Processo C‑280/08 P
Deutsche Telekom AG
contra
Comissão Europeia
«Recurso de decisão do Tribunal de Primeira Instância – Concorrência – Artigo 82.° CE – Mercados dos serviços de telecomunicações – Acesso à rede fixa do operador histórico – Preços grossistas pelos serviços de acesso ao lacete local prestados aos concorrentes – Preços de retalho pelos serviços de acesso prestados aos utilizadores finais – Práticas tarifárias de uma empresa dominante – Compressão das margens dos concorrentes – Preços aprovados pela autoridade regulamentar nacional – Margem de manobra da empresa dominante – Imputabilidade da infracção – Conceito de ‘abuso’ – Critério do concorrente igualmente eficaz – Cálculo da compressão das margens – Efeitos do abuso – Montante da coima»
Sumário do acórdão
1. Recurso de decisão do Tribunal de Primeira Instância – Fundamentos – Simples repetição dos fundamentos e argumentos submetidos ao Tribunal de Primeira Instância – Inadmissibilidade – Contestação da interpretação ou da aplicação do direito comunitário feita pelo Tribunal de Primeira Instância – Admissibilidade
[Artigo 225.° CE; Estatuto do Tribunal de Justiça, artigo 58.°, primeiro parágrafo; Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, artigo 112.°, n.° 1, alínea c)]
2. Recurso de decisão do Tribunal de Primeira Instância – Fundamentos – Fundamento apresentado pela primeira vez no âmbito do recurso – Inadmissibilidade
(Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, artigo 113.°, n.° 2)
3. Acção por incumprimento – Direito de acção da Comissão – Exercício discricionário
(Artigos 81.° CE, 82.° CE e 226.° CE)
4. Concorrência – Posição dominante – Abuso – Compressão tarifária das margens – Serviços de acesso à rede de telecomunicações fornecidos pelo operador proprietário da única infra‑estrutura disponível – Decisão da Comissão que declara a existência de um abuso não obstante a aprovação das tarifas pela autoridade nacional de regulamentação – Imputabilidade da infracção
(Artigos 81.° CE e 82.° CE)
5. Recurso de decisão do Tribunal de Primeira Instância – Fundamentos – Fundamentação insuficiente – Admissibilidade
(Estatuto do Tribunal de Justiça, artigo 58.°, primeiro parágrafo)
6. Concorrência – Regras comunitárias – Infracções – Realização deliberada ou negligente – Conceito – Compressão tarifária das margens resultante de tarifas de uma empresa em posição de monopólio no mercado das prestações grossistas e em posição de quase monopólio no mercado dos serviços a retalho
(Regulamento n.° 17 do Conselho, artigo 17.°, n.° 2, primeiro parágrafo)
7. Actos das instituições – Dever de fundamentação – Objecto – Alcance
(Artigo 253.° CE)
8. Concorrência – Posição dominante – Abuso – Compressão tarifária das margens –Serviços de acesso à rede de telecomunicações fornecidos pelo operador proprietário da única infra‑estrutura disponível – Margem negativa ou insuficiente entre as tarifas para os concorrentes e as tarifas a retalho
(Artigo 82.° CE)
9. Concorrência – Posição dominante – Abuso – Compressão tarifária das margens – Conceito
(Artigo 82.° CE)
10. Concorrência – Posição dominante – Abuso – Compressão tarifária das margens –Serviços de acesso à rede de telecomunicações fornecidos pelo operador proprietário da única infra‑estrutura disponível – Cálculo da compressão das margens dos concorrentes
(Artigo 82.° CE)
11. Concorrência – Posição dominante – Abuso – Compressão tarifária das margens – Igualdade de oportunidades – Inexistência – Consideração das receitas provenientes dos outros serviços de telecomunicações – Exclusão
(Artigo 82.° CE)
12. Concorrência – Posição dominante – Abuso – Conceito – Comportamentos com efeito restritivo na concorrência
(Artigo 82.° CE)
13. Concorrência – Coimas – Montante – Determinação – Critérios – Gravidade da infracção – Infracção grave – Compressão tarifária das margens resultante das tarifas de uma empresa em posição de monopólio – Circunstâncias atenuantes
(Regulamento n.° 17 do Conselho, artigo 15.°, n.° 2; Comunicação 98/C 9/03 da Comissão, ponto 1, A, segundo parágrafo)
14. Concorrência – Coimas – Montante – Determinação – Poderes da Comissão – Alteração da prática anterior – Violação do princípio da não discriminação – Inexistência
(Regulamento n.° 17 do Conselho)
1. Resulta dos artigos 225.° CE, 58.°, primeiro parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça e 112.°, n.° 1, alínea c), do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça que um recurso de uma decisão do Tribunal de Primeira Instância deve indicar de forma precisa os elementos que critica no acórdão de que pede a anulação, bem como os argumentos jurídicos que suportam especificamente esse pedido. Não preenche esse requisito um recurso que, sem sequer conter uma argumentação especificamente destinada a identificar o erro de direito de que está ferido o acórdão recorrido, se limite a reproduzir os fundamentos e argumentos já apresentados no Tribunal de Primeira Instância. Com efeito, esse recurso constitui, na realidade, um pedido de simples reexame da petição apresentada no Tribunal de Primeira Instância, o que não é da competência do Tribunal de Justiça.
