Language of document : ECLI:EU:C:2024:310

Edição provisória

CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

JULIANE KOKOTT

apresentadas em 11 de abril de 2024 (1)

Processo C709/22

Syndyk Masy Upadłości A

contra

Dyrektor Izby Administracji Skarbowej we Wrocławiu,

Interveniente:

Rzecznik Małych i Średnich Przedsiębiorców

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Wojewódzki Sąd Administracyjny we Wrocławiu (Tribunal Administrativo do Voivodato de Wrocław, Polónia)]

«Reenvio prejudicial — Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado — Diretiva 2006/112/CE — Combate à fraude ao IVA — Medida especial — Mecanismo do pagamento fracionado — Conta de IVA do sujeito passivo insolvente — Transferência dos fundos acumulados na conta de IVA a pedido do administrador da massa insolvente — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 17.°, n.° 1 — Direito fundamental de propriedade — Artigo 51.°, n.° 1 — Aplicação do direito da União»






I.      Introdução

1.        Em 2019, a Polónia instituiu um mecanismo especial para o «fracionamento de pagamentos» (a seguir «medida especial»), a fim de melhor combater a fraude ao IVA. Este mecanismo prevê, no que respeita a certas entregas e prestações de serviços, que o preço devido nos termos do direito civil é pago em duas contas separadas. Enquanto o preço líquido é pago numa conta normal do sujeito passivo, o fornecedor ou prestador de serviços (a seguir «sujeito passivo»), o IVA é transferido para uma conta de IVA separada do sujeito passivo, que só pode ser utilizada para pagar dívidas fiscais.

2.        O presente pedido de decisão prejudicial incide sobre os efeitos desta medida especial na insolvência do sujeito passivo: As autoridades fiscais podem recusar o acesso do administrador da massa insolvente aos fundos na conta de IVA do sujeito passivo insolvente?

3.        Isso deveria ser rejeitado se a medida especial já fosse fundamentalmente incompatível com o direito da União, em especial com as disposições da Diretiva 2006/112/CE relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (a seguir «Diretiva IVA») (2). Ora, a recusa de acesso à conta seria igualmente incompatível com o direito da União se interferisse de forma desproporcionada com o direito fundamental de propriedade do sujeito passivo, nos termos do artigo 17.°, n.° 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»). No entanto, tal pressupõe, por sua vez, que a medida especial constitua uma aplicação do direito da União, na aceção do artigo 51.°, n.° 1, da Carta.

4.        Importa igualmente esclarecer se o direito da União impõe exigências no que respeita à graduação dos créditos de IVA na insolvência do sujeito passivo. O acesso prioritário do Estado poderia resultar do facto de o IVA cobrado pelo sujeito passivo ao consumidor dever, em primeiro lugar, ser transferido para o Estado e não beneficiar os outros credores do sujeito passivo.

II.    Quadro jurídico

A.      Direito da União

1.      Diretiva IVA

5.        O artigo 168.°, alínea a), da Diretiva IVA diz respeito à dedução do IVA a montante e tem a seguinte redação:

«Quando os bens e os serviços sejam utilizados para os fins das suas operações tributadas, o sujeito passivo tem direito, no Estado‑Membro em que efetua essas operações, a deduzir do montante do imposto de que é devedor os montantes seguintes:

a)      O IVA devido ou pago nesse Estado‑Membro em relação aos bens que lhe tenham sido ou venham a ser entregues e em relação aos serviços que lhe tenham sido ou venham a ser prestados por outro sujeito passivo;»

6.        O artigo 206.° da Diretiva IVA diz respeito ao pagamento do IVA:

«Os sujeitos passivos que sejam devedores do imposto devem pagar o montante líquido do IVA no momento da apresentação da declaração de IVA prevista no artigo 250.° Contudo, os Estados‑Membros podem fixar outro prazo para o pagamento desse montante ou cobrar adiantamentos provisórios.»

7.        De acordo com o artigo 226.° da Diretiva IVA, as faturas emitidas apenas devem conter determinadas menções enumeradas. Onde não se inclui a referência ao pagamento do IVA numa conta de IVA separada.

8.        Em conformidade com o primeiro parágrafo do artigo 273.° da Diretiva IVA, os Estados‑Membros podem prever outras obrigações que considerem necessárias para garantir a cobrança exata do IVA e para evitar a fraude, sob reserva da observância da igualdade de tratamento das operações internas e das operações efetuadas entre Estados‑Membros por sujeitos passivos, e na condição de essas obrigações não darem origem, nas trocas comerciais entre Estados‑Membros, a formalidades relacionadas com a passagem de uma fronteira.

9.        O artigo 395.°, n.° 1, da Diretiva IVA diz respeito à autorização para introduzir medidas especiais:

«1.      O Conselho, deliberando por unanimidade sob proposta da Comissão, pode autorizar os Estados‑Membros a introduzirem medidas especiais derrogatórias da presente diretiva para simplificar a cobrança do imposto ou para evitar certas fraudes ou evasões fiscais.

As medidas destinadas a simplificar a cobrança do imposto não podem influir, a não ser de modo insignificante, no montante global da receita fiscal do Estado‑Membro cobrada na fase de consumo final.»

2.      Regulamento 2015/848

10.      O artigo 7.° do Regulamento (UE) 2015/848 relativo aos processos de insolvência (a seguir «Regulamento 2015/848») (3) regula a lei aplicável ao processo de insolvência e aos seus efeitos:

«1.      Salvo disposição em contrário do presente regulamento, a lei aplicável ao processo de insolvência e aos seus efeitos é a lei do Estado‑Membro em cujo território é aberto o processo (“Estado de abertura do processo”).

2.      A lei do Estado de abertura do processo determina as condições de abertura, tramitação e encerramento do processo de insolvência. A lei do Estado de abertura do processo determina, nomeadamente:

[...]

i)      As regras de distribuição do produto da liquidação dos bens, a graduação dos créditos e os direitos dos credores que tenham sido parcialmente satisfeitos após a abertura do processo de insolvência, em virtude de um direito real ou por efeito de uma compensação; [...]»

