Language of document : ECLI:EU:C:2024:231

Processo C516/22

Comissão Europeia

contra

Reino Unido da GrãBretanha e da Irlanda do Norte

 Acórdão do Tribunal de Justiça (Quinta Secção) de 14 de março de 2024

«Incumprimento de Estado — Processo à revelia — Acordo sobre a Saída do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica — Artigo 127.°, n.° 1 — Período de transição — Competência do Tribunal de Justiça — Acórdão da Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) — Execução de uma sentença arbitral que concede direito ao pagamento de uma indemnização — Decisão da Comissão Europeia que declara que esse pagamento constitui um auxílio estatal incompatível com o mercado interno — Artigo 4.°, n.° 3, TUE — Cooperação leal — Obrigação de suspender a instância — Artigo 351.°, primeiro parágrafo, TFUE — Convenção internacional concluída entre Estados‑Membros e Estados terceiros antes da data da sua adesão à União — Convenção para a Resolução de Diferendos Relativos a Investimentos entre Estados e Nacionais de Outros Estados (CIRDI) — Aplicação do direito da União — Artigo 267.° TFUE — Órgão jurisdicional nacional que decide em última instância — Obrigação de submeter um pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça — Artigo 108, n.° 3, do TFUE — Suspensão da execução do auxílio»

1.        Ação por incumprimento — Competência do Tribunal de Justiça — Ação intentada contra um EstadoMembro que se retirou da União Europeia — Acordo sobre a Saída do Reino Unido — Artigo 87.° — Competência do Tribunal de Justiça para apreciar ações por incumprimento contra o Reino Unido intentadas depois do termo do período de transição — Requisitos — Incumprimento alegado anterior ao termo do período de transição — Ação intentada durante um período delimitado

[Acordo sobre a Saída do Reino Unido da GrãBretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica, artigos 2.°, alínea e), 87.°, n.° 1, 126.°, 127.º e 185.°; artigo 258.° TFUE]

(cf. n.os 50, 51, 53)

2.        Acordos internacionais — Acordos dos EstadosMembros — Acordos anteriores à adesão à União de um EstadoMembro — Proibição de prejudicar os direitos e obrigações resultantes dos referidos acordos — Requisitos — Existência de obrigações exigíveis por Estados terceiros — Competência do juiz da União para apreciar a existência dessas obrigações — Obrigação de um EstadoMembro executar uma sentença arbitral — Interpretação errada por um órgão jurisdicional nacional do direito da União — Incumprimento

[Acordo sobre a Saída do Reino Unido da GrãBretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica, artigo 27.°, n.° 1; artigos 258.° e 351.°, primeiro parágrafo TFUE]

(cf. n.os 59‑65, 68‑87, 119‑128, disp. 1)

3.        EstadosMembros — Obrigações — Obrigação de cooperação leal — Execução do direito da União — Obrigações dos órgãos jurisdicionais nacionais — Obrigação de um órgão jurisdicional nacional suspender a instância em caso de risco de conflito entre a sua decisão e as decisões das instituições da União — Obrigação de suspender a instância — Incumprimento

[Acordo sobre a Saída do Reino Unido da GrãBretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica, artigo 127.°, n.° 1; artigo 4.°, n.° 3, TUE; artigo 258.° TFUE]

(cf. n.os 94‑98, 104, 116, 117, disp. 1)

4.        Questões prejudiciais — Recurso ao Tribunal de Justiça — Questões de interpretação — Obrigação de reenvio — Alcance — Obrigação de reenvio em caso de dúvida razoável — Órgão jurisdicional nacional que concluiu pela inexistência de dúvida razoável — Risco de interpretação errada do direito da União por um órgão jurisdicional que profere uma decisão não suscetível de recurso judicial no direito interno — Incumprimento

[Acordo sobre a Saída do Reino Unido da GrãBretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica, artigo 127.°, n.° 1; artigos 258.° e 267.º, primeiro e terceiro parágrafos, TFUE]

(cf. n.os 141‑144, 146‑154, disp. 1)

