Language of document : ECLI:EU:C:2024:252

Processo C90/22

«Gjensidige» ADB

(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Lietuvos Aukščiausiasis Teismas)

 Acórdão do Tribunal de Justiça (Primeira Secção) de 21 de março de 2024

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial — Regulamento (CE) n.° 1215/2012 — Artigo 45.° — Recusa de reconhecimento de uma decisão — Artigo 71.° — Relação deste regulamento com as convenções relativas a uma matéria especial — Convenção relativa ao contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada (CMR) — Artigo 31.°, n.° 3 — Litispendência — Pacto atributivo de jurisdição — Conceito de “ordem pública”»

1.        Cooperação judiciária em matéria civil — Competência judiciária e execução de decisões em matéria civil e comercial — Regulamento (CE) n.° 1215/2012 — Relações com as convenções relativas a uma matéria especial — Convenção relativa ao contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada (CMR) — Decisão relativa a uma ação proposta ao abrigo desse contrato — Possibilidade de recusar o reconhecimento dessa decisão por violação de um pacto atributivo de jurisdição — Aplicabilidade do regulamento

[Regulamento n.° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigo 71.°, n.os 1 e 2, alínea b)]

(cf. n.os 41, 44‑47)

2.        Cooperação judiciária em matéria civil — Competência judiciária e execução de decisões em matéria civil e comercial — Regulamento (CE) n.° 1215/2012 — Reconhecimento e execução de decisões — Fundamentos de recusa — Violação de competências exclusivas — Âmbito de aplicação — Decisão proferida por um órgão jurisdicional de um EstadoMembro em violação de um pacto atributivo de jurisdição — Exclusão — Violação da ordem pública do Estado requerido — Inexistência

[Regulamento n.° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigos 25.° e 45.°, n.° 1, alíneas a), e e), ii), e n.° 3]

(cf. n.os 52, 53, 56‑59, 72‑76 e disp.)

Resumo

No âmbito do reenvio prejudicial que lhe foi dirigido, o Tribunal de Justiça esclarece o alcance dos fundamentos de recusa do reconhecimento das decisões judiciais proferidas nos Estados‑Membros, previstos no Regulamento Bruxelas I‑A (1), no caso de o órgão jurisdicional de origem se ter declarado competente em violação de um pacto atributivo de jurisdição incluído num contrato de transporte internacional.

A ACC Distribution UAB celebrou um contrato com a Rhenus Logistics UAB, uma sociedade de transporte, para o transporte de mercadorias dos Países Baixos para a Lituânia. Uma vez que parte das mercadorias foi furtada durante o transporte, a Gjensidige ADB, uma companhia de seguros, indemnizou a ACC Distribution.

Em fevereiro de 2017, a Rhenus Logistics intentou num tribunal neerlandês uma ação de declaração de limitação de responsabilidade no que a si se refere. Esse órgão jurisdicional declarou‑se competente para decidir o litígio e considerou que o pacto atributivo de jurisdição a favor dos tribunais lituanos, incluído no contrato assinado entre a ACC Distribution e a Rhenus Logistics, era nulo, uma vez que tinha por finalidade restringir a escolha dos tribunais competentes prevista Convenção relativa ao contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada (a seguir «CMR») (2).

Em setembro de 2017, a Gjensidige intentou uma ação num tribunal lituano para que a Rhenus Logistics fosse condenada no reembolso da indemnização que tinha pago à ACC Distribution. Esse tribunal suspendeu a instância até momento em que, em 2019, o tribunal neerlandês proferiu uma decisão com trânsito em julgado sobre a limitação da responsabilidade da Rhenus Logistics. Em seguida, o tribunal lituano julgou improcedente a ação intentada pela Gjensidige com fundamento na exceção de caso julgado resultante da decisão do tribunal neerlandês. Esta improcedência foi confirmada em sede de recurso na segunda instância.

No recurso interposto pela Gjensidige, o Lietuvos Aukščiausiasis Teismas (Supremo Tribunal da Lituânia) interroga‑se sobre a compatibilidade da CMR com o Regulamento Bruxelas I‑A, uma vez que esta convenção permite afastar os pactos atributivos de jurisdição que, segundo este regulamento, são em princípio exclusivos (3). Além disso, apesar de considerar que este regulamento não prevê expressamente o fundamento de recusa do reconhecimento de uma decisão judicial proferida em violação de um pacto atributivo de jurisdição, esse tribunal interroga‑se sobre se a proteção desses acordos não deveria ser ampliada ao reconhecimento e à execução dessa decisão. Por conseguinte, decide interrogar o Tribunal de Justiça a título prejudicial.

