CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL
MELCHIOR WATHELET
apresentadas em 10 de janeiro de 2018 (1)
Processo C‑266/16
Western Sahara Campaign UK,
The Queen
contra
Commissioners for Her Majesty’s Revenue and Customs,
Secretary of State for Environment, Food and Rural Affairs,
[pedido de decisão prejudicial submetido pela High Court of Justice (England & Wales), Queen’s Bench Division (Administrative Court) [Tribunal Superior de Justiça (Inglaterra e País de Gales), Secção do foro da Rainha (subsecção administrativa)], Reino Unido]
«Reenvio prejudicial — Acordo de parceria entre a Comunidade Europeia e o Reino de Marrocos no domínio da pesca — Protocolo que fixa as possibilidades de pesca previstas pelo acordo — Atos que aprovam a celebração do acordo e do protocolo — Regulamentos que repartem as possibilidades de pesca fixadas pelo protocolo entre os Estados‑Membros — Validade à luz do artigo 3.o TUE e do direito internacional — Aplicação ao Sara Ocidental e às águas adjacentes»
Índice
I. Introdução
II. Quadro jurídico
A. Acordo de pesca
B. Protocolo de 2013
C. Regulamento n.o 764/2006
D. Decisão 2013/785/UE
E. Regulamento n.o 1270/2013
III. Litígio no processo principal e questões prejudiciais
IV. Tramitação do processo no Tribunal de Justiça
V. Quanto à terceira e quarta questões prejudiciais
A. Quanto à competência do Tribunal de Justiça
B. Quanto ao mérito
1. Observações preliminares
2. Invocabilidade das regras do direito internacional para impugnar a validade dos atos impugnados
a) Princípios gerais
b) Quanto à invocabilidade das regras de direito internacional aplicáveis à conclusão de acordos internacionais que visam a exploração de recursos naturais do Sara Ocidental
1) Direito à autodeterminação
i) O direito à autodeterminação faz parte dos direitos do Homem
ii) Direito à autodeterminação enquanto princípio do direito internacional geral, do direito internacional convencional e obrigação erga omnes
– A União está vinculada pelo direito à autodeterminação
– O direito à autodeterminação é uma regra do direito internacional que, do ponto de vista do seu conteúdo, é incondicional e suficientemente precisa
– A natureza e a sistemática do direito à autodeterminação não se opõem à fiscalização jurisdicional dos atos impugnados
2) O princípio da soberania permanente sobre os recursos naturais
3) Regras do direito internacional humanitário aplicáveis à conclusão de acordos internacionais que visam a exploração dos recursos naturais do território ocupado
3. Quanto à validade do Regulamento n.o 764/2006, da Decisão 2013/785 e do Regulamento n.o 1270/2013 e à compatibilidade do Acordo de pesca e do Protocolo de 2013 com as regras invocáveis do direito internacional para as quais remete o artigo 3.o, n.o 5, TUE
a) Quanto ao respeito, pelos atos impugnados, do direito do povo do Sara Ocidental à autodeterminação e da obrigação de não reconhecer uma situação ilícita decorrente de uma violação deste direito e de não prestar auxílio ou assistência à manutenção desta situação
1) Quanto à existência de uma vontade livre do povo do Sara Ocidental de prosseguir, através dos atos impugnados, o seu desenvolvimento económico e de dispor das suas riquezas e dos seus recursos naturais
2) Quanto à obrigação de não reconhecer uma situação ilícita decorrente de uma violação do direito do povo do Sara Ocidental à autodeterminação, e de não prestar auxílio ou assistência à manutenção dessa situação
3) Deve considerarse que os acordos internacionais aplicáveis ao Sara Ocidental foram concluídos com o Reino de Marrocos com base num título distinto da sua afirmação de soberania sobre este território?
i) O Reino de Marrocos enquanto potência administrante de facto do Sara Ocidental
ii) O Reino de Marrocos enquanto potência ocupante do Sara Ocidental
– Quanto à aplicabilidade do direito internacional humanitário ao Sara Ocidental
– Quanto à existência de uma ocupação militar no Sara Ocidental
– Quanto à capacidade da potência ocupante para concluir acordos internacionais aplicáveis ao território ocupado e quanto às condições de legalidade a que está sujeita a conclusão de tais acordos
b) Quanto ao respeito, pelos atos impugnados, do princípio da soberania permanente sobre os recursos naturais e das regras do direito internacional humanitário aplicáveis à exploração dos recursos naturais do território ocupado
1) O princípio da soberania permanente sobre os recursos naturais
2) Artigo 55.o do Regulamento de Haia de 1907
3) Quanto ao respeito, pelos atos impugnados, do princípio da soberania permanente sobre os recursos naturais e do artigo 55.o do Regulamento de Haia de 1907
c) Quanto às limitações à obrigação de não reconhecimento
4. Resumo
VI. Quanto ao pedido de limitação temporária dos efeitos da declaração de invalidade apresentado pelo Conselho
VII. Conclusão
I. Introdução
1. O presente pedido de decisão prejudicial tem por objeto a validade do Acordo de parceria no domínio da pesca entre a Comunidade Europeia e o Reino de Marrocos (2) (a seguir «Acordo de pesca»), do Protocolo entre a União Europeia e o Reino de Marrocos, que fixa as possibilidades de pesca e a contrapartida financeira previstas no Acordo de pesca (3) (a seguir «Protocolo de 2013») e do Regulamento (UE) n.o 1270/2013 do Conselho, de 15 de novembro de 2013, relativo à repartição das possibilidades de pesca a título do Protocolo de 2013 (4), na medida em que instituem e implementam a exploração, por parte da União Europeia e do Reino de Marrocos, dos recursos marinhos vivos do Sara Ocidental.
2. Trata‑se do primeiro pedido prejudicial relativo à validade de acordos internacionais concluídos pela União, assim como dos seus atos de conclusão. Neste sentido, coloca questões de direito novas, tanto sobre a competência do Tribunal de Justiça para se pronunciar sobre a validade dos acordos internacionais concluídos pela União, como sobre os requisitos que os particulares devem preencher para invocar as regras do direito internacional no âmbito da apreciação da validade destes acordos internacionais, bem como sobre a interpretação de tais regras. Estas questões têm uma importância fundamental no que respeita à fiscalização jurisdicional da ação externa da União e ao processo de descolonização do Sara Ocidental, que está em curso desde os anos 1960.
3. É certo que várias das respostas a estas questões terão ramificações políticas. Todavia, como declarou o Tribunal Internacional de Justiça, «o facto de uma questão jurídica também apresentar aspetos políticos, “como é o caso, devido à natureza das coisas, de tantas questões que surgem na vida internacional”, não é suficiente para a privar do seu caráter de “questão jurídica” e para “retirar ao Tribunal uma competência que lhe é expressamente conferida pelo seu [e]statuto […]”. Independentemente dos aspetos políticos da questão colocada, o Tribunal não pode negar o caráter jurídico de uma questão que o convida a realizar uma tarefa essencialmente judicial […]» (5).
II. Quadro jurídico
A. Acordo de pesca
4. O Acordo de pesca surge na sequência de uma série de acordos concluídos a partir de 1987 no domínio da pesca entre a União e o Reino de Marrocos. A sua celebração foi aprovada em nome da Comunidade pelo Regulamento n.o 764/2006. Em conformidade com o artigo 17.o deste regulamento, entrou em vigor em 28 de fevereiro de 2007 (6).
5. Nos termos do seu preâmbulo e dos artigos 1.o e 3.o, o Acordo de pesca institui uma parceria que tem por finalidade contribuir para a execução eficaz da política da pesca do Reino de Marrocos e, mais amplamente, para a preservação e a exploração sustentáveis e responsáveis dos recursos marinhos vivos, através de regras relativas à cooperação económica, financeira, técnica e científica entre as partes, às condições de acesso dos navios de pesca que arvoram pavilhão de um Estado‑Membro da União às zonas de pesca marroquinas, às modalidades de controlo da pesca nestas zonas, assim como à cooperação entre as empresas do setor da pesca.
6. O artigo 2.o, sob a epígrafe «Definições» prevê o seguinte:
«Para efeitos do presente acordo, do protocolo e do seu anexo, entende‑se por:
a) “Zona de pesca marroquina”, as águas sob a soberania ou jurisdição do Reino de Marrocos;
[…]»
7. O artigo 5.o, sob a epígrafe «Acesso dos navios comunitários às pescarias nas zonas de pesca marroquinas», dispõe que:
«1. Marrocos compromete‑se a autorizar os navios [da União] a exercer atividades de pesca [nas suas zonas de pesca] em conformidade com o presente acordo, incluindo o protocolo e seu anexo.
[…]
4. [A União] compromete‑se a adotar todas as disposições adequadas para assegurar que os seus navios respeitem as disposições do presente acordo, assim como a legislação que rege o exercício da pesca nas águas sob a jurisdição de Marrocos, em conformidade com a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar.»
8. O artigo 7.o, sob a epígrafe «Contrapartida financeira», estabelece que:
«1. [A União] concede a Marrocos uma contrapartida financeira nos termos e condições definidos no protocolo e no seu anexo. Essa contrapartida é definida com base em duas componentes, nomeadamente:
a) Uma compensação financeira pelo acesso dos navios comunitários às zonas de pesca marroquinas, sem prejuízo das taxas devidas pelos navios comunitários no respeitante às licenças;
b) Um apoio financeiro da [União] para a instituição de uma política nacional das pescas baseada na pesca responsável e na exploração sustentável dos recursos haliêuticos nas águas marroquinas.
2. A componente da contrapartida financeira mencionada na alínea b) do n.o 1 é determinada, de comum acordo e nos termos do protocolo, em função da identificação pelas duas partes dos objetivos a realizar no âmbito da política setorial das pescas em Marrocos e segundo uma programação anual e plurianual da sua execução.»
9. O artigo 11.o, sob a epígrafe «Zona de aplicação», prevê o seguinte:
«O presente acordo aplica‑se, por um lado, nos territórios em que é aplicável o Tratado [FUE], nas condições nele previstas, e, por outro, no território de Marrocos e nas águas sob jurisdição marroquina.»
10. O artigo 13.o, sob a epígrafe «Resolução de litígios», prevê que «[a]s partes contratantes consultam‑se em caso de litígio relativo à interpretação ou aplicação do presente acordo».
11. Segundo o artigo 16.o, «[o] protocolo e o seu anexo e apêndices constituem parte integrante do presente acordo». Este protocolo e este anexo com os seus apêndices tinham sido concluídos por um período de quatro anos (7). Por conseguinte, já não estão em vigor, mas são substituídos pelo Protocolo de 2013 juntamente com o seu anexo e respetivos apêndices.
B. Protocolo de 2013
12. Em 18 de novembro de 2013, a União e o Reino de Marrocos assinaram o Protocolo de 2013, que fixa as possibilidades de pesca e a contrapartida financeira previstas no Acordo de pesca. Entrou em vigor em 15 de julho de 2014 (8).
13. O seu artigo 1.o, sob a epígrafe «Princípios gerais», dispõe o seguinte:
«O Protocolo, juntamente com o seu anexo e respetivos apêndices, faz parte integrante do Acordo [de pesca] […] que se inscreve no âmbito do Acordo [de associação]. […]
O presente Protocolo deve ser aplicado de acordo com […] o artigo 2.o do Acordo de Associação, [relativo] ao respeito dos princípios democráticos e dos direitos humanos fundamentais.»
14. O artigo 2.o, sob a epígrafe «Período de aplicação, vigência e possibilidades de pesca», prevê:
«A partir da sua aplicação e pelo período de quatro anos, as possibilidades de pesca concedidas a título do artigo 5.o do Acordo de Pesca são fixadas no quadro anexado ao presente Protocolo.
O n.o 1 é aplicável sob reserva do disposto nos artigos 4.o e 5.o do presente Protocolo.
[…]»
15. Nos termos do artigo 3.o, sob a epígrafe «Contrapartida financeira»:
«1. O valor total anual estimado do Protocolo é de 40 000 000 EUR para o período referido no artigo 2.o Esse montante reparte‑se do seguinte modo:
a) 30 000 000 EUR a título da contrapartida financeira referida no artigo 7.o do Acordo de Pesca, repartidos do seguinte modo:
i) 16 000 000 EUR como compensação financeira para o acesso aos recursos;
ii) 14 000 000 EUR como apoio à política setorial das pescas em Marrocos;
b) 10 000 000 EUR correspondentes ao montante estimado das taxas devidas pelos armadores a título das licenças de pesca emitidas em aplicação do artigo 6.o do Acordo de Pesca e segundo as condições previstas no capítulo I, secções D e E, do anexo do presente Protocolo.