Contudo, quando um recorrente contesta a interpretação ou a aplicação do direito da União feita pelo Tribunal de Primeira Instância, os pontos jurídicos analisados em primeira instância podem ser novamente discutidos em segunda instância. Com efeito, se um recorrente não pudesse assim basear o seu recurso em fundamentos e argumentos já utilizados em primeira instância, o processo de recurso de segunda instância ficaria privado de uma parte do seu sentido.
(cf. n.os 24, 25)
2. O recurso de segunda instância não pode modificar o objecto do litígio no Tribunal de Primeira Instância. Com efeito, a competência do Tribunal de Justiça, em sede de recurso de segunda instância, é limitada à apreciação da solução jurídica dada aos fundamentos discutidos em primeira instância. As partes não podem, portanto, suscitar no Tribunal de Justiça, pela primeira vez, um fundamento que não tenham suscitado no Tribunal de Primeira Instância, pois isso seria permitir‑lhes submeter ao Tribunal de Justiça, cuja competência em segunda instância é limitada, um litígio mais amplo do que aquele que foi submetido ao Tribunal de Primeira Instância.
(cf. n.os 34, 42, 49)
3. Cabe a cada um dos Estados‑Membros tomar todas as medidas gerais ou especiais adequadas para assegurar o cumprimento, pelas autoridades dos Estados‑Membros, das obrigações impostas pelo direito da União. Os artigos 81.° CE e 82.° CE, conjugados com o artigo 10.° CE, impõem aos Estados‑Membros que não tomem nem mantenham em vigor medidas, mesmo de natureza legislativa ou regulamentar, susceptíveis de eliminar o efeito útil das regras de concorrência aplicáveis às empresas.
Contudo, quanto à possibilidade de a Comissão propor uma acção por incumprimento contra um Estado‑Membro, uma vez que o acórdão recorrido apenas tem por objecto a legalidade de uma decisão da Comissão tomada nos termos do artigo 82.° CE contra uma sociedade recorrente, o Tribunal de Justiça deve, em sede de recurso de segunda instância, limitar‑se a verificar se os fundamentos de recurso apresentados são susceptíveis de revelar que o exame da legalidade de uma decisão efectuado pelo Tribunal de Primeira Instância está ferido de erros de direito, independentemente da questão de saber se a Comissão poderia, paralela ou alternativamente, ter adoptado uma decisão de infracção ao direito da União contra o Estado‑Membro em causa.
Assim, embora não se possa excluir a possibilidade de as autoridades regulamentares nacionais terem violado o direito da União, e mesmo que a Comissão pudesse optar por intentar uma acção por incumprimento nos termos do artigo 226.° CE contra um Estado‑Membro, essas eventualidades são irrelevantes para o recurso. No sistema instituído pelo artigo 226.° CE, a Comissão dispõe de um poder discricionário para intentar uma acção por incumprimento, não competindo aos tribunais da União apreciar a oportunidade do seu exercício.
(cf. n.os 45‑47)
4. Os artigos 81.° CE e 82.° CE só não são aplicáveis se às empresas for imposto um comportamento anticoncorrencial por uma legislação nacional, ou se essa legislação criar um quadro jurídico que, por si só, elimina qualquer possibilidade de comportamento concorrencial da sua parte. Com efeito, numa situação deste tipo, como resulta das referidas disposições, a limitação da concorrência não é causada por comportamentos autónomos das empresas.