5.        Auxílios concedidos pelos Estados — Competências respetivas da Comissão e dos órgãos jurisdicionais nacionais — Papel dos órgãos jurisdicionais nacionais — Obrigação de os órgãos jurisdicionais nacionais se absterem de tomar decisões que vão contra uma decisão da Comissão — Violação desta obrigação por um órgão jurisdicional nacional — Incumprimento

[Acordo sobre a Saída do Reino Unido da GrãBretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica, artigo 127.°, n.° 1; artigo 4.°, n.° 3, TUE; artigos 108.°, n.° 3 e 258.° TFUE]

(cf. n.os 159‑165, 168‑171, disp. 1)

Resumo

Chamado a pronunciar‑se sobre uma ação por incumprimento, o Tribunal de Justiça declara, num acórdão proferido à revelia, na falta de contestação, que, por um acórdão da Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido), o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte não cumpriu as obrigações que lhe incumbiam durante o período de transição na sequência da entrada em vigor do Acordo sobre a Saída do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica (1).

Pronuncia‑se sobre a questão inédita de saber se a execução, por um Estado‑Membro, de uma sentença arbitral proferida relativamente a outro Estado‑Membro ao abrigo das disposições da Convenção para a Resolução de Diferendos Relativos a Investimentos entre Estados e Nacionais de Outros Estados (2), celebrada pela maioria dos Estados‑Membros que nela são partes antes da sua adesão à União e constitui, portanto, para estes uma convenção internacional anterior, na aceção do artigo 351.°, primeiro parágrafo, TFUE, implica que esses Estados‑Membros estão vinculados a «obrigações» perante Estados terceiros que tenham celebrado essa convenção, de modo que estes últimos retiram dela «direitos» correlativos que seriam «prejudicados» pelas disposições dos Tratados.

A Convenção CIRDI entrou em vigor em relação ao Reino Unido e à Roménia antes da sua adesão à União. Prevê que cada Estado Contratante reconhecerá a obrigatoriedade da sentença dada em conformidade com esta Convenção e assegurará a execução no seu território das obrigações pecuniárias impostas por essa sentença como se fosse uma decisão final de um tribunal desse Estado (3). Em 2002, o Reino da Suécia e a Roménia tinham celebrado um Tratado Bilateral de Investimento (4) que prevê que cada parte contratante garante, a todo o momento, um tratamento justo e equitativo aos investimentos dos investidores da outra parte contratante e não cria obstáculos, através de medidas arbitrárias ou discriminatórias, à administração, gestão, manutenção, utilização, gozo ou cessão dos referidos investimentos pelos mencionados investidores (5).

Tendo em vista a sua adesão à União Europeia, a Roménia revogou um regime regional de auxílio ao investimento sob a forma de incentivos fiscais. Investidores suecos alegadamente lesados obtiveram então de um tribunal arbitral, constituído ao abrigo da Convenção CIRDI, uma sentença arbitral que condenou a Roménia a pagar‑lhes, a título de indemnização, o montante de 178 milhões de euros e procuraram obter o seu reconhecimento e execução, nomeadamente no Reino Unido.

Após ter ordenado à Roménia que suspendesse a execução dessa sentença arbitral, pelo facto de essa ação parecer constituir um auxílio de Estado ilegal, a Comissão Europeia adotou, em 2014, uma decisão de dar início a um procedimento formal de investigação (a seguir «decisão de dar início ao procedimento») (6). Em 2015, adotou uma nova decisão, mediante a qual, após ter declarado que o artigo 351.° TFUE não era aplicável ao caso em apreço, uma vez que o TBI é um tratado celebrado entre dois Estados‑Membros da União, e embora nenhum Estado terceiro que tivesse assinado a Convenção CIRDI fosse objeto do processo em causa, considerou que o pagamento da indemnização concedida pela sentença arbitral constituía um «auxílio de Estado» incompatível com o mercado interno (7) que a Roménia não devia pagar (a seguir «decisão final»).