3.      Decisão de Execução 2019/310

11.      Os considerandos 1 e 3 a 5 da Decisão de Execução (UE) 2019/310 que autoriza a Polónia a aplicar uma medida especial em derrogação do artigo 226.° da Diretiva 2006/112/CE relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (a seguir «Decisão de Execução 2019/310») (4), explicam o contexto da medida:

«(1) Por ofício registado na Comissão em 15 de maio de 2018, a Polónia solicitou uma autorização para introduzir uma medida especial em derrogação ao artigo 226.° da Diretiva 2006/112/CE, a fim de aplicar um mecanismo de pagamento fracionado (a seguir designada “medida especial”). A medida especial deverá implicar a inclusão de uma declaração especial de que o imposto sobre o valor acrescentado (IVA) tem de ser pago por depósito na conta de IVA bloqueada do fornecedor ou do prestador no que diz respeito às faturas emitidas em relação aos fornecimentos de bens e às prestações de serviços que são suscetíveis de fraude e que, de um modo geral, se encontram abrangidos pelo mecanismo de autoliquidação e pela responsabilidade solidária na Polónia. [...]

(3) A Polónia já tomou várias medidas para combater a fraude. Entre outras, a Polónia introduziu o mecanismo de autoliquidação e a responsabilidade solidária do fornecedor e do cliente, o Ficheiro de Auditoria Normalizado, regras mais rigorosas para o registo do IVA e o cancelamento do registo dos sujeitos passivos, o aumento do número de auditorias. Contudo, a Polónia considera que estas soluções são insuficientes para prevenir a fraude no domínio do IVA.

(4) A Polónia acredita que a aplicação da medida especial irá eliminar a fraude no domínio do IVA. Uma vez que, ao abrigo do mecanismo de pagamento fracionado, o montante do IVA depositado numa conta de IVA separada de um fornecedor ou prestador (sujeito passivo) só pode ser utilizado para fins restritos — designadamente para o pagamento da dívida do IVA à autoridade fiscal ou para o pagamento do IVA sobre as faturas recebidas de fornecedores —, este sistema garante da melhor forma que as autoridades fiscais recebam o montante total do IVA que o sujeito passivo deverá transferir para o Tesouro Público da Polónia.

(5) A Polónia introduziu o mecanismo de pagamento fracionado voluntário em 1 de julho de 2018. A Polónia considera que, nos domínios particularmente expostos à fraude no domínio do IVA, deverá ser introduzida a medida especial. Estes domínios são setores económicos como o do aço, da sucata, da eletrónica, do ouro, dos metais não ferrosos, dos combustíveis e dos plásticos, que são geralmente abrangidos pelo mecanismo de autoliquidação e pela responsabilidade solidária do fornecedor e do cliente na Polónia.»

12.      O artigo 1.° da Decisão de Execução 2019/310 autoriza a medida:

«Em derrogação ao artigo 226.° da Diretiva 2006/112/CE, a Polónia é autorizada a introduzir uma declaração especial segundo a qual o IVA sobre as faturas emitidas em relação a fornecimentos e a prestações, entre sujeitos passivos, dos bens e dos serviços enumerados no anexo da presente decisão deve ser depositado na conta bancária de IVA separada e bloqueada do fornecedor ou prestador, aberta na Polónia, sempre que os pagamentos relativos aos fornecimentos ou às prestações sejam efetuados por transferência bancária eletrónica.»

B.      Direito polaco

1.      Lei do IVA

13.      O artigo 106e, n.° 1, ponto 18a, da Ustawa z 11.03.2004 r. o podatku od towarów i usług (Lei de 11 de março de 2004, relativa ao Imposto sobre Bens e Serviços, a seguir «Lei do IVA») prevê que, para as faturas cujo montante total do crédito exceda 15 000 zlótis (PLN) ou o seu contravalor expresso em moeda estrangeira, referentes a uma entrega dos bens ou prestação dos serviços referidos no anexo 15 da lei ao sujeito passivo, a fatura deve conter a expressão «mecanismo de pagamento fracionado».

14.      De acordo com o artigo 108a, n.° 1, da Lei do IVA, os sujeitos passivos que tenham recebido uma fatura com o montante do imposto indicado podem, ao efetuar o pagamento do montante resultante dessa fatura, aplicar o mecanismo de pagamento fracionado. De acordo com o artigo 108a, n.° 1a, da Lei do IVA, ao efetuar o pagamento dos bens ou serviços adquiridos, enunciados no anexo 15 da lei, documentados por fatura na qual o montante total do crédito exceda 15 000 zlótis (PLN) ou o seu contravalor expresso em moeda estrangeira, os sujeitos passivos são obrigados a aplicar o mecanismo do pagamento fracionado.

15.      Nos termos do artigo 108b, n.° 1, da Lei do IVA, o diretor da repartição de finanças concede, a pedido do sujeito passivo, autorização para transferir os fundos para uma conta do sujeito passivo ou, de acordo com o artigo 108b, n.° 5, ponto 1, da Lei do IVA, recusa essa transferência, mediante decisão, caso o sujeito passivo tenha montantes em atraso a título dos impostos e créditos.

2.      Lei relativa ao Direito Bancário

16.      De acordo com o artigo 62b, n.° 2, ponto 2, alínea a), da Lei relativa ao Direito Bancário, a conta de IVA só pode ser debitada para efeitos de pagamento de contribuições aí previstos à administração fiscal, nomeadamente, do imposto sobre o valor acrescentado, do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, do imposto especial de consumo e dos direitos aduaneiros.

III. Matéria de facto e pedido de decisão prejudicial

17.      A medida especial introduzida pela Polónia abrange a entrega de determinados bens ou a prestação de determinados serviços pagos por transferência bancária eletrónica. A este respeito, o sujeito passivo deve ter uma conta de IVA separada e bloqueada aberta na Polónia. Esta conta de IVA é reservada para a cobrança do IVA pago pelos seus clientes e para o pagamento do IVA aos seus fornecedores ou prestadores de serviços, bem como para o pagamento de outros créditos de direito público da Fazenda Pública.