Em contrapartida, os artigos 81.° CE e 82.° CE podem ser aplicáveis se se verificar que a lei nacional deixa subsistir a possibilidade de uma concorrência susceptível de ser impedida, restringida ou falseada por comportamentos autónomos das empresas. A possibilidade de excluir um determinado comportamento anticoncorrencial do âmbito de aplicação dos artigos 81.° CE e 82.° CE, devido ao facto de o mesmo ter sido imposto às empresas em causa pela legislação nacional existente ou de esta ter eliminado qualquer possibilidade de comportamento concorrencial da sua parte, só foi admitida de forma restritiva pelo Tribunal de Justiça. Se uma lei nacional se limitar a encorajar ou a facilitar a adopção de comportamentos anticoncorrenciais autónomos pelas empresas, estas continuam sujeitas aos artigos 81.° CE e 82.° CE. Com efeito, as empresas dominantes têm uma responsabilidade particular de não prejudicarem com o seu comportamento uma concorrência efectiva e não falseada no mercado comum.
A esse respeito, o simples facto de uma empresa dominante no sector das telecomunicações ter sido incentivada, pelas intervenções de uma autoridade regulamentar nacional como a Autoridade Reguladora das Telecomunicações, a manter a aplicação das suas práticas tarifárias que levavam a uma compressão das margens dos seus concorrentes pelo menos igualmente eficazes não pode, enquanto tal, eliminar em nada a sua responsabilidade nos termos do artigo 82.° CE.
Com efeito, uma vez que, não obstante essas intervenções, a empresa tinha margem de manobra para alterar os seus preços de retalho pelos serviços de acesso aos utilizadores finais, a compressão das margens é‑lhe imputável. O carácter «culposo» ou não do comportamento que consiste em não utilizar essa margem de manobra não é susceptível de pôr em causa o facto de a empresa dispor de margem de manobra para o adoptar, podendo unicamente ser tomado em conta no âmbito da determinação da ilicitude desse comportamento e na fase da fixação do montante das coimas.
(cf. n.os 80‑85, 88‑89)
5. A questão de saber se a fundamentação de um acórdão do Tribunal de Primeira Instância é insuficiente é uma questão de direito que, como tal, pode ser invocada em sede de recurso de segunda instância.
(cf. n.° 123)
6. Quanto à questão de saber se as infracções às normas da concorrência foram cometidas deliberadamente ou por negligência e são, por isso, puníveis por coima, nos termos do artigo 15, n.° 2, primeiro parágrafo, do Regulamento n.° 17, essa condição está preenchida quando uma empresa não pode ignorar o carácter anticoncorrencial do seu comportamento, tenha ou não tido consciência de violar as normas de concorrência do Tratado.
É esse o caso de uma empresa do sector das telecomunicações que, por um lado, não podia ignorar que, apesar das decisões de autorização da Autoridade Reguladora das Telecomunicações, dispunha de uma margem real de manobra para fixar os seus preços de retalho pelos serviços de acesso aos utilizadores finais e, por outro, a compressão das margens levava a sérias restrições da concorrência, tendo em conta a sua posição monopolista no mercado grossista dos serviços de acesso ao lacete local e a sua posição quase monopolista no mercado retalhista dos serviços de acesso aos utilizadores finais.
(cf. n.os 124, 125)
7. O dever de fundamentação previsto no artigo 253.° CE constitui uma formalidade essencial que se distingue da questão do acerto da fundamentação, que cabe no âmbito da legalidade material do acto recorrido. Nesta perspectiva, a fundamentação exigida pelo artigo 253.° CE deve ser adaptada à natureza do acto em causa e deve revelar de forma clara e inequívoca o raciocínio da instituição autora do acto, de forma a permitir aos interessados conhecerem as justificações da medida tomada e ao tribunal competente exercer a sua fiscalização.
A necessidade de fundamentação deve ser apreciada em função das circunstâncias do caso, designadamente do conteúdo do acto, da natureza dos fundamentos invocados e do interesse que os destinatários ou outras pessoas a quem o acto diga directa e individualmente respeito possam ter em obter explicações. Não é necessário que a fundamentação especifique todos os elementos de facto e de direito pertinentes, na medida em que a questão de saber se a fundamentação de um acto cumpre as exigências do artigo 253.° CE deve ser apreciada à luz não somente do seu teor mas também do seu contexto e do conjunto das normas jurídicas que regem a matéria em causa.