[…]
4. A contrapartida financeira referida no n.o 1, alínea a), é paga em nome do Tesoureiro Geral do Reino de Marrocos numa conta aberta na Tesouraria Geral do Reino de Marrocos, indicada pelas autoridades marroquinas.
5. Sob reserva do disposto no artigo 6.o do presente Protocolo, a afetação dessa contrapartida é da competência exclusiva das autoridades marroquinas.»
16. O artigo 6.o, sob a epígrafe «Apoio à política setorial das pescas em Marrocos», dispõe o seguinte:
«1. A contrapartida financeira prevista no artigo 3.o, n.o 1, alínea a), subalínea ii), do presente Protocolo deve contribuir para o desenvolvimento e execução da política setorial das pescas em Marrocos, no âmbito da estratégia “Halieutis” de desenvolvimento do setor das pescas.
2. A afetação e a gestão dessa contribuição por Marrocos baseiam‑se na identificação pelas Partes, de comum acordo, no âmbito da Comissão Mista, dos objetivos a realizar e da respetiva programação anual e plurianual, em conformidade com a estratégia “Halieutis” de desenvolvimento do setor das pescas, bem como numa estimativa do impacto previsto dos projetos a realizar.
[…]
6. Em função da natureza dos projetos e da duração da sua realização, Marrocos deve apresentar à Comissão Mista um relatório sobre os projetos concluídos no âmbito do apoio setorial previsto no presente Protocolo, que inclua as repercussões económicas e sociais previstas, nomeadamente os efeitos ao nível do emprego, os investimentos e qualquer impacto quantificável das ações realizadas, bem como a sua distribuição geográfica. Estes dados devem ser elaborados com base em indicadores a definir mais pormenorizadamente pela Comissão Mista.
7. Além disso, antes do termo do Protocolo, Marrocos deve apresentar um relatório final sobre a execução do apoio setorial previsto no presente Protocolo, incluindo os elementos referidos nos números anteriores.
8. As Partes devem continuar a acompanhar a execução do apoio setorial, se necessário, após o termo do presente Protocolo, assim como, se for caso disso, no caso da sua suspensão de acordo com as regras previstas no presente Protocolo.
[…]»
C. Regulamento n.o 764/2006
17. Nos termos do seu considerando 1, «[a União] e o Reino de Marrocos negociaram e rubricaram um acordo de parceria no domínio da pesca que concede possibilidades de pesca aos pescadores da [União] nas águas sob a soberania ou jurisdição do Reino de Marrocos».
18. Nos termos do seu artigo 1.o, «[é] aprovado, em nome da [União], [o Acordo de pesca]».
D. Decisão 2013/785/UE
19. Em conformidade com o seu considerando 2, «[a] União negociou com o Reino de Marrocos um novo protocolo que atribui aos navios da União possibilidades de pesca nas águas sob a soberania ou jurisdição do Reino de Marrocos em matéria de pesca».
20. Nos termos do seu artigo 1.o, «[é] aprovado, em nome da União, o Protocolo [de 2013]».
E. Regulamento n.o 1270/2013
21. Em conformidade com o seu considerando 2, «[a] União negociou com o Reino de Marrocos um novo protocolo do Acordo de Parceria atribuindo aos navios da União possibilidades de pesca nas águas sob a soberania ou jurisdição do Reino de Marrocos em matéria de pesca. O novo protocolo foi rubricado em 24 de julho de 2013».
22. O artigo 1.o, n.o 1, reparte entre os Estados‑Membros as possibilidades de pesca fixadas pelo Protocolo de 2013. Segundo esta repartição, o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte beneficia de uma quota de 4 525 toneladas na zona de pesca pelágica industrial.
III. Litígio no processo principal e questões prejudiciais
23. A Western Sahara Campaign UK (a seguir «WSC») é uma organização benévola independente com sede no Reino Unido, que tem por objetivo promover o reconhecimento do direito do povo do Sara Ocidental à autodeterminação.
24. Intentou duas ações conexas contra os Commissioners for Her Majesty’s Revenue and Customs (Administração Tributária e Aduaneira, Reino Unido) e o Secretary of State for Environment, Food and Rural Affairs (ministro do Ambiente, da Alimentação e dos Assuntos rurais, Reino Unido).
25. A Administração Tributária e Aduaneira é a demandada na primeira ação, na qual a WSC impugna o tratamento aduaneiro preferencial concedido aos produtos originários do Sara Ocidental, certificados como produtos originários do Reino de Marrocos. O ministro do Ambiente, da Alimentação e dos Assuntos rurais é o demandado na segunda ação, na qual a WSC impugna a possibilidade conferida ao ministro pelos atos impugnados de emitir licenças de pesca nas águas adjacentes ao Sara Ocidental.
26. Nessas ações, a WSC impugna a legalidade do Acordo Euro‑Mediterrânico que cria uma associação entre as Comunidades Europeias e os seus Estados‑Membros e o Reino de Marrocos, assinado em Bruxelas em 26 de fevereiro de 1996 (JO 2000, L 70, p. 2, a seguir «Acordo de associação») e do Acordo de pesca, na parte em que se aplicam ao Sara Ocidental. Segundo a WSC, estes acordos são inválidos porque são contrários aos princípios gerais do direito da União e ao artigo 3.o, n.o 5, TUE, que obriga a União a respeitar o direito internacional. Neste contexto, a WSC considera que os referidos acordos, concluídos no quadro de uma ocupação ilegal, violam várias regras do direito internacional, nomeadamente o direito do povo do Sara Ocidental à autodeterminação, o artigo 73.o da Carta das Nações Unidas, o princípio da soberania permanente sobre os recursos naturais e as regras do direito internacional humanitário aplicáveis às ocupações militares.
27. A Administração tributária e aduaneira e o ministro do Ambiente, da Alimentação e dos Assuntos rurais contrapõem que a WSC não tem legitimidade para invocar as regras do direito internacional a fim de impugnar a validade dos referidos acordos e que, em todo caso, as ações que intentou para impugnar nos órgãos jurisdicionais ingleses a política do Reino de Marrocos em relação ao Sara Ocidental não são suscetíveis de resolução por via judicial. Quanto ao mérito, afirmam que nada nos referidos acordos permite concluir que a União reconheceu ou prestou assistência à violação de normas imperativas do direito internacional. Além disso, consideram que o facto de o Reino de Marrocos continuar a ocupar o Sara Ocidental não o impede de celebrar um acordo de exploração dos recursos naturais desse território, e que, em todo caso, as partes nos referidos acordos reconhecem que esta exploração deve beneficiar o povo do referido território.
28. Neste contexto, a High Court of Justice (England & Wales), Queen’s Bench Division (Administrative Court) [Tribunal Superior de Justiça (Inglaterra e País de Gales), Secção do foro da Rainha (subsecção administrativa), Reino Unido] considera que «[as instituições da União] continuam a não ter o direito de ser indiferentes à questão de saber onde se situam as fronteiras soberanas de um Estado terceiro, sobretudo quando existe ocupação ilegal do território de outro Estado» (9), sob pena de violação dos princípios da Carta das Nações Unidas e dos princípios que se impõem à União, independentemente da ampla margem de apreciação de que dispõem as instituições da União no domínio das relações externas.
29. O referido órgão jurisdicional considera que, embora o Reino de Marrocos afirme que o Sara Ocidental faz parte do seu território soberano, esta reivindicação não é reconhecida pela comunidade internacional em geral, nem pela União em particular. Em contrapartida, o órgão jurisdicional de reenvio entende que a presença do Reino de Marrocos constitui uma ocupação que qualifica como «ocupação contínua» (10). Assim, a questão consiste em saber se é legítimo que uma organização como a União, que respeita os princípios da Carta das Nações Unidas, conclua com um Estado terceiro um acordo relativo a um território situado fora das fronteiras reconhecidas deste Estado.
30. A este respeito, o referido órgão jurisdicional considera que, embora as instituições da União não cometam um erro manifesto ao concluir que a ocupação contínua do território do Sara Ocidental pelo Reino de Marrocos não impede, à luz do direito internacional, a conclusão de um acordo para a exploração dos recursos naturais do território em causa, a questão de fundo que se coloca consiste em saber se os acordos específicos controvertidos são contrários a determinados princípios do direito internacional e se foi suficientemente tida em conta a vontade da população do Sara Ocidental e dos seus representantes reconhecidos.
31. De acordo com o referido órgão jurisdicional, existem argumentos para concluir que as instituições da União cometeram um erro manifesto de apreciação ao aplicar o direito internacional, no sentido em que os referidos acordos foram concluídos sem que o Reino de Marrocos reconhecesse a sua qualidade de potência administrante e respeitasse tanto as obrigações que decorrem do artigo 73.o da Carta das Nações Unidas como a obrigação de promover a autodeterminação do povo do Sara Ocidental.
32. Nestas circunstâncias, a High Court of Justice (England & Wales), Queen’s Bench Division (Administrative Court) [Tribunal Superior de Justiça (Inglaterra e País de Gales), Secção do foro da Rainha (subsecção administrativa), Reino Unido] decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:
«1) No [Acordo de associação], as referências a “Marrocos” constantes dos artigos 9.o, 17.o e 94.o e do Protocolo n.o 4 dizem exclusivamente respeito ao território soberano de Marrocos conforme reconhecido pelas Nações Unidas e pela União […], e, por conseguinte, impedem que os produtos provenientes do Sara Ocidental que são importados para a UE beneficiem de uma isenção de direitos aduaneiros nos termos do Acordo de associação?
2) No caso de os produtos [provenientes] do Sara Ocidental que são importados para a UE poderem beneficiar de uma isenção de direitos aduaneiros nos termos do Acordo de associação, deve o Acordo de associação ser considerado válido [à luz do] artigo 3.o, n.o 5, do [TUE], que [impõe a obrigação de contribuir para o respeito de] todos os princípios relevantes do direito internacional e [para o respeito dos] princípios da Carta das Nações Unidas, [e tendo] em consideração [a] medida [em que] o Acordo de associação [foi] celebrado [em] benefício do povo sarauí, em seu nome, de acordo com os seus desejos e/ou em consulta com os seus representantes reconhecidos?
3) Deve o Acordo [de pesca] (conforme aprovado e implementado pelo Regulamento n.o 764/2006, pela Decisão 2013/785 e pelo Regulamento n.o 1270/2013), ser considerado válido, [à luz do] artigo 3.o, n.o 5, do [TUE], que [impõe a obrigação de contribuir para o respeito de] todos os princípios relevantes do direito internacional e [para o respeito dos] princípios da Carta das Nações Unidas, [e tendo] em consideração [a] medida [em que] o Acordo de pesca [foi] celebrado [em] benefício do povo sarauí, em seu nome, de acordo com os seus desejos e/ou em consulta com os seus representantes reconhecidos?
4) A [demandante] tem o direito de impugnar a validade de atos jurídicos adotados pela EU, [com fundamento numa] alegada violação do direito internacional pela UE, atendendo em especial:
a) ao facto de que, embora [a demandante] tenha legitimidade nos termos do direito nacional para impugnar a validade dos atos da UE, não invoca nenhum direito ao abrigo do direito da UE; e/ou
b) ao princípio, decorrente do acórdão proferido no processo Ouro Monetário Retirado de Roma em 1943 (TIJ, Recueil, 1954, p. 19), segundo o qual o Tribunal Internacional de Justiça não tem competência para proferir decisões que censurem a conduta, ou que afetem os direitos de um Estado que não [seja parte] em juízo e que não tenha expressado o seu consentimento no sentido de ficar vinculado pelas decisões do [referido] Tribunal?»
33. Por despacho de 23 de novembro de 2016, o órgão jurisdicional de reenvio admitiu a intervenção da Confédération marocaine de l’agriculture et du développement rural (Comader) como parte interessada no processo nele pendente.
IV. Tramitação do processo no Tribunal de Justiça
34. O pedido de decisão prejudicial deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 13 de maio de 2016. Os Governos espanhol, francês e português assim como o Conselho e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas.