Em 2019, o Tribunal Geral anulou a decisão final (8), pelo facto de, em substância, a Comissão não ser competente ratione temporis para a adotar ao abrigo do artigo 108.° TFUE (a seguir «acórdão do Tribunal Geral»). Este acórdão foi objeto de recurso para o Tribunal de Justiça. Antes de o Tribunal de Justiça ter podido pronunciar‑se sobre este recurso, o Supremo Tribunal do Reino Unido ordenou, em 19 de fevereiro de 2020, no processo Micula contra Roménia (a seguir «acórdão em causa»), a execução da sentença arbitral. Através do Acórdão Comissão/European Food e o (9)., o Tribunal de Justiça anulou o acórdão do Tribunal Geral e devolveu‑lhe o processo.

No termo de um procedimento pré‑contencioso iniciado em dezembro de 2020, a Comissão intentou uma ação por incumprimento, nos termos do artigo 258.° TFUE, destinada a obter a declaração de que, com o acórdão em causa, o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte não tinha cumprido as obrigações que lhe incumbem por força do direito da União.

Apreciação do Tribunal de Justiça

Num primeiro momento, o Tribunal de Justiça recorda que, nos termos por Acordo de Saída (10), é competente para conhecer das ações por incumprimento, no prazo de quatro anos após o termo do período de transição, que ocorreu em 31 de dezembro de 2020 (a seguir «período de transição»), quando considere que o Reino Unido não cumpriu uma obrigação que lhe incumbia por força dos Tratados antes do termo desse último período. No caso em apreço, uma vez que o incumprimento imputado ao Reino Unido resulta do acórdão em causa proferido durante o período de transição, e que essa ação foi intentada pela Comissão no prazo de quatro anos após o termo desse período de transição, o Tribunal de Justiça é competente para conhecer da referida ação.

Num segundo momento, examina e julga procedentes os quatro fundamentos invocados pela Comissão em apoio da sua ação por incumprimento. Para o efeito, salienta, antes de mais, que o Reino Unido, mesmo que o incumprimento que lhe é imputado seja posterior à sua saída da União, sendo anterior ao termo do período de transição, deve ser considerado um «Estado‑Membro» e que, por outro lado, o direito da União lhe era aplicável durante esse período.

i) Quanto ao fundamento relativo a uma violação do artigo 351.° TFUE

O Tribunal de Justiça constata, em primeiro lugar, que está demonstrado que a Convenção CIRDI, que não faz parte do direito da União, é um tratado multilateral que foi celebrado pelo Reino Unido antes da sua adesão à União tanto com Estados‑Membros como com Estados terceiros e que, por conseguinte, esta convenção internacional é suscetível de estar abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 351.° TFUE, que prevê, nomeadamente, que os direitos e obrigações decorrentes das convenções celebradas antes da adesão não são prejudicados pelo direito da União.

No entanto, o simples facto de uma convenção internacional anterior ter sido celebrada por um Estado‑Membro com Estados terceiros não basta para desencadear a aplicação desta disposição. Essas convenções internacionais só podem ser invocadas nas relações entre os Estados‑Membros quando esses Estados terceiros delas retiram direitos cujo respeito podem exigir do Estado‑Membro em causa.

Em segundo lugar, o Tribunal de Justiça examina se a Convenção CIRDI impõe ao Reino Unido obrigações a que este último esteja obrigado perante Estados terceiros e que estes podem invocar perante o Reino Unido. A este respeito, o Tribunal de Justiça recorda que um tribunal arbitral constituído no âmbito da Convenção CIRDI, em aplicação da cláusula de arbitragem prevista no TBI celebrado entre o Reino da Suécia e a Roménia antes da adesão desta à União, condenou a Roménia a pagar uma indemnização aos investidores suecos. Ora, o TBI deve, desde a adesão da Roménia à União, ser considerado um tratado que diz respeito a dois Estados‑Membros.

No caso em apreço, o litígio submetido ao Supremo Tribunal do Reino Unido dizia respeito à alegada obrigação, do Reino Unido, de dar cumprimento às disposições da Convenção CIRDI, em relação ao Reino da Suécia e aos seus nacionais e, correlativamente, ao pretenso direito destes últimos de exigirem do Reino Unido o respeito das mesmas.