(cf. n.os 130, 131)
8. O artigo 82.° CE, segundo parágrafo, alínea a), proíbe expressamente que uma empresa em posição dominante imponha directa ou indirectamente preços não equitativos e, nomeadamente, utilize práticas tarifárias que produzam efeitos de expulsão dos seus concorrentes igualmente eficazes, reais ou potenciais, isto é, práticas capazes de dificultar, ou mesmo impossibilitar, o seu acesso ao mercado, ou dificultar, ou mesmo impossibilitar a escolha, aos seus co‑contratantes, entre várias fontes de abastecimento ou parceiros comerciais, reforçando assim a sua posição dominante, recorrendo a meios diferentes daqueles que pertencem a uma concorrência pelo mérito. Nessa perspectiva, qualquer concorrência pelos preços não pode, portanto, ser considerada legítima.
Na medida em que uma empresa em posição dominante no sector das telecomunicações dispõe de uma margem de manobra para reduzir ou eliminar uma compressão das margens dos seus concorrentes pelo menos tão eficazes como ela, através da alteração dos seus preços de retalho pelos serviços de acesso aos utilizadores finais, essa compressão das margens, tendo em conta o efeito de expulsão que pode gerar para esses concorrentes, é susceptível de constituir um abuso na acepção do artigo 82.° CE.
O referido artigo 82.° CE visa, em particular, a protecção dos consumidores por uma concorrência não falseada. A esse respeito, é irrelevante que a empresa tenha que aumentar os seus preços para impedir o abuso.
Essa compressão das margens, ao reduzir ainda mais o grau de concorrência existente num mercado, o dos serviços de acesso aos utilizadores finais, já enfraquecido, precisamente, pela presença da referida empresa, e ao reforçar assim a posição dominante desta nesse mercado, tem também o efeito de os consumidores sofrerem um dano devido à limitação das suas possibilidades de escolha e, portanto, da perspectiva de uma redução, a mais longo prazo, dos preços de retalho, em razão da concorrência de concorrentes pelo menos tão eficazes como ela nesse mercado.
O Tribunal de Primeira Instância não tem, portanto, de demonstrar ainda que os preços pelos serviços de acesso grossista ao lacete local ou os preços de retalho pelos serviços de acesso aos utilizadores finais são, em si mesmos, abusivos devido ao seu carácter excessivo ou predatório, consoante o caso.
(cf. n.os 172, 177, 180‑183)
9. Para avaliar se as práticas tarifárias de uma empresa dominante são susceptíveis de eliminar um concorrente, em violação do artigo 82.° CE, há que seguir um critério baseado nos custos e na estratégia da empresa dominante. A este respeito, uma empresa dominante não pode afastar do mercado outras empresas talvez tão eficazes como ela, mas que, devido à sua menor capacidade financeira, são incapazes de resistir à concorrência que lhes é feita.
Numa situação em que o carácter abusivo das práticas tarifárias de uma empresa dominante resulta do seu efeito de expulsão dos concorrentes, há que basear a sua análise do carácter abusivo unicamente por referência às tarifas e custos da empresa dominante. Com efeito, esse critério permite verificar se uma empresa dominante no sector das telecomunicações tinha condições para, por si própria, propor os seus serviços retalhistas aos utilizadores finais sem ser com prejuízo, se tivesse sido previamente obrigada a pagar os seus próprios preços pelos serviços de acesso grossista ao lacete local. Por conseguinte, esse critério é adequado a determinar se as práticas tarifárias de uma empresa dominante conduzem a um efeito de expulsão dos concorrentes através da compressão das suas margens.
Esse critério justifica‑se ainda mais quando está também em conformidade com o princípio geral da segurança jurídica, uma vez que tomar em conta os custos da empresa dominante lhe permite, tendo em conta a responsabilidade particular que tem nos termos do artigo 82.° CE, apreciar a legalidade dos seus próprios comportamentos. Com efeito, embora uma empresa dominante conheça os seus próprios custos e tarifas, em princípio, não conhece os dos seus concorrentes.
Isto não é posto em causa pelo facto de que os concorrentes da empresa dominante estarem sujeitos a condições jurídicas e materiais menos condicionantes para fornecer os seus serviços de telecomunicações aos utilizadores finais. Com efeito, essa circunstância, admitindo‑a demonstrada, não é susceptível de afectar o facto de uma empresa dominante não poder recorrer a práticas tarifárias susceptíveis de expulsar do mercado em causa concorrentes, pelo menos, igualmente eficazes, nem o facto de uma empresa como essa dever, tendo em conta a sua responsabilidade particular nos termos do artigo 82.° CE, ter a possibilidade de determinar por si própria se as suas práticas tarifárias respeitam essa disposição.