35. Por carta de 17 de janeiro de 2017, o Tribunal de Justiça interrogou o órgão jurisdicional de reenvio para saber se, tendo em conta o acórdão de 21 de dezembro de 2016, Conselho/Frente Polisário (C‑104/16 P, EU:C:2016:973), este órgão jurisdicional pretendia manter ou retirar as suas primeira e segunda questões prejudiciais.
36. Por carta de 3 de fevereiro de 2017, o órgão jurisdicional de reenvio retirou a sua primeira e segunda questões prejudiciais por considerar que já não era necessário responder‑lhes.
37. Por carta de 17 de fevereiro de 2017, o Tribunal de Justiça convidou as partes no processo principal e os intervenientes a pronunciarem‑se sobre o eventual impacto do acórdão de 21 de dezembro de 2016, Conselho/Frente Polisário (C‑104/16 P, EU:C:2016:973) na resposta à terceira questão prejudicial e a responderem a uma série de perguntas no prazo de três semanas, o que a WSC, a Comader, os Governos espanhol e francês (11) assim como o Conselho e a Comissão fizeram.
38. Em 6 de setembro de 2017 realizou‑se uma audiência na qual a WSC, a Comader, os Governos espanhol e francês assim como o Conselho e a Comissão apresentaram as suas observações orais.
V. Quanto à terceira e quarta questões prejudiciais
39. Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio interroga o Tribunal de Justiça acerca da validade do Acordo de pesca, conforme aprovado pelo Regulamento n.o 764/2006 e implementado pelo Protocolo de 2013 (aprovado pela Decisão 2013/785), assim como pelo Regulamento n.o 1270/2013, tendo em conta, por um lado, o artigo 3.o, n.o 5, TUE, que impõe à União a obrigação de «contribui[r] para a rigorosa observância […] do direito internacional [e para] o respeito dos princípios da Carta das Nações Unidas» e, por outro, a medida em que este acordo foi celebrado ema benefício do povo sarauí, em seu nome, de acordo com os seus desejos e/ou em consulta com os seus representantes reconhecidos.
40. Com a sua quarta questão, o órgão jurisdicional de reenvio interroga o Tribunal de Justiça sobre os requisitos de invocabilidade do direito internacional no âmbito da fiscalização jurisdicional dos atos da União através de um pedido de decisão prejudicial relativo à validade.
41. Em meu entender, estas questões prejudiciais encontram‑se estreitamente relacionadas e devem ser apreciadas em conjunto.
A. Quanto à competência do Tribunal de Justiça
42. A terceira questão prejudicial visa o Acordo de pesca (conforme completado pelo Protocolo de 2013) e convida o Tribunal de Justiça a pronunciar‑se sobre a validade deste acordo internacional concluído pela União. Todavia, refere igualmente os atos de aprovação e de implementação deste acordo adotados pelo Conselho.
43. O Conselho considera que o Tribunal de Justiça não é competente para decidir, a título prejudicial, da validade do Acordo de pesca, uma vez que, enquanto acordo internacional, não é um ato adotado por uma das instituições, na aceção do artigo 267.o, primeiro parágrafo, alínea b), TFUE. Segundo o Conselho, a validade de um acordo internacional concluído pela União apenas pode ser apreciada antes da sua conclusão, através do processo de parecer instituído pelo artigo 218.o, n.o 11, TFUE. A título subsidiário, o Conselho, acompanhado pela Comissão e pelos Governos espanhol e francês, entende que se pode considerar que o pedido de decisão prejudicial tem, na realidade, por objeto a validade dos atos que aprovaram a celebração do Acordo de pesca e do Protocolo de 2013, ou seja, o Regulamento n.o 764/2006 e a Decisão 2013/785.
44. Em meu entender, esta exceção de incompetência deve ser rejeitada pelas razões apresentadas em seguida.
45. Nos termos do artigo 267.o, primeiro parágrafo, alínea b), TFUE, o Tribunal de Justiça é competente para decidir a título prejudicial «[s]obre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições […] da União».
46. É jurisprudência constante que, para efeitos desta disposição, um acordo internacional concluído pela União constitui, «relativamente [a esta], um ato adotado por uma das instituições [da União]», na aceção do artigo 267.o TFUE (12). Com base no exposto, o Tribunal de Justiça teve frequentemente oportunidade de interpretar, a título prejudicial, as disposições de tais acordos concluídos pela União (13), entre os quais o Acordo de pesca (14).
47. Além disso, segundo o Tribunal de Justiça, a fiscalização prejudicial de validade é extensível a todos os atos das instituições «sem qualquer exceção» (15), tendo o Tratado FUE, «nos seus artigos 263.o e 277.o, por um lado, e no seu artigo 267.o, por outro, estabelecido um sistema completo de vias de recurso e de meios processuais destinado a garantir a fiscalização da legalidade dos atos da União, confiando‑a ao juiz da União» (16).
48. Assim, os acordos internacionais concluídos pela União pertencem simultaneamente à ordem jurídica internacional, por serem celebrados com um terceiro, e à ordem jurídica da União.
49. Embora na ordem jurídica internacional a nulidade de um acordo internacional apenas possa ocorrer por um dos motivos exaustivamente enumerados nos artigos 46.o a 53.o da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, concluída em Viena em 23 de maio de 1969 (17) (a seguir «Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados»), resulta do artigo 218.o, n.o 11, TFUE, que «[a]s disposições de um […] acordo [concluído pela União] devem […] ser plenamente compatíveis com os Tratados [UE e FUE] e com os princípios constitucionais que deles decorrem» (18).
50. Para evitar ao máximo as complicações jurídicas e de política internacional resultantes da incompatibilidade com os Tratados UE e FUE de um acordo internacional concluído pela União que continua a ser válido no direito internacional, os autores dos referidos Tratados criaram o processo preventivo de parecer previsto atualmente no artigo 218.o, n.o 11, TFUE.
51. Aliás, a fim de fundamentar a sua competência para apreciar a compatibilidade dos acordos internacionais no âmbito do processo de parecer, o Tribunal de Justiça baseou‑se no facto de esta competência lhe ser, em todo caso, conferida ao abrigo dos artigos 258.o, 263.o e 267.o TFUE. Com efeito, declarou que «[era] em princípio suscetível de ser submetida ao Tribunal, quer diretamente, com base no artigo [258.o] ou no artigo [263.o] do Tratado, quer a título prejudicial, a questão de saber se a conclusão de determinado acordo se inscreve ou não nas competências da [União] e, nesse caso, se essas competências foram exercidas em conformidade com as disposições do Tratado» (19).
52. Assim, o Tribunal de Justiça é competente para apreciar «quaisquer questões passíveis de suscitar dúvidas quanto à validade material ou formal do acordo [internacional] face aos Tratados [UE e FUE]» (20).
53. Neste sentido, para evitar as complicações acima referidas, quando o Tribunal de Justiça tiver proferido um parecer negativo sobre a compatibilidade de um acordo internacional «projetado» com os Tratados UE e FUE, esse acordo não pode entrar em vigor, a menos que tenha sido previamente modificado (21). Em qualquer caso, o Tribunal de Justiça poderá fiscalizar ex post a compatibilidade (22) material ou formal do acordo com os Tratados UE e FUE se for chamado a decidir de um recurso de anulação ou de um reenvio prejudicial relativo à validade.
54. Resulta do exposto que o Tribunal de Justiça é competente para fiscalizar a validade do ato do Conselho que aprova a celebração de um acordo internacional (23), o que inclui a fiscalização da legalidade interna dessa decisão à luz do acordo em causa (24). Neste contexto, o Tribunal de Justiça pode fiscalizar a legalidade do ato do Conselho (incluindo as disposições do acordo internacional cuja celebração aprova) à luz dos Tratados UE e FUE assim como dos princípios constitucionais que daí decorrem, entre os quais o respeito dos direitos fundamentais (25) e do direito internacional (26), em conformidade com o artigo 3.o, n.o 5, TUE.
55. Consequentemente, o Tribunal de Justiça é competente para anular (no caso de um recurso de anulação) ou declarar inválida (no caso de um pedido de decisão prejudicial) a decisão do Conselho que aprova a celebração do acordo internacional em causa (27) e para declarar a incompatibilidade desse acordo com os Tratados UE e FUE e com os princípios constitucionais que daí decorrem.
56. Neste caso, o acordo internacional continua a vincular as partes ao direito internacional, cabendo às instituições da União eliminar as incompatibilidades entre esse acordo e os Tratados UE e FUE, assim como com os princípios constitucionais que daí decorrem (28). Quando a eliminação das incompatibilidades se revelar impossível, devem denunciar o acordo ou retirar‑se dele (29), em conformidade com o procedimento previsto nos artigos 56.o e 65.o a 68.o da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (30) e, no caso em apreço, no artigo 14.o do Acordo de pesca. Neste sentido, pode ser efetuada uma analogia com o artigo 351.o TFUE, que visa a mesma situação em relação aos Tratados concluídos pelos Estados‑Membros antes da sua adesão à União.
57. Por último, há que precisar que o princípio enunciado pelo Tribunal Internacional de Justiça no processo Ouro Monetário Retirado de Roma em 1943 (31) e referido pela quarta questão prejudicial, segundo o qual esse órgão jurisdicional não pode exercer a sua competência para dirimir um litígio entre dois Estados quando, para fazê‑lo, tenha de apreciar a conduta de um Estado terceiro que não é parte no processo (32), não tem, como afirmam o Conselho e a Comissão, relevância no caso em apreço. Com efeito, este princípio, que figura no Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça, não existe no Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia e, em todo caso, não poderia existir no direito da União uma vez que excluiria oficiosamente a possibilidade de fiscalizar a compatibilidade dos acordos internacionais concluídos pela União com os Tratados UE e FUE sempre que o Estado terceiro que assinou o acordo com a União não tivesse participado no processo.
58. Tendo em conta estas considerações, as questões prejudiciais pretendem estabelecer:
– a validade do Regulamento n.o 764/2006, na medida em que aprova o Acordo de pesca «que concede possibilidades de pesca aos pescadores da [União] nas águas sob a soberania ou jurisdição do Reino de Marrocos» (33);
– a validade da Decisão 2013/785/UE, na medida em que aprova o Protocolo de 2013, «[que atribui] aos navios da União possibilidades de pesca nas águas sob a soberania ou jurisdição do Reino de Marrocos em matéria de pesca» (34), e fixa a contrapartida financeira para esta exploração;
– a validade do Regulamento n.o 1270/2013, na medida em que reparte entre os Estados‑Membros as possibilidades de pesca a título do Protocolo de 2013, e,
– a compatibilidade do Acordo de pesca e do Protocolo de 2013 com os Tratados UE e FUE e com os princípios constitucionais que daí decorrem, entre os quais, nomeadamente, a proteção dos direitos fundamentais e o respeito do direito internacional que o artigo 3.o, n.o 5, TUE impõe à ação externa da União.
59. Em seguida, irei referir‑me a todos estes atos como «atos impugnados».
B. Quanto ao mérito
1. Observações preliminares
60. Tanto as partes no processo principal como os intervenientes no Tribunal de Justiça consideram que os atos impugnados são aplicáveis ao território do Sara Ocidental e às águas adjacentes. Todavia, tal constatação não resulta de forma evidente da redação do Acordo de pesca e do Protocolo de 2013. Com efeito, nenhuma das suas disposições refere expressamente o Sara Ocidental.
61. Assim, antes de mais, importa apreciar se os atos impugnados são aplicáveis ao Sara Ocidental, uma vez que, se assim não for, a sua validade não pode ser contestada à luz das normas invocadas pelo órgão jurisdicional de reenvio e pela WSC (35).
62. Em meu entender, uma interpretação do Acordo de pesca e do Protocolo de 2013 conforme às regras de interpretação dos Tratados estabelecidas no artigo 31.o da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados conduz à conclusão de que são efetivamente aplicáveis ao território do Sara Ocidental e às águas adjacentes, e isto pelas seguintes razões.
63. Nos termos do artigo 31.o, n.o 1, dessa convenção, «[u]m tratado deve ser interpretado de boa‑fé, de acordo com o sentido comum a atribuir aos termos do tratado no seu contexto e à luz dos respetivos objeto e fim». Em conformidade com o seu n.o 2, «o contexto compreende, além do texto, preâmbulo e anexos incluídos[, q]ualquer acordo relativo ao tratado e que tenha sido celebrado entre todas as Partes quando da conclusão do tratado». Assim, o contexto inclui o Protocolo de 2006, que já não está em vigor mas cujo teor era, essencialmente idêntico ao do Protocolo de 2013 no que respeita ao âmbito de aplicação do Acordo de pesca.