18.      O destinatário paga o preço líquido na conta bancária normal do sujeito passivo. Em contrapartida, transfere o IVA devido sobre a entrega ou o serviço para a conta de IVA do sujeito passivo.

19.      Em 28 de junho de 2021, a administradora da massa insolvente do sujeito passivo, contra o qual foi aberto um processo de insolvência em 30 de janeiro de 2019, solicitou à autoridade fiscal de primeira instância a transferência dos fundos acumulados na conta de IVA do sujeito passivo para a conta da massa insolvente.

20.      A autoridade fiscal de primeira instância recusou‑se a emitir a referida autorização. Afirmou que, à data da declaração de falência, o sujeito passivo tinha dívidas a título do IVA e do imposto sobre o rendimento, superiores ao montante cuja transferência para a conta bancária a administradora da massa insolvente solicitou.

21.      A objeção apresentada pela administradora da massa insolvente não foi aceite. O órgão de recurso confirmou a decisão da autoridade fiscal de primeira instância e concordou com a argumentação nela contida. A administradora da massa insolvente interpôs recurso dessa decisão.

22.      O Wojewódzki Sąd Administracyjny we Wrocławiu (Tribunal Administrativo do Voivodato de Wrocław, Polónia), competente para conhecer do recurso, suspendeu a instância e submeteu ao Tribunal de Justiça as seguintes três questões prejudiciais, no âmbito do processo de decisão prejudicial, nos termos do artigo 267.° TFUE:

1.      Devem as disposições da Decisão de Execução [2019/310], as disposições da [Diretiva IVA], em especial os artigos 395.° e 273.°, bem como o princípio da proporcionalidade e o princípio da neutralidade, ser interpretados no sentido de que se opõem a uma disposição nacional e a uma prática nacional que, nas circunstâncias do presente processo, recusam que seja dada ao administrador da massa insolvente autorização para transferir os fundos acumulados na conta de IVA do sujeito passivo (mecanismo de pagamento fracionado) para uma conta bancária por ele indicada?

2.      Deve o artigo 17.°, n.° 1, da [Carta], relativo ao direito de propriedade, em conjugação com os seus artigos 51.°, n.° 1, e 52.°, n.° 1, ser interpretado no sentido de que se opõe a uma disposição nacional e a uma prática nacional que, nas circunstâncias do presente processo, recusam que seja dada ao administrador da massa insolvente autorização para transferir os fundos acumulados na conta de IVA do sujeito passivo (mecanismo de pagamento fracionado), o que tem por consequência o congelamento de fundos que são propriedade do sujeito passivo insolvente na conta de IVA acima referida e, por conseguinte, impedir o administrador da massa insolvente de cumprir as suas obrigações no âmbito do processo de insolvência?

3.      Devem o princípio do Estado de direito, decorrente do artigo 2.° [TUE], e o princípio da segurança jurídica, que constitui a sua aplicação, o princípio da cooperação leal, decorrente do artigo 4.°, n.° 3, TUE, e o princípio da boa administração, decorrente do artigo 41.°, n.° 1, da Carta, tendo em conta o contexto e os objetivos da Decisão 2019/310 e as disposições da Diretiva IVA, ser interpretados no sentido de que se opõem a uma prática nacional que, ao recusar que seja dada ao administrador da massa autorização para transferir os fundos acumulados na conta de IVA do sujeito passivo (mecanismo de pagamento fracionado), visa anular os objetivos de um processo de insolvência definido pelo órgão jurisdicional de insolvência como sendo da competência dos órgãos jurisdicionais polacos na aceção desse artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento [2015/848], e consequentemente conduz a uma situação na qual, através da aplicação de uma medida nacional inadequada, o Skarb Państwa (Tesouro Público) é privilegiado enquanto credor em detrimento de todos os credores?

23.      No âmbito do processo no Tribunal de Justiça, o Dyrektor Izby Administracji Skarbowej we Wrocławiu (Diretor da Administração Tributária de Wrocław, Polónia), o Rzecznik Małych i Średnich Przedsiębiorców (Provedor de Justiça para as Pequenas e Médias Empresas, Polónia), a Polónia e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas. Em conformidade com o artigo 76.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, o Tribunal de Justiça decidiu não realizar audiência.

IV.    Apreciação jurídica

24.      Com as suas três questões prejudiciais, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, no essencial, saber se o direito da União se opõe a uma disposição nacional e a uma prática nacional segundo as quais é recusado ao administrador da massa insolvente o acesso aos fundos da conta de IVA do sujeito passivo, se este tiver dívidas fiscais. No seu pedido de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio exprime dúvidas fundamentais quanto à compatibilidade da medida especial com a Diretiva IVA, a Decisão de Execução 2019/310, a Carta e os princípios gerais do direito da União.

25.      Por conseguinte, examinarei, antes de mais, se e em que medida a conceção da medida especial é compatível com a Diretiva IVA (v. ponto A, infra). Em seguida, examinarei se a recusa de acesso à conta de IVA em caso de insolvência do sujeito passivo é conforme com o direito da União (v. ponto B, infra).

A.      Quanto à compatibilidade da medida especial com a Diretiva IVA

26.      O órgão jurisdicional de reenvio duvida da compatibilidade da medida especial à luz, nomeadamente, dos artigos 395.° e 273.° da Diretiva IVA (v. ponto 1, infra). Além disso, há que examinar a compatibilidade com o artigo 206.°, em conjugação com o artigo 168.°, alínea a), da Diretiva IVA (v. ponto 2, infra).

1.      Base jurídica: Artigo 395, n.° 1, da Diretiva IVA

27.      O artigo 1.° da Decisão de Execução 2019/310 autoriza a Polónia a introduzir uma declaração especial segundo a qual o IVA deve ser pago, em certos casos, numa conta de IVA separada e bloqueada. Uma vez que esta autorização constitui, nos termos do artigo 1.° da Decisão de Execução, uma derrogação ao artigo 226.° da Diretiva IVA, deve entender‑se por «declaração especial» uma menção específica relativa à entrega de bens ou à prestação de serviços específicos. Assim sendo, em derrogação do artigo 226.° da Diretiva IVA, a fatura deve igualmente indicar que o IVA é devido pelo destinatário numa conta de IVA separada do sujeito passivo.