(cf. n.os 198‑203)
10. Mesmo que, para o assinante, os serviços de acesso e de comunicações possam constituir efectivamente um conjunto, a Comissão pode analisar a existência de uma compressão das margens unicamente a nível dos serviços de acesso, sem incluir os serviços de comunicações, à luz dos princípios da reestruturação tarifária e da igualdade de oportunidades.
A este respeito, não comete nenhum erro de direito o Tribunal de Primeira Instância ao ter em conta o princípio da reestruturação tarifária, resultante da regulamentação relativa ao sector das telecomunicações, para analisar se a Comissão tinha aplicado acertadamente o artigo 82.° CE às práticas tarifárias de uma empresa dominante. Com efeito, uma vez que a regulamentação relativa ao sector das telecomunicações define o quadro jurídico que lhe é aplicável e que, desse modo, contribui para determinar em que condições de concorrência uma empresa dominante exerce as suas actividades nos mercados em causa, constitui um elemento relevante para a aplicação do artigo 82.° CE aos comportamentos dessa empresa, seja para definir os mercados em causa seja para apreciar o carácter abusivo desses comportamentos ou ainda para fixar o montante das coimas.
Isto não é posto em causa pelo facto de o princípio da reestruturação tarifária se aplicar unicamente à empresa dominante e não aos seus concorrentes, uma vez que o Tribunal de Primeira Instância, para determinar o carácter abusivo das práticas tarifárias da dita empresa dominante, à luz do artigo 82.° CE, se baseou, de acordo com o critério do concorrente igualmente eficaz, na situação e nos custos.
Consequentemente, tendo o Tribunal de Primeira Instância considerado que o reequilíbrio tarifário pretendido pela regulamentação da União relativa ao sector das telecomunicações se devia traduzir, nomeadamente, numa descida das tarifas das comunicações nacionais e internacionais e numa subida da assinatura mensal e do preço das comunicações locais, podia igualmente inferir daí que o princípio da reestruturação tarifária já toma em conta distintamente os preços de retalho pelos serviços de acesso e os preços de retalho pelos serviços de comunicações, na determinação do carácter abusivo das práticas tarifárias da empresa dominante.
(cf. n.os 221, 223‑226)
11. Um sistema de concorrência não falseada só pode ser garantido se estiver assegurada a igualdade de oportunidades entre os diferentes operadores.
Isto implica que uma empresa dominante no sector das telecomunicações e os seus concorrentes pelo menos igualmente eficazes sejam postos em pé de igualdade no mercado de retalho dos serviços de acesso aos utilizadores finais. Este pressuposto não está preenchido quando os preços dos serviços de acesso grossista ao lacete local pagos à empresa dominante só podem ser repercutidos nos seus preços de retalho pelos serviços de acesso aos utilizadores finais, oferecendo‑os com prejuízo.
Com efeito, uma vez que, por um lado, o mercado de retalho dos serviços de acesso aos utilizadores finais constitui um mercado distinto e, por outro, os serviços de acesso grossista ao lacete local são indispensáveis a concorrentes pelo menos tão eficazes como ela própria, para entrarem eficazmente em concorrência nesse mercado com uma empresa que aí detém uma posição dominante resultante largamente do monopólio legal de que gozava antes da liberalização do sector das telecomunicações, a instituição de um sistema de concorrência não falseada exige que essa empresa dominante não possa, pelas suas práticas tarifárias nesse mercado retalhista, causar imediatamente aos seus concorrentes pelo menos igualmente eficazes uma desvantagem concorrencial nesse mercado, susceptível de impedir ou restringir o seu acesso a esse mercado ou o desenvolvimento das suas actividades nesse mesmo mercado.
Esse é ainda mais o caso quando, uma vez que o eventual fornecimento de outros serviços de telecomunicações aos utilizadores finais, pelos seus concorrentes, através da rede fixa da empresa dominante, exige igualmente que lhe adquiram os serviços de acesso grossista ao lacete local, essa desvantagem concorrencial no mercado de retalho dos serviços de acesso aos utilizadores finais repercute‑se necessariamente nos mercados desses outros serviços de telecomunicações. Contudo, isso não implica que as receitas desses outros serviços de telecomunicações devam ser tidas em conta para verificar se os concorrentes pelo menos tão eficazes como a empresa dominante estão em situação de desigualdade nas condições de concorrência no mercado de retalho dos serviços de acesso aos utilizadores finais. Com efeito, esses outros serviços de telecomunicações pertencem a mercados distintos deste.