64. O artigo 31.o, n.o 3, da referida convenção impõe igualmente que se tenha em consideração simultaneamente com o contexto, nomeadamente, «[t]odo o acordo posterior entre as Partes sobre a interpretação do tratado ou a aplicação das suas disposições». Por conseguinte, para interpretar o âmbito de aplicação do Acordo de pesca, é necessário ter em conta as disposições pertinentes do Protocolo de 2013.
65. No caso em apreço, nos termos do seu artigo 11.o, o Acordo de pesca é aplicável, no que respeita ao Reino de Marrocos, «no território de Marrocos e nas águas sob jurisdição marroquina». O artigo 2.o, alínea a), deste acordo define os termos «zona de pesca marroquina» na qual é efetuada a exploração haliêutica prevista neste acordo como «as águas sob a soberania ou jurisdição do Reino de Marrocos» (36).
66. Estes termos são especificados nos apêndices 2 e 4 do anexo ao Protocolo 2013. A pedido do Tribunal de Justiça, a Comissão apresentou seis mapas que demonstram a extensão das zonas de pescas em conformidade com as especificações dadas nestes apêndices:

67. Como resulta destes mapas, a zona de pesca n.o 3 (cat. 3: pesca artesanal a sul) estende‑se a sul do paralelo 30°40’00"N e além de 3 milhas marítimas; a zona de pesca n.o 4 (cat. 4: pesca demersal) estende‑se a sul do paralelo 29°N e além da isóbata de 200 metros no que respeita aos arrastões e além de 12 milhas marítimas no que respeita aos palangreiros; a zona de pesca n.o 5 (cat. 5: pesca de atum) abrange toda a zona atlântica de Marrocos além de 3 milhas marítimas, com exceção do perímetro de proteção situado a leste da linha que une os pontos 33°30’N/7°35’W e 35°48’N/6°20’W, e a zona de pesca n.o 6 (cat. 6: pesca pelágica industrial) estende‑se a sul do paralelo 29°N e além das 15 milhas marítimas no que respeita aos arrastões congeladores e além de 8 milhas marítimas no que respeita aos arrastões RSW (37).
68. Quanto a esta última zona de pesca, resulta da ata da terceira Comissão Mista do Acordo de pesca, que se reuniu em Bruxelas em 17 e 18 de março de 2008, que a União e o Reino de Marrocos acordaram que a atividade dessa zona apenas podia realizar‑se a sul do paralelo 26°07’N. Com efeito, o capítulo III do anexo do Protocolo de 2013 assim como o apêndice 4 deste anexo permitem ao Reino de Marrocos alterar unilateralmente estas coordenadas geográficas desde que comunique qualquer alteração à Comissão com, pelo menos, um mês de antecedência
69. O limite meridional destas zonas de pesca não é precisado nem no Acordo de pesca nem no Protocolo de 2013 (38). Uma vez que a fronteira entre o Sara Ocidental e o Reino de Marrocos se situa no paralelo 27°42’N (Ponto Stafford) (39), apenas a zona de pesca n.o 6 abrange, por acordo posterior entre a União e o Reino de Marrocos, explicitamente as águas adjacentes ao Sara Ocidental. Todavia, resulta dos mapas apresentados pela Comissão que as zonas de pesca n.os 3 a 5 vão até à fronteira marítima entre a República Islâmica da Mauritânia e o Sara Ocidental, abrangendo assim as águas adjacentes a este último.
70. Por outro lado, as quantidades de capturas por zona de pesca fornecidas pela Comissão na audiência confirmam que o Acordo de pesca e o Protocolo de 2013 se aplicam quase exclusivamente às águas adjacentes ao Sara Ocidental (40). Segundo os números da Comissão, as capturas efetuadas apenas na zona de pesca n.o 6 representam cerca de 91,5% das capturas totais efetuadas no âmbito do Acordo de pesca e do Protocolo de 2013. Isto demonstra claramente que a aplicação do Acordo de pesca e do Protocolo de 2013 às águas adjacentes ao Sara Ocidental corresponde exatamente ao que as partes previram desde o início.
71. No que respeita à aplicação do Acordo de pesca e do Protocolo de 2013 em terra firme, o artigo 3.o, n.o 1, alínea a), ii), do Protocolo de 2013 prevê que uma parte da contrapartida financeira paga pela União ao Reino de Marrocos e equivalente a 14 milhões de euros é‑o enquanto apoio à política setorial da pesca no Reino de Marrocos, o que, segundo o Conselho e a Comissão, inclui os investimentos em infraestrutura efetuados no território do Sara Ocidental. Além disso, o capítulo X do anexo do Protocolo de 2013 prevê que uma parte das capturas deve ser desembarcada nos portos marroquinos, o que, segundo o Conselho e a Comissão, inclui os portos do Sara Ocidental. Por último, segundo o Conselho e a Comissão, o Acordo de pesca e o Protocolo de 2013 devem beneficiar o povo do Sara Ocidental, o que, por si só, constitui uma aplicação em terra firme deste acordo e deste protocolo.
72. Em segundo lugar, a constatação de que o Acordo de pesca é aplicável ao Sara Ocidental e às águas adjacentes é apoiada pela sua génese. Com efeito, como afirma a Comissão, o Acordo de pesca tem origem nos acordos de pesca concluídos com o Reino de Marrocos pelo Reino de Espanha antes da sua adesão à União (41), que visavam as águas adjacentes ao Sara Ocidental enquanto águas sob jurisdição marroquina (42). Observo igualmente que os acordos de pesca concluídos entre a União e o Reino de Marrocos a partir de 1988 já deram lugar a vários processos relativos à pesca nas águas adjacentes ao Sara Ocidental (43). Neste sentido, considero que, tal como os seus predecessores, o Acordo de pesca e o Protocolo de 2013 mais não fazem do que retomar e prosseguir as atividades de pesca do Reino de Espanha já existentes nas águas adjacentes ao Sara Ocidental antes da adesão deste Estado‑Membro à União.
73. Em terceiro e último lugar, o artigo 31.o, n.o 4, da referida convenção confere uma importância primordial às intenções das partes ao precisar que «[u]m termo será entendido num sentido particular se estiver estabelecido que tal foi a intenção das Partes». Em meu entender, a intenção da União e do Reino de Marrocos era que o acordo de pesca fosse aplicável ao Sara Ocidental e às águas adjacentes enquanto águas sob soberania ou jurisdição marroquina. Em 1976, o Reino de Marrocos anexou a parte do Sara Ocidental a norte da linha direita que parte do ponto de interseção da costa atlântica com o paralelo 24°N e se dirige para o ponto de interseção do paralelo 23°N com o meridiano 13°W (44), em conformidade com a Convenção relativa ao traçado da fronteira de Estado estabelecido entre a República Islâmica da Mauritânia e o Reino de Marrocos, celebrada em Rabat em 14 de abril de 1976 (45). A anexação do Sara Ocidental pelo Reino de Marrocos foi completada em 1979 pela integração da parte meridional do Sara Ocidental (46) que esta convenção havia concedido à República Islâmica da Mauritânia. Assim, o Reino de Marrocos considera que o Sara Ocidental está abrangido pela sua soberania e que, por conseguinte, as águas adjacentes se encontram abrangidas pelo âmbito de aplicação do Acordo de pesca e do Protocolo de 2013.
74. No que respeita à União, resulta claramente das declarações efetuadas por vários Estados‑Membros no Conselho no momento da aprovação do Protocolo de 2013 que tanto este como o Acordo de pesca são aplicáveis ao Sara Ocidental (47). Aliás, como explicam o órgão jurisdicional de reenvio e a Comissão, foi por esta razão que o Parlamento Europeu bloqueou, numa primeira fase, a renegociação do protocolo que fixa as possibilidades de pesca e a contrapartida financeira previstas pelo Acordo de pesca. Foi por esta mesma razão que o Reino da Dinamarca e o Reino da Suécia votaram contra a aprovação da conclusão do referido protocolo, que o Reino dos Países Baixos (48), a República da Finlândia e o Reino Unido se abstiveram e que a República Federal da Alemanha, a Irlanda e a República da Áustria manifestaram reservas (49).
75. Neste contexto, contrariamente ao Acordo de associação objeto do acórdão de 21 de dezembro de 2016, Conselho/Frente Polisário (C‑104/16 P, EU:C:2016:973), a intenção das partes está manifestamente demonstrada: o Acordo de pesca e o Protocolo de 2013 são aplicáveis ao Sara Ocidental e às águas adjacentes. Por conseguinte, cabe ao Tribunal de Justiça apreciar se esta intenção, executada pelos atos impugnados, afeta a legalidade destes últimos à luz do artigo 3.o, n.o 5, TUE e das regras do direito internacional invocadas pela WSC.
2. Invocabilidade das regras do direito internacional para impugnar a validade dos atos impugnados
a) Princípios gerais
76. A argumentação da WSC visa, no essencial, pôr em causa os atos impugnados sob dois aspetos. Em primeiro lugar, a WSC alega que a União não tem legitimidade para concluir com o Reino de Marrocos acordos aplicáveis ao território do Sara Ocidental e às águas adjacentes. Em segundo lugar, mesmo admitindo que a União tem legitimidade para concluir tais acordos, a WSC afirma que os atos impugnados são, quanto ao seu conteúdo, inválidos à luz do artigo 3.o, n.o 5, TUE e do direito internacional. Por necessidades de argumentação, a WSC invoca várias regras do direito internacional, nomeadamente o direito dos povos à autodeterminação, o artigo 73.o da Carta das Nações Unidas, o princípio da soberania permanente sobre os recursos naturais e o direito internacional humanitário, na medida em que as suas regras visam a celebração de acordos internacionais aplicáveis aos territórios ocupados e a exploração dos seus recursos naturais. Na audiência, precisou que não contestava a validade dos atos impugnados à luz do direito internacional do mar.
77. Neste contexto, com base nos princípios enunciados no acórdão de 21 de dezembro de 2011, Air Transport Association of America e o. (C‑366/10, EU:C:2011:864), o ministro do Ambiente, da Alimentação e dos Assuntos rurais, a Comader, os Governos espanhol, francês e português, o Conselho e a Comissão contestam a possibilidade de a WSC invocar estas regras de direito internacional.
78. Há que recordar que, segundo os n.os 51 a 55 do acórdão de 21 de dezembro de 2011, Air Transport Association of America e o. (C‑366/10, EU:C:2011:864), a invocabilidade das regras de direito internacional convencional está sujeita aos requisitos seguintes: a União deve estar vinculada por essas regras; o seu conteúdo deve ser incondicional e suficientemente preciso, e, por último, a sua natureza e sistemática não se devem opor à fiscalização jurisdicional do ato impugnado.
79. Nos termos dos n.os 101 a 103 e 107 do acórdão de 21 de dezembro de 2011, Air Transport Association of America e o. (C‑366/10, EU:C:2011:864), a invocabilidade das regras de direito internacional consuetudinário está sujeita aos requisitos seguintes: essas regras devem ser suscetíveis de pôr em causa a competência da União para adotar o ato impugnado e este último deve ser suscetível de afetar direitos do sujeito jurídico derivados do direito da União ou de gerar obrigações para o mesmo à luz deste direito.
80. Em meu entender, embora os particulares devam preencher determinados requisitos para poder invocar as regras do direito internacional no âmbito da fiscalização jurisdicional dos atos da União, os princípios enunciados nesse acórdão não são automaticamente transponíveis para o presente processo. Com efeito, esses princípios visam a fiscalização jurisdicional de atos unilaterais de direito derivado puramente internos (regulamentos, diretivas, etc.) (50) ao passo que, como afirma a Comissão (51), o presente processo coloca a questão, distinta, da validade de um acordo internacional concluído pela União através do ato que aprova a sua celebração (direito derivado convencional) (52).
81. A este respeito, cabe recordar que a qualidade de membro da Organização das Nações Unidas (ONU) está reservada aos Estados (53). Não sendo membro da ONU, a União não é parte no Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça, conforme previsto para os membros da ONU no artigo 93.o da Carta das Nações Unidas. Além disso, o artigo 34.o do Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça limita aos Estados a possibilidade de ser parte perante esse tribunal.