28.      O Conselho baseou, nomeadamente, esta autorização para introduzir uma medida especial no artigo 395.°, n.° 1, da Diretiva IVA. Esta disposição prevê que o Conselho, deliberando por unanimidade sob proposta da Comissão, pode autorizar os Estados‑Membros a introduzirem medidas especiais derrogatórias da Diretiva IVA para simplificar a cobrança do imposto ou para evitar certas fraudes ou evasões fiscais. Como resulta, nomeadamente, dos considerandos da Decisão de Execução 2019/310, a introdução da medida especial visa eliminar a fraude ao IVA.

29.      Dado que os requisitos do artigo 395.°, n.° 1, da Diretiva IVA, estão, portanto, preenchidos, a compatibilidade da medida especial com o artigo 273.° da Diretiva IVA não é determinante no caso em apreço, não obstante a questão submetida a este respeito pelo órgão jurisdicional de reenvio. Em todo o caso, o artigo 395.°, n.° 1, da Diretiva IVA, constitui a base jurídica mais específica da medida especial.

30.      É igualmente duvidoso que o artigo 273.° da Diretiva IVA constitua sequer uma base jurídica adequada para a introdução da medida especial. Ao contrário do artigo 395.°, n.° 1, da Diretiva IVA, que autoriza medidas destinadas (alternativamente) a simplificar a cobrança do imposto ou a evitar certas fraudes ou evasões fiscais, o artigo 273.° da Diretiva IVA apenas permite prever obrigações adicionais para (cumulativamente) assegurar a cobrança exata do IVA e evitar a fraude. No entanto, a medida especial não visa a cobrança exata do IVA, mas apenas evitar evasões fiscais (e perdas fiscais). Além disso, a medida especial não constitui uma obrigação adicional, mas uma derrogação à Diretiva IVA. Só são, contudo, permitidas derrogações com base no artigo 395.° da Diretiva IVA.

2.      Quanto à compatibilidade com o artigo 206, em conjugação com o artigo 168, alínea a), da Diretiva IVA

31.      No entanto, a medida especial deveria igualmente ser compatível com as outras disposições da Diretiva IVA. Com efeito, ao contrário, por exemplo, da Itália (5), a Polónia solicitou apenas uma derrogação ao artigo 226.° da Diretiva IVA, que lhe foi concedida pela Decisão de Execução 2019/310.

32.      À primeira vista, pode considerar‑se que existe uma violação do artigo 206.°, em conjugação com o artigo 168.°, alínea a), da Diretiva IVA. Com efeito, o artigo 206.° da Diretiva IVA estipula que o sujeito passivo só é responsável pelo pagamento do imposto sobre as suas operações no momento da apresentação da declaração de IVA no final de um determinado período de tributação (cf. artigos 250.° e segs. da Diretiva IVA) e após dedução do imposto a montante que ele próprio pagou a outros sujeitos passivos. Por conseguinte, o IVA não é devido após cada operação tributável, mas apenas após no final do respetivo período de tributação (6). No entanto, o regulamento polaco conduz a que o sujeito passivo já não possa dispor livremente desse montante depois de o seu cliente o ter pago.

33.      Além disso, o artigo 206.° da Diretiva IVA está estreitamente ligado ao direito à dedução do IVA a montante previsto no artigo 168.°, alínea a), da Diretiva IVA. Segundo jurisprudência constante, o direito do sujeito passivo aí previsto de deduzir imediatamente do IVA que lhe é devido o IVA devido ou pago em relação aos bens adquiridos e aos serviços que lhe foram prestados a montante constitui um princípio fundamental do sistema comum do IVA instituído pela legislação da União (7). O adiantamento do IVA, que, na realidade, não deve onerar o operador sujeito passivo, deve, portanto, ser reduzido ao mínimo (8).

34.      No entanto, a medida especial polaca é compatível com estes regulamentos. Embora o sujeito passivo não possa dispor livremente da conta de IVA, pode, pelo menos, utilizá‑la para pagar o IVA aos seus fornecedores ou prestadores de serviços. Além disso, parece que todas as dívidas ao Estado podem ser regularizadas desta forma.

35.      Por conseguinte, se o sujeito passivo pode efetuar o pagamento do IVA aos seus fornecedores ou prestadores de serviços com os fundos da conta de IVA, não tem de adiantar o IVA numa medida superior à prevista no sistema normal da Diretiva IVA. Nestas condições, a medida especial não viola o artigo 206.° da Diretiva IVA.

36.      No entanto, a situação poderia ser diferente no que respeita ao artigo 168.° , alínea a), da Diretiva IVA se a soma dos fundos da conta de IVA for superior ao montante da dívida fiscal. Se o sujeito passivo não puder dispor dos fundos da conta de IVA em tempo útil, fica privado de liquidez sem que exista uma razão para tal nos termos do direito fiscal. Por conseguinte, o montante em excesso deve ser liberado ao sujeito passivo em tempo útil, embora a autoridade fiscal deva poder verificar a exatidão da dívida fiscal declarada em caso de dúvidas concretas (9). O cumprimento destas exigências deve ser fiscalizado pelo órgão jurisdicional nacional. No entanto, tal constelação não se verifica provavelmente no caso vertente, uma vez que, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, o sujeito passivo parece ter dívidas fiscais. No entanto, em última análise, esta questão deve ser igualmente examinada pelo órgão jurisdicional de reenvio.