Em contrapartida, o Tribunal de Justiça constata que um Estado terceiro não parece ter o direito de exigir do Reino Unido, ao abrigo da Convenção CIRDI, a execução da sentença arbitral. Com efeito, esta convenção internacional, apesar do seu caráter multilateral, tem por objeto regular relações bilaterais entre as partes contratantes de um modo análogo a um tratado bilateral. A este respeito, observa que o Supremo Tribunal do Reino Unido se limita, no essencial, a salientar que os Estados terceiros que celebraram a Convenção CIRDI podem ter interesse em que o Reino Unido respeite as suas obrigações para com outro Estado‑Membro, procedendo à execução de uma decisão arbitral. Ora, um interesse puramente factual dessa natureza não pode ser assimilado a um «direito», na aceção do artigo 351.° TFUE, suscetível de justificar a sua aplicação.

No entanto, no acórdão em causa, o Supremo Tribunal do Reino Unido não examinou a questão fundamental de saber em que medida um Estado terceiro podia despoletar a responsabilidade internacional do Reino Unido pela violação das obrigações que lhe incumbem por força dessa convenção no âmbito da execução de uma sentença arbitral proferida no termo de um litígio entre os Estados‑Membros.

Ora, o Tribunal de Justiça sublinha que o artigo 351.° TFUE constitui uma norma que pode permitir derrogações à aplicação do direito da União, incluindo do direito primário. Esta disposição é, assim, suscetível de ter uma incidência considerável na ordem jurídica da União, uma vez que permite derrogar o princípio do primado do direito da União. Neste contexto, a seguir‑se o acórdão em causa, todos os Estados‑Membros que celebraram a Convenção CIRDI antes da sua adesão à União poderiam, baseando‑se neste artigo 351.°, subtrair litígios relativos ao direito da União ao sistema jurisdicional da União, confiando‑os aos tribunais arbitrais. No entanto, o Tribunal de Justiça recorda que o sistema das vias de recurso jurisdicionais previsto pelos Tratados se substituiu aos procedimentos de arbitragem estabelecidos entre os Estados‑Membros. Por conseguinte, o artigo 351.° TFUE deve ser objeto de interpretação estrita, para que as normas gerais previstas pelos Tratados da União não sejam esvaziadas da sua substância.

Nestas condições, Supremo Tribunal do Reino Unido estava obrigado, antes de se pronunciar, a examinar de forma aprofundada se essa obrigação implica direitos que Estados terceiros pudessem invocar em relação a estes. Ora, essa análise aprofundada não existe no acórdão em causa, pelo que este interpretou e aplicou erradamente esta disposição ao conferir‑lhe um alcance amplo cujo objeto e efeito são excluir deliberadamente a aplicação de todo o direito da União. Essa interpretação, que leva a afastar o princípio do primado do direito da União, que é uma das características essenciais deste, é suscetível de pôr em causa a coerência, o pleno efeito e a autonomia do direito da União, bem como, em última instância, o caráter adequado do direito instituído pelos Tratados. Assim, o Supremo Tribunal do Reino Unido violou de forma grave a ordem jurídica da União.

ii) Quanto ao fundamento relativo a uma violação do artigo 4.° TUE

Em primeiro lugar, o Tribunal de Justiça salienta que quando a solução do litígio depende da validade da decisão da Comissão, resulta da obrigação de cooperação leal enunciada no artigo 4.° TUE que o órgão jurisdicional nacional deve suspender a instância até que uma decisão definitiva sobre o recurso de anulação seja proferida pelos órgãos jurisdicionais da União, salvo se considerar que, nas circunstâncias do litígio, se justifica apresentar uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça relativa à validade da decisão da Comissão.

Ora, no caso em apreço, os processos pendentes nas instituições da União e no Supremo Tribunal do Reino Unido incidiam sobre a mesma questão, diziam respeito à interpretação das mesmas disposições e tinham por objeto a validade ou a efetividade das decisões adotadas pela Comissão. Assim, no momento em que o Supremo Tribunal do Reino Unido proferiu o acórdão em causa, a questão da incidência do artigo 351.° TFUE na aplicação do direito da União era objeto de um exame provisório pela Comissão e podia ainda ser apreciada pelo juiz da União. Nestas condições, existia um risco de decisões contraditórias. Este risco concretizou‑se, de resto, uma vez que a decisão de dar início ao procedimento, à semelhança da decisão final, cuja legalidade estava sujeita a recurso na data em que esse acórdão foi proferido, tinha concluído de forma totalmente oposta em relação ao acórdão em causa.