82. Daqui resulta que a fiscalização da ação externa da União não está abrangida pela competência de uma jurisdição internacional, nem sequer do Tribunal Internacional de Justiça. Por conseguinte, mesmo na hipótese de a sua ação violar as normas imperativas do direito internacional na aceção do artigo 53.o da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados ou as obrigações do direito internacional consuetudinário denominadas «erga omnes» (54), nenhum órgão jurisdicional internacional é competente para se pronunciar sobre tal violação.
83. Todavia, alguns acordos internacionais permitem à União «submeter[‑se] às decisões de uma jurisdição criada ou designada em virtude de tais acordos, no que diz respeito à interpretação e à aplicação das suas disposições», faculdade que lhe é reconhecida pela jurisprudência do Tribunal de Justiça(55).
84. Não é o caso do Acordo de pesca, cujo artigo 13.o, sob a epígrafe «Resolução de litígios», prevê que «[a]s partes contratantes consultam‑se em caso de litígio relativo à interpretação ou aplicação do presente acordo». Uma vez que não criou uma jurisdição, independente e imparcial, competente para resolver eventuais litígios originados no âmbito do Acordo de pesca, a sua resolução depende da boa vontade das partes, pelo que, assim, cada uma destas pode facilmente bloqueá‑lo (56).
85. Assim, se o Tribunal de Justiça é, por defeito, o único órgão jurisdicional competente para fiscalizar a ação externa da União e verificar que esta ação contribui para «a rigorosa observância […] do direito internacional [e] o respeito dos princípios da Carta das Nações Unidas» (57), não surpreende que tenha declarado que «o exercício das competências atribuídas às instituições [da União] no domínio internacional não pode ser subtraído ao controlo jurisdicional de legalidade» (58).
86. Neste contexto, embora os particulares devam cumprir determinados requisitos para poder invocar o direito internacional a fim de impugnarem a compatibilidade de um acordo internacional concluído pela União com o artigo 3.o, n.o 5, TUE, esses requisitos não podem tornar impossível na prática uma fiscalização jurisdicional efetiva da ação externa da União.
87. Ora, em meu entender, isso ocorreria se os princípios enunciados no caso visado no acórdão de 21 de dezembro de 2011, Air Transport Association of America e o. (C‑366/10, EU:C:2011:864), fossem transpostos, sem alterações, para a fiscalização de validade dos atos impugnados.
88. Com efeito, algumas regras do direito internacional invocadas no presente processo são simultaneamente regras do direito consuetudinário e regras do direito convencional, uma vez que foram codificadas em vários tratados e convenções internacionais, enquanto outra regras, como o direito à autodeterminação, fazem parte do direito internacional geral (59) e, a este título, não se encontram exclusivamente abrangidas pelo direito internacional convencional ou consuetudinário, cuja invocabilidade foi abordada pelo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 21 de dezembro de 2011, Air Transport Association of America e o. (C‑366/10, EU:C:2011:864).
89. Além disso, se foi para não excluir oficiosamente a invocabilidade das regras do direito internacional consuetudinário que o Tribunal de Justiça estabeleceu requisitos de invocabilidade distintos dos requisitos de invocabilidade do direito internacional convencional, seria contrário a este objetivo subordinar, como propõem o ministro do Ambiente, da Alimentação e dos Assuntos rurais, os Governos espanhol, francês e português assim como o Conselho e a Comissão, a invocabilidade das regras do direito internacional geral aos requisitos de invocabilidade das regras do direito internacional consuetudinário, quando preenchem os requisitos de invocabilidade previstos nas regras do direito internacional convencional.
90. Essa solução excluiria oficiosamente a possibilidade de os particulares invocarem regras do direito internacional, todavia essenciais, como as normas imperativas do direito internacional geral ou as obrigações do direito internacional denominadas «erga omnes», e isto pelas seguintes razões.
91. Antes de mais, de acordo com o primeiro requisito de invocabilidade das regras do direito internacional consuetudinário estabelecido pelo Tribunal de Justiça no caso em que o ato impugnado é um ato de direito derivado unilateral puramente interno, as regras invocadas devem ser suscetíveis de pôr em causa a competência da União para adotar esse ato. Recordo que no processo que deu origem ao acórdão de 21 de dezembro de 2011, Air Transport Association of America e o. (C‑366/10, EU:C:2011:864), assim como nos processos que deram origem aos acórdãos referidos no n.o 107 desse acórdão, estava em causa a competência da União para adotar o ato impugnado, em relação ao qual era alegado que produzia efeitos extraterritoriais.
92. No presente processo, ninguém contesta a competência (60) da União para celebrar o Acordo de pesca e o Protocolo de 2013 ou para adotar o Regulamento n.o 764/2006, a Decisão 2013/785 e o Regulamento n.o 1270/2013. Pelo contrário, a WSC contesta a compatibilidade do Acordo de pesca e do Protocolo de 2013 com o direito primário da União, assim como a legalidade interna do Regulamento n.o 764/2006, da Decisão 2013/785/UE e do Regulamento n.o 1270/2013. Seria absurdo limitar a fiscalização dos atos impugnados apenas à questão da competência da União e excluir oficiosamente a sua fiscalização material à luz das normas mais essenciais do direito internacional que são invocadas no presente processo.
93. Em seguida, a aplicação do segundo requisito de invocabilidade das regras do direito internacional consuetudinário no âmbito de um processo como o que está em causa revela‑se ainda mais problemática. Segundo este requisito, o ato impugnado deve ser suscetível de afetar os direitos do sujeito jurídico derivados do direito da União ou de gerar obrigações para o mesmo à luz deste direito (61).
94. No caso em apreço, os atos impugnados apenas conferem direitos e obrigações à União e ao Reino de Marrocos. Com efeito, não vislumbro nenhuma disposição nesses atos que crie direitos ou obrigações para outros particulares além daqueles que podem, potencialmente (mas duvido), criar para os armadores da União cujos navios possuem uma licença de pesca emitida no âmbito do Acordo de pesca. Por conseguinte, mesmo admitindo que uma categoria de particulares possa desencadear a fiscalização jurisdicional dos atos impugnados segundo este requisito, seria exclusivamente composta por aqueles que beneficiam do Acordo de pesca e que, por conseguinte, não têm qualquer interesse em impugná‑lo judicialmente.
95. Por último, qual o motivo para limitar a fiscalização jurisdicional «à questão de saber se as instituições da União, ao adotarem o ato em causa, cometeram erros manifestos de apreciação quanto às condições de aplicação desses princípios» (62), quando estes princípios assumem «o mesmo grau de precisão que uma disposição de um acordo internacional» (63) em razão da sua codificação?
96. Para concluir este ponto, considero que no âmbito da fiscalização jurisdicional dos acordos internacionais celebrados pela União assim como dos atos da União que aprovam ou executam tais acordos a invocabilidade das regras do direito internacional deve certamente ser sujeita a determinadas requisitos, mas independentemente da sua pertença formal a uma ou várias fontes do direito internacional em função da classificação efetuada no artigo 38.o, n.o 1, do Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça. Estes requisitos são os enunciados nos n.os 53 a 55 do acórdão de 21 de dezembro de 2011, Air Transport Association of America e o. (C‑366/10, EU:C:2011:864), segundo as quais a União deve estar vinculada pela regra invocada, cujo conteúdo deve ser incondicional e suficientemente preciso e, por último, cuja natureza e sistemática não se oponham à fiscalização jurisdicional do ato impugnado.
97. É à luz destes princípios que apreciarei a invocabilidade das regras do direito internacional invocadas pela WSC que são relevantes no presente processo.
b) Quanto à invocabilidade das regras de direito internacional aplicáveis à conclusão de acordos internacionais que visam a exploração de recursos naturais do Sara Ocidental
98. Com os atos impugnados, a União concluiu com o Reino de Marrocos e implementou um acordo internacional que prevê a exploração, pela União, dos recursos haliêuticos do Sara Ocidental. Neste contexto, apreciarei a invocabilidade das regras do direito internacional que podem pôr em causa tanto a conclusão com o Reino de Marrocos de um acordo internacional aplicável ao Sara Ocidental e às águas adjacentes como a exploração dos recursos naturais deste território. Para tal, terei em conta que o Reino de Marrocos se considera soberano do Sara Ocidental, que, do ponto de vista das instituições da União, o Reino de Marrocos é a potência administrante de facto do Sara Ocidental e que para o órgão jurisdicional de reenvio e a WSC é a potência ocupante do Sara Ocidental.
1) Direito à autodeterminação
i) O direito à autodeterminação faz parte dos direitos do Homem
99. Antes de mais, considero que o direito à autodeterminação não está sujeito aos requisitos de invocabilidade das regras do direito internacional, uma vez que faz parte dos direitos do Homem.
100. Como o Tribunal de Justiça declarou nos n.os 284 e 285 do acórdão de 3 de setembro de 2008, Kadi e Al Barakaat Internacional Foundation/Conselho e Comissão (C‑402/05 P e C‑415/05 P, EU:C:2008:461), o respeito dos direitos do Homem é um requisito da legalidade dos atos da União e não podem ser admitidas na ordem jurídica da União medidas incompatíveis com o respeito destes direitos. Assim, as obrigações impostas por um acordo internacional não podem ter por efeito a violação dos princípios constitucionais dos Tratados UE e FUE, tais como o artigo 3.o, n.o 5, TUE e artigo 21.o TUE, segundo os quais a ação externa da União deve respeitar os direitos do Homem. Por conseguinte, incumbe ao Tribunal de Justiça garantir este respeito no âmbito do sistema completo de vias de recurso estabelecido pelos Tratados UE e FUE.
101. Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, «os direitos fundamentais fazem parte integrante dos princípios gerais de direito cujo respeito é assegurado pelo Tribunal de Justiça. Para este efeito, o Tribunal inspira‑se nas tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros e nas indicações fornecidas pelos instrumentos internacionais relativos à proteção dos direitos do Homem, em que os Estados‑Membros colaboraram ou a que aderiram» (64).
102. Todos os Estados‑Membros (e o Reino de Marrocos) são partes no Pacto internacional dos direitos económicos, sociais e culturais (PIDESC) (65) e no Pacto internacional dos direitos civis e políticos (PIDCP) (66), assinados em Nova Iorque em 16 de dezembro de 1966, cujo artigo 1.o comum dispõe o seguinte:
«1. Todos os povos têm o direito a dispor deles mesmos. Em virtude deste direito, eles determinam livremente o seu estatuto político e asseguram livremente o seu desenvolvimento económico, social e cultural.
2. Para atingir os seus fins, todos os povos podem dispor livremente das suas riquezas e dos seus recursos naturais, sem prejuízo das obrigações que decorrem da cooperação económica internacional, fundada sobre o princípio do interesse mútuo e do direito internacional. Em nenhum caso poderá um povo ser privado dos seus meios de subsistência.
3. Os Estados Partes no presente [p]acto, incluindo aqueles que têm responsabilidade pela administração dos territórios não autónomos e territórios sob tutela, devem promover a realização do direito dos povos a disporem deles mesmos e respeitar esse direito, em conformidade com as disposições da Carta das Nações Unidas» (67).
103. Além disso, o título VIII da Ata Final de Helsínquia de 1975, sob a epígrafe «Igualdade de direitos dos povos e direito dos povos à autodeterminação», a que se refere o artigo 21.o, n.o 2, alínea c), TUE e na qual todos os Estados‑Membros são partes, consagra o direito à autodeterminação em termos quase idênticos aos do artigo 1.o comum ao PIDESC e ao PIDCP. Este título dispõe o seguinte:
«Os Estados participantes devem respeitar a igualdade de direitos dos povos e o seu direito à livre determinação, atuando sempre em conformidade com as finalidades e os princípios da Carta das Nações Unidas e com as normas pertinentes do direito internacional, incluindo as relativas à integridade territorial dos Estados.
Em virtude do princípio da igualdade de direitos e da livre determinação dos povos, todos os povos têm sempre o direito de determinar, em total liberdade, quando e como entendam, o seu estatuto político interno e externo, sem ingerência externa, e de prosseguir de acordo com a sua vontade o seu desenvolvimento político, económico, social e cultural.
Os Estados participantes reafirmam a importância universal do respeito e do exercício efetivo da igualdade de direitos e da livre determinação dos povos, para o desenvolvimento de relações de amizade entre si e entre todos os Estados; recordam igualmente a importância da eliminação de todas as formas de violação deste princípio.»