37.      Esta situação restringe, de facto, o direito do sujeito passivo de dispor do IVA cobrado. No entanto, não se pode (ainda) afirmar que deve pagar o imposto numa data anterior à prevista no artigo 206.° da Diretiva IVA. Na maioria dos casos típicos, o poder de disposição limitado limita‑se à diferença entre a dívida fiscal própria e a dedução do imposto pago a montante, acrescida das dívidas de direito público acima referidas. Também de um ponto de vista temporal, o poder de disposição só está limitado até à data da declaração fiscal seguinte. Além disso, o artigo 206.°, n.° 2, da Diretiva IVA, permite mesmo derrogar a regra do pagamento aquando da apresentação da declaração de IVA e cobrar adiantamentos relativos a créditos de IVA já constituídos (10).

38.      Portanto, não se verifica uma derrogação ao artigo 206.° da Diretiva IVA. Por conseguinte, pode ser deixada em aberto a questão de saber se uma derrogação meramente menor em relação a disposições individuais da Diretiva IVA seria (implicitamente) autorizada no âmbito do procedimento muito formal do artigo 395.° da Diretiva IVA, mesmo que essas disposições não sejam mencionadas na Decisão de Execução.

B.      Compatibilidade da não liberação da conta de IVA em caso de insolvência com o direito da União

39.      Além disso, importa determinar se é compatível com o direito da União o facto de as autoridades fiscais nacionais negarem o acesso à conta de IVA do administrador da massa insolvente do sujeito passivo insolvente.

40.      Por conseguinte, é necessário examinar se o Regulamento 2015/848 ou a Diretiva IVA se opõem à prioridade dos créditos fiscais (do imposto sobre o valor acrescentado) em caso de insolvência (ponto 1) ou se o artigo 17.°, n.° 1, da Carta, exige um acesso ilimitado à conta de IVA (ponto 2) ou se tal decorre de outros princípios do direito da União (ponto 3).

1.      Quanto à graduação dos créditos fiscais (do imposto sobre o valor acrescentado) em caso de insolvência

41.      O direito da União não prevê regras materiais específicas relativas à graduação dos créditos dos credores no âmbito de um processo de insolvência. Para o efeito, estabelece apenas regras de conflitos de leis: Nos termos do artigo 7.°, n.° 1, e n.° 2, alínea i), do Regulamento 2015/848, a lei do Estado de abertura do processo determina, nomeadamente, a distribuição do produto da liquidação dos bens e a graduação dos créditos. Assim, quando um processo de insolvência é aberto na Polónia, o direito polaco, como lei que rege a insolvência, determina, nomeadamente, em princípio, a graduação de créditos.

42.      De qualquer modo, a Diretiva IVA não exclui a prioridade dos créditos fiscais em caso de insolvência do sujeito passivo. Pelo contrário, as particularidades da legislação em matéria de IVA podem mesmo exigir que o IVA cobrado ao devedor insolvente seja principalmente pago ao Estado e não seja utilizado para satisfazer todos os outros credores do sujeito passivo.

43.      De acordo com o Diretor da Administração Tributária de Wrocław, tal pode ser deduzido do Acórdão de 15 de outubro de 2020, E. (IVA — Redução da matéria coletável) (C‑335/19, EU:C:2020:829). Neste caso, o Tribunal de Justiça decidiu que o primado do direito da União pode igualmente conduzir à inaplicabilidade da ordem de satisfação dos credores prevista no direito da insolvência, se esta não for conforme às disposições da Diretiva IVA (11).

44.      No entanto, o referido litígio dizia respeito ao efeito direto do artigo 90.° da Diretiva IVA a favor do sujeito passivo, que não deve suportar o risco de insolvência do seu devedor, o destinatário. Em contrapartida, o presente processo diz respeito à questão de saber como a insolvência do sujeito passivo afeta a conta de IVA separada e bloqueada. Nenhuma indicação direta a este respeito pode ser extraída do acórdão citado.

45.      Não obstante, a função particular que o sistema do IVA atribui ao sujeito passivo prestador, agora insolvente, é favorável à satisfação prioritária dos créditos do Estado em matéria de IVA em caso de insolvência do sujeito passivo.

46.      De acordo com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o IVA é um imposto indireto sobre o consumo que deve ser suportado pelo consumidor final (12). A este respeito, segundo o Tribunal de Justiça, a empresa enquanto sujeito passivo age apenas como «[cobrador] de impostos por conta do Estado e no interesse do Tesouro» (13). A obrigação fiscal da empresa enquanto sujeito passivo tem, assim, uma função puramente técnica, que resulta unicamente da forma indireta de cobrança do IVA. Do ponto de vista material, o IVA, enquanto imposto geral sobre o consumo, não tem por objetivo tributar a empresa enquanto sujeito passivo, mas a capacidade contributiva do consumidor, que se traduz no seu dispêndio de capital para obter um bem consumível (14).

47.      Ora, se o sujeito passivo atua unicamente como «[cobrador] de impostos por conta do Estado e no interesse do Tesouro», parece contraditório permitir que todos os seus credores tenham livre acesso a esse montante cobrado. Pelo contrário, nesta medida, o sujeito passivo atua como uma espécie de mandatário. Cobra (unicamente) o imposto por conta do Estado e transfere‑o para este último. A partir do momento em que o IVA é pago (como parte do preço), todas as partes envolvidas, ou seja, o sujeito passivo (incluindo o administrador da massa insolvente), os seus credores e o pagador, sabem que este montante não é materialmente devido ao sujeito passivo, mas deve ser transferido para o Estado (cobrança indireta de impostos), mesmo que seja inicialmente (formalmente) pago numa conta do sujeito passivo.

48.      Além disso, a técnica da tributação indireta prevista na Diretiva IVA está quebrada em alguns pontos. Especialmente, a transferência da responsabilidade fiscal para o destinatário (cf. artigo 196.° e artigo 199.° da Diretiva IVA) implica uma tributação direta do esforço junto do destinatário. No entanto, no caso de uma autoliquidação deste tipo, o IVA decorrente da operação também não está disponível para os credores do sujeito passivo, porque já é devido pelo destinatário e é pago ao Estado, ou seja, não é pago ao sujeito passivo em primeiro lugar. Ora, como resulta, nomeadamente, do considerando 5 da Decisão de Execução 2019/310, a medida especial foi introduzida precisamente para operações que já estavam abrangidas pelo mecanismo de autoliquidação devido à sua vulnerabilidade à fraude. Sem a medida especial, este IVA também não estaria, portanto, à disposição da massa insolvente.

