoridade do Estado de execução proceder à sua própria qualificação da infração em causa à luz do seu direito nacional seria contrária ao princípio da confiança mútua em que esta decisão‑quadro assenta e que reveste uma importância fundamental no direito da União, bem como às exigências relacionadas com o bom funcionamento e com a eficácia do sistema de assistência mútua estabelecido pela referida decisão‑quadro.

46      No caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio duvida que a infração cometida por LU possa integrar a categoria das infrações referidas no artigo 5.o, n.o 1, trigésimo terceiro travessão, da Decisão‑Quadro 2005/214. Em especial, esse órgão jurisdicional considera que a autoridade do Estado‑Membro de emissão procedeu a uma interpretação demasiado ampla da referida categoria, a qual não pode incluir as infrações que apenas têm uma ligação indireta com a segurança rodoviária e que, como a que está em causa no processo principal, constituem mais uma recusa do cumprimento de uma ordem da autoridade do que uma «conduta que infrinja o código da estrada».

47      Todavia, resulta das informações de que dispõe o Tribunal de Justiça, por um lado, que a autoridade do Estado‑Membro de emissão qualificou, com base no artigo 103.o, n.o 2, da KFG 1967, a infração em causa no processo principal de conduta que infringe o código da estrada, na aceção do artigo 5.o, n.o 1, trigésimo terceiro travessão, da Decisão‑Quadro 2005/214.

48      Por outro lado, a decisão de reenvio, em primeiro lugar, não fornece nenhum elemento que permita considerar que a certidão prevista no artigo 4.o da Decisão‑Quadro 2005/214 não corresponde manifestamente à decisão sancionatória da infração rodoviária cometida em 28 de dezembro de 2017 e, em segundo lugar, limita‑se a indicar que a autoridade de emissão procedeu a uma interpretação demasiado ampla da categoria de infrações que figuram no artigo 5.o, n.o 1, trigésimo terceiro travessão, desta decisão‑quadro. Assim, não parece que o caso em apreço esteja abrangido por uma das hipóteses previstas no artigo 7.o, n.o 1, da referida decisão‑quadro, nas quais as autoridades do Estado de execução podem recusar o reconhecimento e a execução da decisão sancionatória.

49      Nestas condições, a autoridade do Estado‑Membro de execução não pode recusar o reconhecimento e a execução da decisão sancionatória que lhe foi transmitida.

50      Todavia, importa recordar que, em conformidade com o artigo 20.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2005/214, a autoridade competente do Estado‑Membro de execução, quando a certidão prevista no artigo 4.o levanta a suspeita de que direitos fundamentais ou princípios jurídicos fundamentais consagrados no artigo 6.o TUE foram violados, pode opor‑se ao reconhecimento e à execução da decisão. Neste caso, antes, deve pedir à autoridade do Estado‑Membro de emissão todas as informações necessárias, em conformidade com o artigo 7.o, n.o 3, desta decisão‑quadro. A fim de assegurar o efeito útil da referida decisão‑quadro e, nomeadamente, o respeito dos direitos fundamentais, a autoridade do Estado‑Membro de emissão deve fornecer essas informações [v., neste sentido, Acórdão de 5 de dezembro de 2019, Centraal Justitieel Incassobureau (Reconhecimento e execução de sanções pecuniárias), C‑671/18, EU:C:2019:1054, n.os 44 e 45].

51      Tendo em conta todas as considerações precedentes, importa responder às questões submetidas que o artigo 5.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2005/214 deve ser interpretado no sentido de que a autoridade do Estado de execução, nas situações em que não está em causa um dos motivos expressamente previstos por esta decisão‑quadro para o não reconhecimento ou a não execução, não pode, em princípio, recusar o reconhecimento e a execução de uma decisão que aplica, a título definitivo, uma sanção pecuniária quando a autoridade do Estado de emissão tiver qualificado a infração em causa, na certidão prevista no artigo 4.o da referida decisão‑quadro, de infração abrangida por uma das categorias de infrações relativamente às quais o artigo 5.o, n.o 1, não prevê a verificação da dupla incriminação do ato.

 Quanto às despesas

52      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

O artigo 5.o, n.o 1, da DecisãoQuadro 2005/214/JAI do Conselho, de 24 de fevereiro de 2005, relativa à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às sanções pecuniárias, conforme alterada pela DecisãoQuadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, deve ser interpretado no sentido de que a autoridade do Estado de execução, nas situações em que não está em causa um dos motivos expressamente previstos por esta decisãoquadro para o não reconhecimento ou a não execução, não pode, em princípio, recusar o reconhecimento e a execução de uma decisão que aplica, a título definitivo, uma sanção pecuniária quando a autoridade do Estado de emissão tiver qualificado a infração em causa, na certidão prevista no artigo 4.o da referida decisãoquadro, de infração abrangida por uma das categorias de infrações relativamente às quais o artigo 5.o, n.o 1, não prevê a verificação da dupla incriminação do ato.

Assinaturas


*      Língua do processo: húngaro.