104. Assim, o direito à autodeterminação é um direito do homem que foi reconhecido enquanto tal por várias instâncias e instrumentos internacionais, assim como pela doutrina (68). Segundo o Tribunal Internacional de Justiça, os beneficiários deste direito são os povos dos territórios não autónomos na aceção do artigo 73.o da Carta das Nações Unidas e aqueles que estão sujeitos à «subjugação» (69), à dominação ou à exploração estrangeiras (70).
ii) Direito à autodeterminação enquanto princípio do direito internacional geral, do direito internacional convencional e obrigação erga omnes
105. Em todo caso, enquanto regra do direito internacional geral (71) e obrigação erga omnes (72) codificada em vários instrumentos internacionais convencionais (73), o direito à autodeterminação cumpre os critérios de invocabilidade enunciados no n.o 96 das presentes conclusões, ou seja, vincula a União, o seu conteúdo é incondicional e suficientemente preciso e a sua natureza e sistemática não se opõem à fiscalização jurisdicional dos atos impugnados.
– A União está vinculada pelo direito à autodeterminação
106. Como o Tribunal de Justiça declarou no seu acórdão de 21 de dezembro de 2016, Conselho/Frente Polisário (C‑104/16 P, EU:C:2016:973), a União está vinculada pelo direito à autodeterminação, que é um direito oponível erga omnes e um dos princípios essenciais do direito internacional (74). A este título, «faz parte das regras de direito internacional aplicáveis nas relações entre a União e o Reino de Marrocos» (75).
107. Com efeito, o direito à autodeterminação está consagrado no artigo 1.o, n.o 2, da Carta das Nações Unidas (76). Ora, o artigo 3.o, n.o 5, TUE, o artigo 21.o, n.o 1, TUE, o artigo 21.o, n.o 2, alíneas b) e c), e os artigos 23.o TUE e 205.o TFUE obrigam a União a respeitar os princípios da Carta das Nações Unidas. A Declaração n.o 13 sobre a política externa e de segurança comum, anexada ao ato final da Conferência intergovernamental que adotou o Tratado de Lisboa, assinado em 13 de dezembro de 2007, estabelece que «a União Europeia e os seus Estados‑Membros continuam vinculados pelas disposições da Carta das Nações Unidas» (77).
108. Além disso, o direito à autodeterminação figura entre os princípios da Ata Final de Helsínquia aos quais se refere o artigo 21.o, n.o 2, alínea c), TUE (78).
109. Por último, como resulta do seu artigo 1.o, o Protocolo de 2013 deve ser aplicado de acordo com o respeito dos princípios democráticos e dos direitos humanos, que inclui o respeito do direito dos povos à autodeterminação.
– O direito à autodeterminação é uma regra do direito internacional que, do ponto de vista do seu conteúdo, é incondicional e suficientemente precisa
110. Como o Tribunal de Justiça declarou no n.o 55 do acórdão de 21 de dezembro de 2011, Air Transport Association of America e o. (C‑366/10, EU:C:2011:864), «[esta] condição está preenchida sempre que a disposição invocada contenha uma obrigação clara e precisa que não esteja dependente, na sua execução ou nos seus efeitos, da intervenção de nenhum ato posterior».
111. Como demonstram os n.os 90, 92 e 93 do acórdão de 21 de dezembro de 2016, Conselho/Frente Polisário (C‑104/16 P, EU:C:2016:973), no qual o Tribunal de Justiça aplicou este direito ao Sara Ocidental e ao seu povo sem manifestar qualquer dúvida sobre o seu conteúdo e/ou o seu alcance, o direito à autodeterminação cumpre essa condição.
112. A circunstância de o Tribunal Internacional de Justiça ter declarado que a construção por Israel de um muro no território da Cisjordânia constituía uma violação do direito do povo palestiniano à autodeterminação, uma vez que equivalia a uma anexação de facto (79), demonstra que se trata de um direito cujo conteúdo é suficientemente claro e preciso para ser aplicado.
113. Com efeito, o seu conteúdo está suficientemente detalhado em vários instrumentos.
114. A este respeito, o Tribunal Internacional de Justiça baseou, no artigo 1.o, n.o 2, da Carta das Nações Unidas, a existência de um «direito à independência em benefício dos povos dos territórios não autónomos e dos que estavam sujeitos à subjugação, à dominação ou à exploração estrangeiras» (80).
115. O conteúdo deste direito é precisado no artigo 1.o comum ao PIDESC e ao PIDCP (81) e as modalidades da sua aplicação detalhadas em várias resoluções da Assembleia Geral da ONU, nomeadamente as Resoluções 1514 (XV), 1541 (XV) e 2625 (XXV), a que frequentemente se refere o Tribunal Internacional de Justiça (82).
116. A este respeito, a Resolução 1514 (XV) declara o seguinte:
«1. A sujeição de povos à subjugação, à exploração e à dominação estrangeiras constitui uma negação dos direitos humanos fundamentais, é contrária à Carta das Nações Unidas e compromete a causa da promoção da paz e da cooperação mundiais.
2. Todos os povos têm o direito à livre autodeterminação; em virtude deste direito, podem determinar livremente o seu estatuto político e prosseguir livremente o seu desenvolvimento económico, social e cultural.
[…]
4. Todas as ações armadas ou medidas repressivas de qualquer tipo dirigidas contra povos dependentes deverão cessar a fim de permitir a estes últimos exercerem pacífica e livremente o seu direito à completa independência e deve ser respeitada a integridade do seu território nacional.
[…]».
117. A Resolução 1541 (XV) estabelece os princípios que devem orientar as potências administrantes no exercício das obrigações que lhes são impostas pelo artigo 73.o da Carta das Nações Unidas. Importa observar que o princípio VI prevê que se considera que o direito à autodeterminação foi exercido quando o território não autónomo se torna Estado independente e soberano ou quando se associa livremente a um Estado independente ou quando se integra num Estado independente.
118. No que respeita à integração num Estado independente, o princípio IX, alínea b), prevê que «[a] integração deve resultar do desejo livremente expressado das populações do território, plenamente conscientes da alteração do seu estatuto, sendo a consulta realizada segundo métodos democráticos e amplamente difundidos, imparcialmente aplicados e fundados no sufrágio universal dos adultos. A [ONU] poderá, quando entender necessário, fiscalizar a aplicação destes métodos».
119. Por último, a Resolução 2625 (XXV) inclui «a declaração relativa aos princípios do direito internacional no que diz respeito às relações amigáveis e à cooperação entre os Estados, em conformidade com a Carta das Nações Unidas». No seu título «Princípio da igualdade de direitos dos povos e do seu direito à autodeterminação», esta resolução impõe a todos os Estados «o dever de promoverem, através de uma ação conjunta ou individualmente, a realização do princípio da igualdade de direitos dos povos e do seu direito à autodeterminação, em conformidade com as disposições da Carta das Nações Unidas».
120. Impõe igualmente aos Estados «o dever se não recorrerem a qualquer medida coerciva que prive os povos referidos na formulação do presente princípio do seu direito à autodeterminação, da sua liberdade e da sua independência».
121. No que respeita mais particularmente a territórios não autónomos, como o Sara Ocidental, esta resolução prevê que possuem «um estatuto separado e distinto do estatuto do território do Estado que o administra; esse estatuto separado e distinto em virtude da Carta [das Nações Unidas] existirá enquanto o povo […] do território não autónomo não exercer o seu direito à autodeterminação conformidade com a Carta e, mais particularmente, com as suas finalidades e os seus princípios» (83).
122. Por último, nas suas disposições gerais, a Resolução 2625 (XXV) declara que «[o]s princípios da Carta inscritos na presente [d]eclaração constituem princípios fundamentais do direito internacional e, consequentemente, convida todos os Estados a inspirarem‑se nestes princípios na sua atuação internacional e a desenvolverem as suas relações mútuas com base na rigorosa observância dos referidos princípios».
123. Resulta do exposto que o direito à autodeterminação não está dependente, na sua execução ou nos seus efeitos, da intervenção de nenhum ato posterior.
124. No caso em apreço, como declararam o Tribunal Internacional de Justiça e o Tribunal de Justiça, o povo do Sara Ocidental beneficia do direito à autodeterminação (84).
– A natureza e a sistemática do direito à autodeterminação não se opõem à fiscalização jurisdicional dos atos impugnados
125. No n.o 89 do acórdão de 21 de dezembro de 2016, Conselho/Frente Polisário (C‑104/16 P, EU:C:2016:973), o Tribunal de Justiça declarou que «a tomada em consideração [do direito à autodeterminação] se impunha ao Tribunal Geral» no âmbito do recurso de anulação do Acordo de associação, interposto pela Frente Polisário. Daqui resulta que a natureza e a sistemática deste direito não se opõem à fiscalização jurisdicional dos atos da União.
126. Com efeito, o artigo 103.o da Carta das Nações Unidas dispõe que «[n]o caso de conflito entre as obrigações dos membros das Nações Unidas em virtude da presente Carta e as obrigações resultantes de qualquer outro acordo internacional, prevalecerão as obrigações assumidas em virtude da presente Carta.».
127. Além disso, segundo o Tribunal Internacional de Justiça, «o direito dos povos à autodeterminação […] é um direito oponível erga omnes» (85). Isto implica que «tais obrigações, pela sua própria natureza, “dizem respeito a todos os Estados” e, “[a]atendendo à importância dos direitos em causa, pode considerar‑se que todos os Estados têm um interesse jurídico em que estes direitos sejam protegidos”» (86). Neste sentido, o Tribunal Internacional de Justiça declarou que «todos os Estados têm a obrigação de não reconhecer a situação ilícita que decorre da [violação de uma obrigação erga omnes]. Têm igualmente a obrigação de não prestar auxílio ou assistência à manutenção da situação criada por esta [violação]. Por outro lado, compete a todos os Estados garantir, no respeito da Carta das Nações Unidas e do direito internacional, que seja posto fim a qualquer entrave, resultante da [violação], ao exercício pelo povo [em causa, no caso em apreço o povo palestiniano] do seu direito à autodeterminação» (87).
128. Por último, o direito à autodeterminação é frequentemente referido como norma imperativa do direito internacional cuja violação pode conduzir à nulidade de um Tratado internacional em conformidade com o artigo 53.o da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (88). Há que sublinhar que, no processo de parecer consultivo perante o Tribunal Internacional de Justiça no processo do Sara Ocidental, o Reino de Espanha reconheceu que o direito à autodeterminação constituía, por si só, uma norma imperativa do direito internacional (89), enquanto o Reino de Marrocos reconheceu a qualidade de norma imperativa ao princípio da descolonização, do qual a autodeterminação é uma modalidade (90).
129. Conclui‑se que, longe de se opor a uma fiscalização jurisdicional, a sistemática e a natureza do direito à autodeterminação impõem que o Tribunal de Justiça verifique se, através dos atos impugnados, a União respeitou este direito, não reconheceu uma situação ilícita decorrente de uma violação deste direito e não prestou auxílio ou assistência à manutenção de tal situação (91).
2) O princípio da soberania permanente sobre os recursos naturais
130. O princípio da soberania permanente sobre os recursos naturais garante o direito soberano de cada Estado e de cada povo de dispor livremente das riquezas e dos recursos naturais do seu território no interesse do desenvolvimento nacional e do bem‑estar do seu povo (92). Trata‑se de um princípio do direito internacional consuetudinário (93) que vincula, enquanto tal, a União.
131. Como observou o secretário‑geral adjunto para os assuntos jurídicos da ONU, conselheiro jurídico, Hans Corell na sua carta de 29 de janeiro de 2002, dirigida ao presidente do Conselho de Segurança da ONU, «[o] alcance e [as] implicações jurídicas precisas [do princípio da soberania permanente sobre os recursos naturais] permanecem discutíveis» (94).
132. Com efeito, o seu parecer jurídico confirma esta dificuldade uma vez que utiliza diferentes termos para caracterizar aquilo que é uma exploração de recursos naturais em benefício do povo do território não autónomo. Com efeito, fala de uma exploração que não é efetuada «em prejuízo das necessidades e dos interesses da população [do território não autónomo], sem que esta dela beneficie» (95) ou uma exploração «em benefício dos povos [dos territórios não autónomos], em seu nome, ou em consulta com os seus representantes» (96) e conclui que uma exploração não pode ser levada a cabo «em prejuízo dos interesses e da vontade do povo [território não autónomo]» (97).