49.      No entanto, na minha opinião, a técnica (formal) de tributação não pode ter influência na questão de fundo de saber se o IVA deve ser pago ao Estado para o qual foi cobrado ou se está igualmente à disposição dos credores do sujeito passivo para satisfazer os seus créditos.

50.      Por conseguinte, o direito da União não se opõe a uma disposição nacional e a uma prática jurídica nacional que, consequentemente, dão prioridade à satisfação do credor de dívidas fiscais em caso de insolvência em relação aos credores de outros créditos.

2.      Quanto à compatibilidade com o artigo 17, n.° 1, da Carta

51.      No entanto, a recusa das autoridades fiscais de libertar os fundos da conta de IVA pode constituir uma violação do direito de propriedade do sujeito passivo (titular da conta) garantido pelo artigo 17.°, n.° 1, da Carta.

a)      Âmbito de aplicação da Carta, nos termos do artigo 51, n.° 1, da Carta

52.      Para o efeito, a medida especial deveria, em primeiro lugar, constituir uma aplicação do direito da União, nos termos do artigo 51.°, n.° 1, da Carta.

53.      Na opinião da Comissão, não é esse o caso, uma vez que nem a Diretiva IVA nem o Regulamento 2015/848 regulam a graduação de créditos em caso de insolvência. O facto de a Decisão de Execução 2019/310 autorizar a Polónia a introduzir o mecanismo de fracionamento dos pagamentos não é suficiente para concluir pela existência de uma aplicação do direito da União no caso em apreço. Todavia, esta argumentação não é convincente.

54.      De acordo com a jurisprudência constante, o conceito de «aplicação do direito da União», na aceção do artigo 51.°, n.° 1, da Carta, pressupõe a existência de um nexo suficiente entre um ato do direito da União e a medida nacional. O facto de as matérias em causa serem próximas ou de uma poder ter uma incidência indireta sobre a outra não é suficiente (15). Os direitos fundamentais da União não são aplicáveis a uma regulamentação nacional quando as disposições do direito da União não impõem obrigações específicas para os Estados‑Membros em relação à situação em causa no processo principal (16).

55.      Embora a medida especial constitua uma derrogação às disposições da Diretiva IVA, trata‑se, no entanto, de uma aplicação do direito da União na aceção do artigo 51.°, n.° 1, da Carta. Com efeito, é apenas o direito da União, a saber, o artigo 395.°, n.° 1, da Diretiva IVA, em conjugação com a Decisão de Execução 2019/310, que permite à Polónia introduzir a medida especial derrogatória da Diretiva IVA. Esta medida especial continua, assim, a concretizar os requisitos da Diretiva IVA para a Polónia, mas de uma forma diferente da dos outros Estados‑Membros.

56.      No entanto, se existe uma vinculação aos direitos fundamentais da União na aplicação da Diretiva IVA, esta deve aplicar‑se igualmente se os Estados‑Membros forem autorizados pela União, com base no artigo 395.°, n.° 1, da Diretiva IVA, a introduzir medidas especiais pontualmente derrogatórias e a aplicá‑las.

57.      Além disso, a medida especial destina‑se a combater a fraude ao IVA, em conformidade com os requisitos do artigo 395.°, n.° 1, da Diretiva IVA (17). Este objetivo é reconhecido e promovido pelas disposições do direito da União relativas ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (18). É também por esta razão que a aplicação da medida especial constitui a aplicação do direito da União.

58.      Além disso, a medida especial parece igualmente destinar‑se a cumprir a obrigação imposta aos Estados‑Membros pelo artigo 325.°, n.° 1, TFUE, de combater eficazmente atividades lesivas dos interesses financeiros da União. Segundo o Tribunal de Justiça (19), a decisão relativa aos recursos próprios (20) estabelece uma relação direta entre a cobrança das receitas do IVA e a colocação à disposição do orçamento da União dos recursos IVA correspondentes, uma vez que qualquer falha na cobrança das primeiras está potencialmente na origem de uma redução dos segundos. Mesmo que este último ponto pudesse ser posto em causa (21), importa, no entanto, considerar, em definitivo, que a medida especial constitui a aplicação do direito da União na aceção do artigo 51.° da Carta, a saber, uma aplicação da Diretiva IVA.

59.      A medida especial deve, por conseguinte, ser apreciada à luz do artigo 17.°, n.° 1, da Carta.

b)      Ingerência no artigo 17, n.° 1, da Carta, e sua justificação

60.      O artigo 17.°, n.° 1, da Carta, protege todos os direitos que têm um valor patrimonial do qual decorre, tendo em conta a ordem jurídica em causa, uma posição jurídica adquirida que permite o seu exercício autónomo pelo e a favor do seu titular (22). O dinheiro disponível constitui uma posição jurídica com valor patrimonial (23). O artigo 17.°, n.° 1, primeira frase, da Carta, protege igualmente a utilização e a disposição de bens legalmente adquiridos.

61.      Uma medida que prevê que o IVA seja pago numa conta de IVA separada do sujeito passivo, que só pode ser utilizada de forma limitada, interfere, assim, com o âmbito de proteção do artigo 17.°, n.° 1, da Carta. Com efeito, o sujeito passivo não pode dispor livremente dos ativos que se encontram na conta de IVA. De acordo com o meu entendimento da regulamentação polaca, este só pode utilizar a conta de IVA para determinados pagamentos enumerados. Além disso, está dependente da autorização de outro acesso por parte das autoridades fiscais, em conformidade com o artigo 108b, n.° 1, da Lei do IVA.

62.      Todavia, resulta do artigo 17.°, n.° 1, terceira frase, da Carta, que a utilização dos bens pode ser regulamentada por lei na medida do necessário ao interesse geral. Além disso, em conformidade com o artigo 52.°, n.° 1, da Carta, podem ser introduzidas restrições ao exercício dos direitos e liberdades nela consagrados, desde que não sejam desproporcionadas (24).