Apreciação do Tribunal de Justiça

A título preliminar, uma vez que o contrato de transporte internacional em causa no processo principal está abrangido pelo âmbito de aplicação tanto do Regulamento Bruxelas I‑A como da CMR, o Tribunal de Justiça analisa se a questão de uma eventual recusa de reconhecimento de uma decisão judicial proferida apesar da existência de um pacto atributivo de jurisdição a favor dos tribunais de outro Estado‑Membro deve ser apreciada à luz do Regulamento Bruxelas I‑A ou da CMR.

A este respeito, por um lado, o Regulamento Bruxelas I‑A (4) prevê que as decisões proferidas num Estado‑Membro por um tribunal que tenha baseado a sua competência numa convenção relativa a uma matéria especial devem ser reconhecidas e executadas nos outros Estados‑Membros em conformidade com este regulamento, cujas disposições devem, em todo o caso, ser respeitadas mesmo que essa convenção determine as condições de reconhecimento e de execução dessas decisões. Quanto à CMR (5), esta limita‑se a sujeitar a execução de uma sentença ao cumprimento das formalidades prescritas para o efeito no país interessado, não podendo, no entanto, as mesmas podem comportar nenhuma revisão do caso.

Por outro lado, a aplicação dessa convenção não pode violar os princípios basilares da cooperação judiciária em matéria civil e comercial no seio da União. No que se refere especificamente ao princípio da confiança recíproca, o tribunal do Estado requerido nunca está mais bem colocado que o tribunal do Estado de origem para se pronunciar sobre a competência deste, pelo que o Regulamento Bruxelas I‑A não permite, em princípio, o controlo da competência do tribunal de um Estado‑Membro pelo tribunal de outro Estado‑Membro.

Nestas condições, a questão de uma eventual recusa de reconhecimento deve ser apreciada à luz do Regulamento Bruxelas I‑A.

Feita esta precisão, em primeiro lugar, o Tribunal de Justiça deduz da redação do n.° 1, alínea a) (6), e alínea e), ii) (7), do artigo 45.° do Regulamento Bruxelas I‑A o tribunal de um Estado‑Membro não pode recusar reconhecer a decisão de um tribunal de outro Estado‑Membro pelo facto de este último tribunal se ter declarado competente em violação de um pacto atributivo de jurisdição.

Em segundo lugar, esta interpretação literal é corroborada pelo contexto em que se inserem as referidas disposições, bem como pelos objetivos e finalidade que o Regulamento Bruxelas I‑A prossegue. O Tribunal de Justiça recorda que, no sistema instituído por este regulamento, o reconhecimento mútuo constitui a regra, ao passo que os fundamentos que permitem recusar o reconhecimento estão enumerados exaustivamente. Ora, o legislador da União optou por não incluir a violação das disposições deste regulamento relativas à extensão de competência entre esses fundamentos. Assim, a proteção dos pactos atributivos de jurisdição, prevista neste regulamento (8), não tem como consequência que a sua violação constitua, enquanto tal, um fundamento para a recusa de reconhecimento.

Em terceiro lugar, o Tribunal de Justiça salienta que, no caso em apreço, nada nos autos de que dispõe permite concluir que o reconhecimento da decisão do tribunal neerlandês violaria de forma inaceitável a ordem jurídica lituana por violar um princípio fundamental. Em especial, a mera circunstância de uma ação não ser julgada pelo tribunal designado no pacto atributivo de jurisdição e de, por conseguinte, não ser julgada segundo o direito do Estado‑Membro a que pertence esse tribunal não pode ser considerada uma violação do direito a um processo equitativo com uma gravidade tal que o reconhecimento da decisão na referida ação seja manifestamente contrário à ordem pública do Estado‑Membro requerido.


1      Regulamento (UE) n.° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2012, L 351, p. 1) (a seguir «Regulamento Bruxelas I‑A»).


2      Artigo 31.°, n.° 1, da Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada, assinada em Genebra em 19 de maio de 1956, conforme alterada pelo protocolo assinado em Genebra em 5 de julho de 1978.


3      V. artigo 25.°, n.° 1, do Regulamento Bruxelas I‑A.


4      Artigo 71.°, n.° 2, alínea b), primeiro e segundo parágrafos, do Regulamento Bruxelas I‑A.


5      Artigo 31.°, n.° 3, da CMR.


6      Esta disposição consagra o fundamento de recusa de reconhecimento em caso de violação da ordem pública do Estado‑Membro requerido.


7      Esta disposição prevê que, a pedido de qualquer interessado, o reconhecimento de uma decisão é recusado se esta decisão violar o disposto no Capítulo II, Secção 6, do Regulamento Bruxelas I‑A, relativa às competências exclusivas.


8      V. considerando 22 do Regulamento Bruxelas I‑A.