133. Dito isto, apesar da variação de terminologia, é certo que, no mínimo, a exploração de recursos naturais deve ser efetuada em benefício do povo do território não autónomo, o que basta para conferir a este critério do princípio da soberania permanente sobre os recursos naturais um caráter suficientemente claro e preciso.
134. O referido critério é igualmente capaz de fundamentar uma fiscalização jurisdicional dos atos impugnados. Com efeito, o Parlamento começou por bloquear a adoção do protocolo, que acabou por ser concluído em 2013, por considerar que não previa garantias suficientes para assegurar que a exploração haliêutica dos recursos naturais do Sara Ocidental pelos navios da União seria feita em benefício do povo deste território. Além disso, o Conselho e a Comissão admitem que o critério do benefício para o povo do Sara Ocidental é uma condição de legalidade dos acordos concluídos entre a União e o Reino de Marrocos que visam este território.
3) Regras do direito internacional humanitário aplicáveis à conclusão de acordos internacionais que visam a exploração dos recursos naturais do território ocupado
135. O órgão jurisdicional de reenvio, a WSC assim como a administração tributária e aduaneira e o ministro do Ambiente, da Alimentação e dos Assuntos rurais consideram que a presença do Reino de Marrocos no Sara Ocidental é uma ocupação (98).
136. A este respeito, observo que a questão de saber se o Reino de Marrocos é ou não a potência ocupante do Sara Ocidental e se concluiu o Acordo de pesca e o Protocolo de 2013 nessa qualidade constitui uma questão de interpretação do direito internacional à qual os requisitos da sua invocabilidade no direito da União não são aplicáveis.
137. Todavia, se se considerar que o Reino de Marrocos é a potência ocupante do Sara Ocidental (questão a que regressarei posteriormente (99)), as regras do direito internacional humanitário, codificadas no regulamento anexado à Convenção de Haia de 18 de outubro de 1907, relativa às leis e costumes da guerra terrestre (a seguir «Regulamento de Haia de 1907») e na Convenção de Genebra, de 12 de agosto de 1949, relativa à proteção das pessoas civis em tempo de guerra (a seguir «Convenção IV de Genebra»), que respeitam à conclusão de acordos internacionais aplicáveis ao território ocupado (artigo 43.o do Regulamento de Haia de 1907 e artigo 64.o, segundo parágrafo, da Convenção IV de Genebra) e à exploração dos recursos naturais deste território (artigo 55.o do Regulamento de Haia de 1907), devem ser invocáveis.
138. Com efeito, em tal caso, estas disposições cumprem os critérios de invocabilidade do direito internacional enunciados no n.o 96 das presentes conclusões.
139. Em primeiro lugar, as disposições do Regulamento de Haia de 1907 e da Convenção IV de Genebra constituem princípios invioláveis e oponíveis erga omnes do direito internacional consuetudinário (100) e, enquanto tais, vinculam a União.
140. Em segundo lugar, o seu conteúdo é suficientemente preciso e incondicional, na medida em que as obrigações que impõe às potências ocupantes não dependem, na sua execução ou nos seus efeitos, da intervenção de nenhum ato posterior.
141. Em terceiro e último lugar, a sua natureza e sistemática enquanto regras invioláveis não se opõem a uma fiscalização jurisdicional dos atos impugnados, nomeadamente do Regulamento n.o 764/2006, da Decisão 2013/785 e do Regulamento n.o 1270/2013, na medida em que aprovam e estabelecem uma exploração dos recursos naturais do Sara Ocidental acordada entre a União e o Reino de Marrocos. Ora, a União tem a obrigação de não reconhecer a situação ilícita que decorre de uma violação destas disposições e de não prestar auxílio ou assistência à manutenção da situação criada por essa violação (101).
142. Tendo determinado as regras do direito internacional invocáveis, irei em seguida apreciar a compatibilidade dos atos impugnados com estas regras.
3. Quanto à validade do Regulamento n.o 764/2006, da Decisão 2013/785 e do Regulamento n.o 1270/2013 e à compatibilidade do Acordo de pesca e do Protocolo de 2013 com as regras invocáveis do direito internacional para as quais remete o artigo 3.o, n.o 5, TUE
a) Quanto ao respeito, pelos atos impugnados, do direito do povo do Sara Ocidental à autodeterminação e da obrigação de não reconhecer uma situação ilícita decorrente de uma violação deste direito e de não prestar auxílio ou assistência à manutenção desta situação
143. No seu acórdão de 21 de dezembro de 2016, Conselho/Frente Polisário (C‑104/16 P, EU:C:2016:973), o Tribunal de Justiça declarou que o Acordo de associação concluído entre a União e o Reino de Marrocos, que, segundo a sua redação, se aplica ao «território do Reino de Marrocos», não é aplicável ao território do Sara Ocidental, uma vez que tal aplicação é incompatível com o direito do povo deste território à autodeterminação e com os artigos 29.o (aplicação territorial dos Tratados) e 34.o (princípio do efeito relativo dos Tratados, segundo o qual estes não devem prejudicar nem beneficiar terceiros sem o seu consentimento) da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (102).
144. De acordo com o Conselho e a Comissão, o presente processo deve ser distinguido do processo que deu origem ao acórdão de 21 de dezembro de 2016, Conselho/Frente Polisário (C‑104/16 P, EU:C:2016:973), na medida em que, contrariamente ao Acordo de associação, o Acordo de pesca e o Protocolo de 2013 são aplicáveis ao Sara Ocidental. Com efeito, segundo a sua leitura deste acórdão, o problema do Acordo de associação consistia no facto de ser aplicado ao Sara Ocidental sem aí ser juridicamente aplicável, por essa aplicação ser incompatível com o direito do povo deste território à autodeterminação e com os artigos 29.o (aplicação territorial dos Tratados) e 34.o (princípio do efeito relativo dos Tratados, segundo o qual estes não devem prejudicar nem beneficiar terceiros sem o seu consentimento) da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados. É com base nesta argumentação que a solução prevista pelo Conselho e pela Comissão, a fim de tornar a aplicação do Acordo de associação ao Sara Ocidental conforme ao acórdão de 21 de dezembro de 2016, Conselho/Frente Polisário (C‑104/16 P, EU:C:2016:973), consiste em alargar o seu âmbito de aplicação por acordo, sob a forma de troca de cartas entre a União e o Reino de Marrocos, com vista a abranger expressamente o Sara Ocidental.
145. Esta argumentação não me convence. Se a aplicação ao Sara Ocidental de um acordo internacional concluído com o Reino de Marrocos cujo âmbito de aplicação territorial não inclui explicitamente aquele território era incompatível com o direito do povo desse território à autodeterminação, um acordo internacional que, como o Acordo de pesca e o Protocolo de 2013, é aplicável ao território do Sara Ocidental e às águas adjacentes (103) e autoriza a exploração, pela União (104), dos recursos haliêuticos do Sara Ocidental também o é, a fortiori.
146. Este argumento a fortiori afigura‑se suficiente para concluir pela existência de uma violação do direito do povo do Sara Ocidental à autodeterminação. Para ser exaustivo, gostaria de acrescentar que os atos impugnados não respeitam o direito do povo do Sara Ocidental à autodeterminação, na medida em que não correspondem nem a uma livre prossecução do seu desenvolvimento económico nem a uma disposição livre das suas riquezas e dos seus recursos naturais (105), e que, em todo caso, mesmo que não violassem por si só o direito à autodeterminação, não respeitam a obrigação da União de não reconhecer uma situação ilícita decorrente da violação do direito do povo do Sara Ocidental à autodeterminação e de não prestar auxílio ou assistência à manutenção dessa situação (106).
1) Quanto à existência de uma vontade livre do povo do Sara Ocidental de prosseguir, através dos atos impugnados, o seu desenvolvimento económico e de dispor das suas riquezas e dos seus recursos naturais
147. A inexistência de tal vontade é confirmada pelos factos seguintes (107), cuja substância foi alegada pela WSC no órgão jurisdicional de reenvio e recordada por este (108).
148. Em 20 de dezembro de 1966, a Assembleia Geral da ONU adotou a Resolução 2229 (XXI) sobre a questão do Ifni e do Sara espanhol, na qual reafirmou o «direito inalienável d[o] pov[o] […] do Sara espanhol à autodeterminação» e convidou o Reino de Espanha, enquanto potência administrativa, a fixar o mais rapidamente possível «as modalidades de organização de um referendo a organizar sob os auspícios da [ONU] para permitir que a população autóctone do território exerça livremente o seu direito à autodeterminação».
149. Em 20 de agosto de 1974, o Reino de Espanha informou a ONU de que se propunha organizar, sob a égide desta, um referendo no Sara Ocidental (109).
150. Em de maio de 1975, apesar das dificuldades encontradas, a missão de visita da ONU ao Sara Ocidental «pôde concluir, após a sua permanência no território, que a maioria da população no interior do Sara espanhol era manifestamente a favor da independência» (110).
151. Em 16 de outubro de 1975, na sequência de um pedido apresentado pela Assembleia Geral da ONU no âmbito dos seus trabalhos relativos à descolonização do Sara Ocidental, o Tribunal Internacional de Justiça emitiu um parecer consultivo segundo o qual, por um lado, o Sara Ocidental não era uma terra de ninguém (terra nullius) no momento da sua colonização pelo Reino de Espanha, e, por outro, embora alguns elementos demonstrassem que no momento da colonização espanhola existiam vínculos jurídicos de lealdade entre o sultão de Marrocos e algumas tribos que viviam no território do Sara Ocidental, não provavam a existência de um vínculo de soberania territorial entre o território do Sara Ocidental e o Reino de Marrocos (111). Assim, o Tribunal Internacional de Justiça não concluiu pela existência de vínculos jurídicos suscetíveis de alterar a aplicação da Resolução 1514 (XV) da Assembleia Geral da ONU quanto à descolonização do Sara Ocidental e, em particular, a aplicação do princípio da autodeterminação graças à expressão livre e autêntica da vontade das populações do território (112).
152. Num discurso proferido na data da publicação do referido parecer consultivo, «o rei de Marrocos considerou que “o mundo inteiro [tinha reconhecido] que o Sara [Ocidental] pertencia” ao Reino de Marrocos e que lhe “incumb[ia] recuperar pacificamente esse território”», apelando para o efeito à organização de uma marcha que reuniu 350 000 pessoas, designada por «marcha verde» (113).
153. Chamado a pronunciar‑se pelo Reino de Espanha, o Conselho de Segurança da ONU pediu ao secretário‑geral da ONU, K. Waldheim, que elaborasse um relatório sobre os resultados das suas consultas às partes em causa, nomeadamente o Reino de Marrocos (114).
154. De acordo com a tese deste último, descrita nesse relatório, não era necessário um referendo uma vez que o Tribunal Internacional de Justiça tinha reconhecido os vínculos históricos de lealdade entre o sultão de Marrocos e as tribos que viviam tradicionalmente no território do Sara Ocidental, e que, em qualquer caso, «as populações do território já haviam efetivamente exercido o seu direito à autodeterminação e tinham‑se declarado a favor do regresso do território a Marrocos», sendo a prova mais recente «o juramento de lealdade ao rei de Marrocos proferido em nome das tribos sarauís por [Khatri Ould Said a Ould El Jomaini], presidente da Djemââ [(115)]» numa cerimónia que decorreu em 4 de novembro de 1975 no palácio de Agadir (116).
155. Na sequência dos protestos do Reino de Espanha contra a marcha verde, o Conselho de Segurança da ONU adotou, em 6 de novembro de 1975, a Resolução 380 (1975) sobre o Sara Ocidental, na qual «conden[ou] a realização da marcha» anunciada e «exig[iu] ao [Reino de] Marrocos a retirada imediata do território do Sara Ocidental de todos os participantes [nessa] marcha». O Reino de Marrocos satisfez esse pedido alguns dias mais tarde.
156. Durante a crise provocada pela marcha verde, o Reino de Espanha, o Reino de Marrocos e a República Islâmica da Mauritânia iniciaram negociações trilaterais que conduziram, em 14 de novembro de 1975, à declaração de princípios de Espanha, de Marrocos e da Mauritânia quanto ao Sara Ocidental (117) (a seguir «Acordo de Madrid»). Nos termos deste acordo, «Espanha instituí[ria] imediatamente uma administração temporária no território [do Sara Ocidental], na qual participar[iam] Marrocos e a Mauritânia em colaboração com a Djemââ, e à qual ser[iam] transmitidos as responsabilidades e os poderes [que tinha neste território na qualidade de potência administrante]», o que foi feito.