63.      A medida especial prossegue um objetivo legítimo, nomeadamente, o combate à fraude ao IVA (25). Também não é manifestamente inadequada para atingir esse objetivo. Com efeito, faz de um sistema de cobrança indireta do imposto vulnerável à fraude um sistema de cobrança do imposto semi‑indireto menos vulnerável à fraude, no qual o IVA cobrado não é pago nem diretamente ao Estado nem indiretamente ao Estado por intermédio de outro sujeito passivo, mas numa conta bloqueada do sujeito passivo.

64.      Contudo, não pode ir além do necessário para atingir o objetivo que prossegue. Apenas outras medidas de combate à fraude podem ser consideradas meios menos restritivos, igualmente adequados. A este respeito, o legislador do Estado‑Membro dispõe de um poder de apreciação que deve ser respeitado no caso em apreço. O Tribunal de Justiça não dispõe de nenhum elemento que indique que os limites desta margem de apreciação tenham sido violados no caso vertente. Afigura‑se que outras medidas de combate contra a fraude não foram suficientemente bem‑sucedidas (26).

65.      Por último, a medida deve ser proporcionada. É certo que, no caso da administração da massa insolvente, o risco de fraude ao IVA pode ser menor do que no âmbito de uma atividade económica normal. No entanto, não está totalmente excluído. Além disso, os ativos da conta de IVA são utilizados para liquidar as dívidas fiscais do sujeito passivo e, por conseguinte, não lhe são retirados. Existe apenas uma restrição temporária à disposição do IVA, que é, de qualquer modo, o único direito material do Estado.

66.      Quando muito, seria concebível que os ativos fossem retirados aos outros credores da insolvência com vista a satisfazer os seus créditos, dando, consequentemente, ao Estado prioridade sobre os outros credores do processo de insolvência. Ora, por um lado, o pedido de decisão prejudicial não tem por objeto os seus direitos fundamentais. Por outro lado, devido ao facto de o IVA ter sido cobrado apenas «a título fiduciário», é difícil justificar um direito patrimonial dos outros credores à restituição do IVA que, na realidade, pertence ao Estado.

67.      Além disso, o direito da União não regula a graduação de créditos em caso de insolvência. Embora o direito nacional preveja uma prerrogativa do Tesouro Público em caso de insolvência no que respeita aos impostos não harmonizados, não se trata, a fortiori, de uma aplicação do direito da União. Por conseguinte, os direitos fundamentais da União não devem ser examinados a este respeito.

68.      Por conseguinte, o direito da União não se opõe a que, por força do direito nacional, as autoridades fiscais verifiquem a existência de dívidas fiscais mesmo após a abertura do processo de insolvência contra o sujeito passivo e só libertem os montantes que figuram na conta de IVA se não for esse o caso. É o que acontece, em todo o caso, quando a verificação e a libertação dos fundos que não são necessários para satisfazer as dívidas fiscais ocorrem num prazo razoável.

69.      Assim, embora a medida particular constitua uma ingerência no artigo 17.°, n.° 1, da Carta, esta é justificada.

3.      Quanto à violação de outros princípios do direito da União

70.      Não há indícios de uma violação dos princípios do Estado de direito e da segurança jurídica, nos termos do artigo 2.° TUE, a que o órgão jurisdicional de reenvio também faz referência. A decisão da autoridade fiscal continha uma fundamentação e, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, baseava‑se no direito polaco e na sua interpretação pelos órgãos jurisdicionais polacos. Além disso, a decisão era suscetível de recurso.

71.      O direito a uma boa administração reflete um princípio geral do direito da União. As exigências daí decorrentes impõem‑se igualmente às autoridades fiscais dos Estados‑Membros quando aplicam o direito da União (27). No entanto, não existe indício de violação deste princípio no caso em apreço. Por último, também não há indícios de uma violação do princípio da cooperação leal, nos termos do artigo 4.°, n.° 3, TUE.

V.      Conclusão

72.      Assim, proponho ao Tribunal de Justiça que responda do seguinte modo às questões prejudiciais:

O artigo 17.°, n.° 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, os princípios da proporcionalidade, da neutralidade, do Estado de direito, da segurança jurídica, da cooperação leal e da boa administração, bem como as disposições da Diretiva 2006/112/CE relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, nomeadamente os seus artigos 395.° e 206.°, e a Decisão de Execução (UE) 2019/310, não se opõem a uma disposição nacional e a uma prática nacional, nos termos das quais é recusada ao administrador da massa insolvente a autorização para transferir os fundos acumulados na conta de IVA do sujeito passivo para a conta bancária indicada pelo administrador da massa insolvente, se o sujeito passivo ainda tiver dívidas fiscais.


1      Língua original: alemão.


2      Diretiva do Conselho de 28 de novembro de 2006 (JO 2006, L 347, p. 1).


3      Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015 (JO 2015, L 141, p. 19).


4      Decisão de Execução do Conselho de 18 de fevereiro de 2019 (JO 2019, L 51, p. 19).


5      V. Decisão de Execução (UE) 2017/784 do Conselho, de 25 de abril de 2017, que autoriza a República Italiana a aplicar uma medida especial em derrogação aos artigos 206.° e 226.° da Diretiva 2006/112/CE relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado e que revoga a Decisão de Execução (UE) 2015/1401 (JO 2017, L 118, p. 17).


6      V., igualmente, conclusões do advogado‑geral H. Saugmandsgaard Øe no processo Dyrektor Izby Administracji Skarbowej w Bydgoszczy (Aquisição intracomunitária de gasóleo) (C‑855/19, EU:C:2021:222, n.os 111 e 114).


7      Acórdão de 14 de outubro de 2021, Finanzamt N e Finanzamt G (Comunicação da decisão de afetação) (C‑45/20 e C‑46/20, EU:C:2021:852, n.° 31 e jurisprudência referida).