Em segundo lugar, o Tribunal de Justiça considera que esta conclusão não é suscetível de ser posta em causa pelos fundamentos apresentados pelo Supremo Tribunal do Reino Unido para afastar a aplicação do princípio da cooperação leal.

No que respeita ao fundamento segundo o qual as questões relativas à existência e ao alcance das obrigações resultantes de convenções internacionais anteriores não estão reservadas aos órgãos jurisdicionais da União, ou até escapam à sua competência, o Tribunal de Justiça precisa que a obrigação de cooperação leal que incumbe aos órgãos jurisdicionais nacionais pressupõe que uma mesma questão possa ser da competência concorrente dos órgãos jurisdicionais da União e dos órgãos jurisdicionais nacionais, pelo que existe um risco de decisões contraditórias.

Ora, a questão que se encontrava submetida, no caso em apreço, simultaneamente ao Supremo Tribunal do Reino Unido e à Comissão, bem como aos órgãos jurisdicionais da União, era relativa ao alcance do artigo 351.° TFUE, que é uma disposição do direito da União. A sua interpretação definitiva é, portanto, da competência exclusiva do Tribunal de Justiça. O Tribunal de Justiça sublinha que este artigo não contém nenhuma remissão para o direito dos Estados‑Membros ou para o direito internacional, pelo que as suas expressões devem ser consideradas conceitos autónomos do direito da União. Daqui resulta que os órgãos jurisdicionais da União são competentes para determinar se a Convenção CIRDI impõe obrigações cujo respeito um Estado terceiro tem o direito de exigir e se esses direitos e obrigações são afetados pelos Tratados da União. É esse o caso, no âmbito de um recurso de anulação, de uma ação por incumprimento ou mesmo de um reenvio prejudicial. Neste último caso, a competência do juiz nacional não pode privar o Tribunal de Justiça da sua competência para examinar essas mesmas questões. Menos ainda quando a aplicação do artigo 351.° TFUE a essa convenção internacional é suscetível de ter uma incidência determinante no resultado de um recurso direto paralelo, destinado a obter a anulação de uma decisão final da Comissão.

Com efeito, uma vez que o juiz da União é chamado a pronunciar‑se sobre a validade de um ato do direito da União, está em conformidade com a repartição de funções entre os juízes nacionais e o juiz da União que só o Tribunal de Justiça seja competente para interpretar a convenção internacional anterior pertinente para determinar se o artigo 351.° TFUE obsta ou não à aplicação do direito da União pelo referido ato, sendo o Tribunal de Justiça exclusivamente competente para declarar a invalidade de um ato da União.

iii) Quanto ao fundamento relativo a uma violação do artigo 267.° TFUE

O Tribunal de Justiça constata, primeiro, que a questão do alcance do artigo 351.° TFUE, nas circunstâncias do presente processo, é uma questão inédita na jurisprudência do Tribunal de Justiça e que o alcance da expressão «as disposições dos Tratados não prejudicam», que figura nesse mesmo artigo, ainda não foi precisado pelo Tribunal de Justiça. Ora, este artigo é suscetível de exercer uma incidência considerável na ordem jurídica da União.

Segundo, na decisão de dar início ao procedimento e na decisão final, a Comissão adotou uma interpretação do artigo 351.° TFUE que está em contradição com a adotada pelo Supremo Tribunal do Reino Unido no acórdão em causa. Esta interpretação é, por outro lado, posta em causa pelos investidores em apoio do seu recurso no Tribunal Geral destinado a obter a anulação da decisão final. Tendo em conta o recurso interposto desse acórdão no Tribunal de Justiça, a questão da incidência do artigo 351.° TFUE na execução da sentença arbitral continua, assim, pendente nos órgãos jurisdicionais da União.