Assim, há que observar que as práticas tarifárias da empresa dominante no mercado de retalho dos serviços de acesso aos utilizadores finais põem imediatamente os seus concorrentes pelo menos igualmente eficazes em pé de desigualdade face a ela própria nesse mesmo mercado, levando a uma compressão das margens desses concorrentes no que respeita aos serviços de acesso.
(cf. n.os 230, 233‑236, 240)
12. Ao proibir a exploração abusiva de uma posição dominante no mercado, na medida em que isso possa afectar o comércio entre Estados‑Membros, o artigo 82.° CE visa os comportamentos de uma empresa em posição dominante, que tenham por efeito obstar, por meios diferentes dos que regem uma competição normal dos produtos ou dos serviços com base nas prestações dos operadores económicos, à manutenção do grau de concorrência ainda existente no mercado ou ao desenvolvimento dessa concorrência. Daí resulta que a existência de práticas tarifárias de uma empresa dominante que levem à compressão das margens dos seus concorrentes pelo menos igualmente eficazes constitui uma prática abusiva na acepção do artigo 82.° CE, unicamente se for feita a prova de um efeito anticoncorrencial.
Quanto às práticas tarifárias de uma empresa dominante no sector das telecomunicações que levem à compressão das margens dos seus concorrentes pelo menos tão eficazes como ela, o efeito anticoncorrencial que a Comissão tem de demonstrar respeita aos eventuais entraves que as referidas práticas tarifárias possam ter causado ao desenvolvimento da oferta no mercado de retalho dos serviços de acesso a utilizadores finais e, portanto, ao grau de concorrência nesse mercado. Essa prática é abusiva na acepção do artigo 82.° CE, uma vez que, ao produzir efeitos de expulsão dos concorrentes da empresa dominante pelo menos tão eficazes como ela, tem condições para dificultar ou mesmo impossibilitar o acesso dos seus concorrentes a esse mercado e aí reforçar, assim, a sua posição dominante, em prejuízo dos interesses dos consumidores.
Quando uma empresa dominante segue efectivamente uma prática tarifária que leve à compressão das margens dos seus concorrentes pelos menos igualmente eficazes, com o objectivo de os expulsar do mercado em causa, o facto de afinal não ter sido atingido o resultado esperado não afasta a qualificação de abuso na acepção do artigo 82.° CE. Contudo, não havendo o menor efeito na situação concorrencial dos concorrentes, uma prática tarifária não pode ser qualificada de prática de expulsão, quando a penetração daqueles no mercado em nada é dificultada por essa prática.
(cf. n.os 251‑254)
13. A Comissão beneficia de um amplo poder de apreciação quanto ao método de cálculo das coimas. Este método, circunscrito pelas Orientações para o cálculo das coimas aplicadas por força do n.° 2 do artigo 15.° do Regulamento n.° 17 e do n.° 5 do artigo 65.° do Tratado CECA, contém diferentes elementos de flexibilidade que permitem à Comissão exercer o seu poder de apreciação em conformidade com essas disposições. Cabe ao Tribunal de Justiça verificar se o Tribunal de Primeira Instância apreciou correctamente o exercício desse poder de apreciação pela Comissão.
A gravidade das infracções ao direito da concorrência da União deve ser determinada em função de um grande número de elementos, como as circunstâncias específicas do caso, o seu contexto e o carácter dissuasivo das coimas, sem que tenha sido fixada uma lista vinculativa ou taxativa de critérios que devam obrigatoriamente ser tomados em consideração. Entre os elementos que podem entrar na apreciação da gravidade das infracções figuram o comportamento de cada uma das empresas em causa, o papel que desempenhou na determinação da prática em causa, o benefício que daí pôde retirar, a sua dimensão e o valor das mercadorias em causa, bem como o risco que as infracções desse tipo representam para os objectivos da União.
(cf. n.os 271‑274)
14. O facto de, no passado, a Comissão ter aplicado coimas de certo nível a determinados tipos de infracções não a priva da possibilidade de aumentar esse nível, dentro dos limites indicados no Regulamento n.° 17, se isso for necessário para assegurar a execução da política de concorrência da União. Com efeito, a aplicação eficaz das regras de concorrência da União exige que a Comissão possa, em qualquer momento, adaptar o nível das coimas às necessidades dessa política.
(cf. n.° 294)