8      V. as minhas conclusões no processo AGROBET CZ (C‑446/18, EU:C:2019:1137, n.° 64).


9      V., neste sentido, as minhas conclusões no processo AGROBET CZ (C‑446/18, EU:C:2019:1137, n.º 52).


10      V. Acórdão de 9 de setembro de 2021, Dyrektor Izby Administracji Skarbowej w Bydgoszczy (Aquisição intracomunitária de gasóleo) (C‑855/19, EU:C:2021:714, n.° 32).


11      Acórdão de 15 de outubro de 2020, E. (IVA — Redução da matéria coletável) (C‑335/19, EU:C:2020:829, n.os 51 e seg.).


12      Acórdãos de 7 de novembro de 2013, Tulică e Plavoşin (C‑249/12 e C‑250/12, EU:C:2013:722, n.° 34), e de 24 de outubro de 1996, Elida Gibbs (C‑317/94, EU:C:1996:400, n.° 19), e despacho de 9 de dezembro de 2011, Connoisseur Belgium (C‑69/11, não publicado, EU:C:2011:825, n.° 21); v., igualmente, as minhas conclusões no processo E. (IVA — Redução da matéria coletável) (C‑335/19, EU:C:2020:424, n.os 23 e seg.).


13      Acórdãos de 21 de fevereiro de 2008, Netto Supermarkt (C‑271/06, EU:C:2008:105, n.º 21), e de 20 de outubro de 1993, Balocchi (C‑10/92, EU:C:1993:846, n.º 25).


14      V., a título de exemplo: Acórdãos de 3 de março de 2020, Vodafone Magyarország (C‑75/18, EU:C:2020:139, n.° 62), de 11 de outubro de 2007, KÖGÁZ e o. (C‑283/06 e C‑312/06, EU:C:2007:598, n.° 37 — «fixação do seu montante proporcionalmente ao preço recebido pelo sujeito passivo em contrapartida dos bens e dos serviços que forneça»), e de 18 de dezembro de 1997, Landboden‑Agrardienste (C‑384/95, EU:C:1997:627, n.os 20 e 23).


15      Acórdão de 22 de abril de 2021, Profi Credit Slovakia (C‑485/19, EU:C:2021:313, n.° 37 e jurisprudência referida); v., igualmente, as minhas conclusões no processo Direktor na Direktsia Obzhalvane i danachno‑osiguritelna praktika (C‑1/21, EU:C:2022:435, n.° 66).


16      Acórdão de 16 de julho de 2020, Adusbef e Federconsumatori (C‑686/18, EU:C:2020:567, n.° 53 e jurisprudência referida).


17      V. as minhas observações no n.º 28, supra.


18      V. Acórdãos de 28 de julho de 2016, Astone (C‑332/15, EU:C:2016:614, n.° 50), de 14 de maio de 2020, Agrobet CZ (C‑446/18, EU:C:2020:369, n.° 41), e de 20 de maio de 2021, ALTI (C‑4/20, EU:C:2021:397, n.° 35), e as minhas conclusões no processo AGROBET CZ (C‑446/18, EU:C:2019:1137, n.° 67).


19      Acórdãos de 5 de dezembro de 2017, M.A.S. e M.B. (C‑42/17, EU:C:2017:936, n.° 31), de 7 de abril de 2016, Degano Trasporti (C‑546/14, EU:C:2016:206, n.° 22), e de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson (C‑617/10, EU:C:2013:105, n.° 26 e jurisprudência referida).


20      Decisão 2007/436/CE, Euratom do Conselho, de 7 de junho de 2007, relativa ao sistema de recursos próprios das Comunidades Europeias (JO 2007, L 163, p. 17).


21      Assim, no que respeita às consequências financeiras do alargamento de uma isenção de IVA para o orçamento da União, a Comissão expõe o seguinte: «Ao alargar o âmbito das isenções de IVA, a proposta poderia reduzir as receitas do IVA cobradas pelos Estados‑Membros e, por conseguinte, o recurso próprio IVA. Embora não haja implicações negativas para o orçamento da UE [(o sublinhado é meu)], uma vez que o recurso próprio baseado no rendimento nacional bruto (RNB) compensa qualquer despesa não coberta pelos recursos próprios tradicionais e pelo recurso próprio IVA, os recursos próprios IVA não cobrados provenientes de determinados Estados‑Membros teriam de ser compensados por todos os Estados‑Membros através do recurso próprio baseado no RNB» (Proposta de diretiva da Comissão da UE, de 24 de abril de 2019, que altera a Diretiva 2006/112 e a Diretiva 2008/118 relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo no que respeita aos esforços de defesa no âmbito da União, COM(2019) 192 final, p. 10 ‑ versão alemã). Isto contradiz uma relação direta entre a cobrança das receitas do IVA e a colocação à disposição dos recursos IVA correspondentes para o orçamento da União.


22      Acórdãos de 21 de maio de 2019, Comissão/Hungria (Direitos de usufruto de terrenos agrícolas) (C‑235/17, EU:C:2019:432, n.° 69), e de 22 de janeiro de 2013, Sky Österreich (C‑283/11, EU:C:2013:28, n.° 34), bem como as minhas conclusões no processo MAX7 Design (C‑519/22, EU:C:2023:998, n.° 40).


23      V. as minhas conclusões no processo MAX7 Design (C‑519/22, EU:C:2023:998, n.° 40).


24      Acórdão de 14 de janeiro de 2021, Okrazhna prokuratura ‑ Haskovo e Apelativna prokuratura ‑ Plovdiv (C‑393/19, EU:C:2021:8, n.° 53 e jurisprudência referida).


25      V. meus comentários nos n.os 28 e 57, supra.


26      V. considerando 3 da Decisão de Execução (UE) 2019/310.


27      V., neste sentido, Acórdãos de 13 de julho de 2023, Napfény‑Toll (C‑615/21, EU:C:2023:573, n.º 53), e de 21 de outubro de 2021, CHEP Equipment Pooling (C‑396/20, EU:C:2021:867, n.º 48 e jurisprudência referida).