Terceiro, tanto a High Court of England and Wales (Tribunal Superior de Justiça de Inglaterra e País de Gales) como a Court of Appeal (Tribunal de Recurso), chamadas previamente a pronunciar‑se pelos investidores, recusaram pronunciar‑se sobre a questão da aplicação do artigo 351.° TFUE, pelo facto de existir um risco de decisões contraditórias.

Quarto, o Tribunal de Justiça salienta que o Nacka tingsrätt (Tribunal de Primeira Instância de Nacka, Suécia) declarou que o artigo 351.° TFUE não se aplicava à execução da sentença arbitral e, por conseguinte, tinha recusado executar essa sentença na Suécia.

Quinto, a questão da execução da sentença arbitral estava pendente nos órgãos jurisdicionais belgas no momento em que o Supremo Tribunal do Reino Unido decidiu.

À luz destas constatações, o Tribunal de Justiça conclui que existiam, no caso em apreço, elementos suficientes passíveis de suscitar dúvidas quanto à interpretação do artigo 351.° TFUE. Estas dúvidas, tendo em conta a incidência desta disposição numa das características essenciais do direito da União e o risco de decisões contraditórias na União, deveriam ter levado o Supremo Tribunal do Reino Unido a considerar que a interpretação da referida disposição não se impunha com uma evidência tal que não desse lugar a nenhuma dúvida razoável.

Nestas condições, considera que incumbia ao Supremo Tribunal do Reino Unido, enquanto órgão jurisdicional nacional cujas decisões não são suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, interrogar o Tribunal de Justiça através de um reenvio prejudicial sobre a interpretação do artigo 351.° TFUE, a fim de afastar o risco de uma interpretação errada do direito da União, a que acabou por chegar efetivamente no acórdão em causa.

iv) Quanto ao fundamento relativo a uma violação do artigo 108.° TFUE

O Tribunal de Justiça declara que o acórdão em causa exige que a Roménia proceda ao pagamento da indemnização atribuída por essa sentença arbitral em violação da obrigação, enunciada no artigo 108.° TFUE, de não executar um projeto de auxílio antes de a Comissão ter adotado uma decisão final. A Roménia encontra‑se, assim, confrontada com decisões contraditórias no que respeita à execução da referida sentença. Por conseguinte, ao ordenar a um outro Estado‑Membro que a infrinja, o acórdão em causa viola esta disposição.

A este respeito, é irrelevante que o artigo referido preveja uma obrigação a cargo do «Estado‑Membro em causa», a saber, no caso em apreço, a Roménia. Com efeito, a obrigação de cooperação leal impunha aos órgãos jurisdicionais nacionais do Reino Unido que facilitassem o cumprimento pela Roménia das obrigações que lhe incumbiam por força do artigo 108.° TFUE, sob pena de privar esta disposição do seu efeito útil.


1      Acordo sobre a Saída do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica (a seguir «Acordo de Saída»), adotado em 17 de outubro de 2019, aprovado em nome da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica (CEEA) pela Decisão (UE) 2020/135 do Conselho, de 30 de janeiro de 2020 (JO 2020, L 29, p. 1), que entrou em vigor em 1 de fevereiro de 2020.


2      Convenção para a Resolução de Diferendos Relativos a Investimentos entre Estados e Nacionais de Outros Estados, celebrada em Washington em 18 de março de 1965 (a seguir «Convenção CIRDI»).


3       Artigo 54.°, n.° 1, da Convenção CIRDI.


4      Tratado Bilateral de Investimento, celebrado em 29 de maio de 2002, entre o Governo do Reino da Suécia e o Governo Romeno para a Promoção e a Proteção Recíproca dos Investimentos (a seguir «TBI»), que entrou em vigor em 1 de abril de 2003.


5      Artigo 2.°, n.° 3 do TBI.


6      Nos termos do artigo 108.°, n.° 2, TFUE.


7      V. artigo 107.°, n.° 1, TFUE.


8      Acórdão de 18 de junho de 2019, European Food e o./Comissão (T‑624/15, T‑694/15 e T‑704/15, EU:T:2019:423).


9      Acórdão de 25 de janeiro de 2022, Comissão/European Food e o. (C‑638/19 P, EU:C:2022:50).


10      Artigo 87.°, n.° 1, do Acordo de Saída.