157. O referido acordo previa igualmente que «[a] presença espanhola termina[ria] definitivamente até 28 de fevereiro de 1976» e que «[a] opinião da população sarauí, expressada por intermédio da Djemââ, ser[ia] respeitada».
158. Em seguida, o referido acordo era acompanhado por uma série de acordos entre estes três países, formalmente designados por «conversações», destinados a regular determinados aspetos económicos da transferência da administração do Sara Ocidental, nomeadamente os direitos de pesca nas águas adjacentes a este território (118). A existência destes acordos e o facto de visarem a pesca foram confirmados pelo ministro dos Negócios Estrangeiros do Reino de Espanha, Oreja Aguirre, no debate parlamentar sobre a ratificação do acordo de pesca entre o Reino de Espanha e o Reino de Marrocos de 1977 (119). Em seu entender, tratava‑se de «linhas de conduta [ou] de diretivas» (120).
159. A existência de um acordo sobre os direitos de pesca nas águas adjacentes ao Sara Ocidental bem como o facto de a sua existência não ter sido comunicada ao secretário‑geral da ONU são igualmente confirmadas pelos canais diplomáticos do secretário de Estado dos Estados Unidos (121).
160. Em 28 de novembro de 1975, 67 membros da Djemââ, entre os quais o seu vice‑presidente, reunidos em El Guelta Zemmur (Sara Ocidental) declararam unanimemente que, visto não ser eleita democraticamente pelo povo do Sara Ocidental, a Djemââ não poderia decidir da sua autodeterminação. Decidiram unanimemente a sua dissolução definitiva (122).
161. Em 10 de dezembro de 1975, a Assembleia Geral da ONU votou duas resoluções sobre a questão do Sara Ocidental cujo conteúdo não é idêntico (123), uma vez que não existia consenso sobre as consequências a retirar do Acordo de Madrid. Neste sentido, a Resolução 3458 A (XXX) não faz qualquer menção a este acordo e refere‑se ao Reino de Espanha «como [p]otência administrante» do Sara Ocidental (124), ao passo que a Resolução 3458 B (XXX) «toma nota» (125) deste acordo e não se refere a uma potência administrante, mas às «partes no Acordo de Madrid de 14 de novembro de 1975» (126) e à «administração provisória» (127).
162. No entanto, há que observar que dos 144 Estados participantes na 2435.a sessão plenária da Assembleia Geral, 88 votaram a favor da Resolução 3458 A (XXX), nenhum votou contra, 41 se abstiveram e 15 não votaram. Os atuais Estados‑Membros da União votaram a favor desta resolução, com exceção da República Portuguesa e do Reino de Espanha, que se abstiveram, assim como da República de Malta que não votou. O Reino de Marrocos também não votou.
163. Mais contestada, a Resolução 3458 B (XXX) apenas foi aprovada por 56 Estados, ao passo que 42 Estados votaram contra, 34 se abstiveram e 12 não votaram. Apenas 11 dos atuais Estados‑Membros da União votaram a favor desta resolução (128), 10 votaram contra (129), 6 abstiveram‑se (130) e 1 não votou (131). O Reino de Marrocos votou a favor.
164. Apesar das suas divergências, as duas resoluções «reafirma[m] o direito inalienável do povo do Sara [Ocidental] à autodeterminação» (132) em conformidade com a Resolução 1514 (XV) da Assembleia Geral da ONU e convergem no facto de este direito dever ser exercido de forma livre (133).
165. Além disso, a Resolução 3458 A (XXX) prevê que o direito à autodeterminação deve ser exercido «sob a supervisão da [ONU]» e «[p]ede ao [s]ecretário‑geral que, em consulta com o [G]overno espanhol, na qualidade de [p]otência administrante, […] adote as disposições necessárias para a supervisão do ato de autodeterminação» (134).
166. No mesmo espírito, a Resolução 3458 B (XXX) prevê que o povo do Sara Ocidental exerça o seu direito à autodeterminação «através de um consulta livre organizada com o apoio de um representante da [ONU] designado pelo [s]ecretário‑geral» (135).
167. Desde o fim de 1975, o Reino de Espanha iniciou a saída da sua administração do Sara Ocidental. Enquanto as tropas se retiravam, as forças marroquinas e mauritânias entravam no território do Sara Ocidental. Em alguns locais houve confrontos armados entre as respetivas forças e as da Frente Popular para a Libertação de Saguia‑el‑hamra e Rio de Oro (Frente Polisário) (136).
168. Numa conferência de imprensa, em fevereiro de 1976, Olof Rydbeck, embaixador sueco na ONU e enviado especial do secretário‑geral da ONU para o Sara Ocidental, declarou que, «tal como [se apresentava], a situação militar [no Sara Ocidental] torna[va] uma consulta útil dos sarauís bastante difícil ou mesmo impossível» (137).
169. Com o seu memorando de 25 de fevereiro de 1976, enviado ao secretário‑geral da ONU, o Reino de Espanha informou‑o de que tinha decidido pôr definitivamente termo à sua presença no Sara Ocidental no dia seguinte (26 de fevereiro de 1976) e que tinha sido convocada uma sessão da Djemââ para esse dia na qual o governador espanhol, atuando na qualidade de membro da administração provisória, a informaria desta decisão (138).
170. Em 26 de fevereiro de 1976, o Reino de Espanha pôs definitivamente termo à sua presença no território do Sara Ocidental e, em carta enviada nesse dia ao secretário‑geral da ONU, declarou‑se «isento de qualquer responsabilidade de caráter internacional no que respeita à administração [do Sara Ocidental] ao cessar a participação na administração provisória aí instituída» (139) e afirmou que «[a] descolonização do Sara Ocidental será concluída quando a população sarauí tenha podido expressar as suas opiniões de forma válida» (140).
171. No mesmo dia, apesar de dissolvida por 67 dos seus membros, a Djemââ aprovou «[a] reintegração [do Sara Ocidental] em Marrocos e na Mauritânia» e «exprim[iu] assim a opinião unânime das populações sarauís e de todas as tribos de que emana e é representante autêntico e legítimo» (141). Do ponto de vista do Reino de Marrocos, esta decisão concretiza a disposição do Acordo de Madrid segundo a qual «[a] opinião da população sarauí, expressada por intermédio da Djemââ, será respeitada».
172. No que respeita a esta reunião da Djemââ, nem o Reino de Espanha nem a ONU a reconheceram como o exercício do direito do povo do Sara Ocidental à autodeterminação, conforme às Resoluções 3458 A e B (XXX) da Assembleia Geral da ONU (142).
173. Segundo o memorando de 25 de fevereiro de 1975 que o Reino de Espanha enviou ao secretário‑geral da ONU, «esta sessão não [corresponderá] a uma consulta popular tal como esta se encontra prevista no Acordo de Madrid de 14 de novembro de 1975 e na Resolução 3458 B (XXX) da Assembleia Geral, a menos que estejam reunidas as condições necessárias, incluindo, em particular, a presença de um representante da [ONU] nomeado pelo [secretário‑geral] em conformidade com o n.o 4 da referida resolução» (143).
174. Na sua resposta ao memorando de 25 de fevereiro de 1975 do Reino de Espanha, o secretário‑geral da ONU recordou os n.os 7 e 8 da Resolução 3458 A (XXX), assim como o n.o 4 da Resolução B (XXX), e concluiu o seguinte:
«De acordo com os números acima referidos, nem o Governo espanhol, na sua qualidade de [p]otência administrante, nem a administração provisória, da qual [o Reino de] Espanha é membro, adotaram as medidas necessárias para garantir às populações do Sara Ocidental o exercício do direito à autodeterminação. Por conseguinte, mesmo que o tempo tivesse permitido e tivessem sido prestados os esclarecimentos necessários quanto à reunião da Djemââ, da qual, segundo me comunicou ontem, o seu Governo não estava informado, a presença nessa reunião de um representante da [ONU] nomeado por mim não constituiria, por si só, uma aplicação das resoluções da Assembleia Geral acima referidas» (144).
175. Em 14 de abril de 1976, o Reino de Marrocos concluiu com a República Islâmica da Mauritânia um tratado de repartição do território do Sara Ocidental (145) e anexou formalmente as províncias que lhe foram atribuídas por esse tratado (146).
176. Entretanto, eclodiu nesta região um conflito armado entre o Reino de Marrocos, a República Islâmica da Mauritânia e a Frente Polisário.
177. Em maio de 1979, a República Islâmica da Mauritânia informou o secretário‑geral da ONU que estava disposta a aplicar as disposições das Resoluções 3458 A (XXX) e 3458 B (XXX) da Assembleia Geral da ONU e a estudar as vias e os meios para assegurar o exercício do direito à autodeterminação no Sara Ocidental (147). Todavia, «[d]esde julho de 1978, o Governo marroquino [tinha declarado] várias vezes que não cederia nenhuma das “suas províncias sarianas recuperadas” e que não aceitaria a criação de um mini‑Estado controlado pela Frente [Polisário] no setor mauritano do Sara Ocidental» (148).
178. Em 10 de agosto de 1979, a República Islâmica da Mauritânia concluiu um acordo de paz com a Frente Polisário nos termos do qual renunciou a qualquer reivindicação territorial sobre o Sara Ocidental (149). O Reino de Marrocos assumiu imediatamente o controlo do território do qual as forças mauritanas se retiraram (150) e procedeu à sua anexação (151).
179. Em 21 de novembro de 1979, a Assembleia Geral da ONU adotou a Resolução 34/37 sobre a questão do Sara Ocidental, na qual «[r]eafirm[ou] o direito inalienável do povo do Sara Ocidental à autodeterminação e à independência, em conformidade com a [c]arta da [ONU] […] e com os objetivos da [sua] Resolução 1514 (XV)», «condenou vivamente o agravamento da situação decorrente da manutenção da ocupação do Sara Ocidental por Marrocos», «ped[iu] insistentemente ao Reino de Marrocos para também se compromet[er] com a dinâmica da paz e pôr termo à ocupação do território do Sara Ocidental» e «recomend[ou], para esse efeito, que a [Frente Polisário], representante do povo do Sara Ocidental, particip[asse] plenamente na busca de uma situação política justa, duradoura e definitiva da questão do Sara Ocidental, em conformidade com as resoluções e declarações da [ONU]» (152).
180. O conflito armado entre o Reino de Marrocos e a Frente Polisário prosseguiu até que, em 30 de agosto de 1988, as partes aceitaram por princípio as propostas de solução apresentadas, nomeadamente, pelo secretário‑geral da ONU e que previam especificamente a proclamação de um cessar‑fogo e a realização de um referendo de autodeterminação sob a égide da ONU (153).
181. Desde então não se registou nenhum progresso que permita ao povo do Sara Ocidental exercer o seu direito à autodeterminação. Como afirmou o secretário‑geral da ONU no seu último relatório sobre o Sara Ocidental, «[a] dificuldade [na procura de uma solução] decorre essencialmente da divergência de opiniões e de interpretação entre as partes quanto à história do conflito e aos documentos a ela respeitantes. Marrocos afirma que o Sara Ocidental já faz parte do território nacional e que as negociações apenas podem ter por objeto a sua proposta de estatuto autónomo sob soberania marroquina, devendo a Argélia participar nestas negociações. A Frente Polisário sustenta que, visto a Assembleia Geral ter definido o Sara Ocidental como um território não autónomo, cabe à população autóctone decidir o seu futuro no quadro de um referendo onde a independência seja uma das escolhas possíveis, que todas as propostas e ideias apresentadas por qualquer uma das partes devem ser debatidas e que apenas Marrocos e ela própria devem participar nas negociações» (154).
182. Decorre de todos estes factos que, em vez de poder exercer o seu direito à autodeterminação segundo as indicações fornecidas pelo Tribunal Internacional de Justiça no seu parecer consultivo sobre o Sara Ocidental (155), o povo do Sara Ocidental tem sido até à data, privado da simples oportunidade de exercer este direito nas condições previstas pelas Resoluções 1514 (XV), 1541 (XV), 2625 (XXV) e 3458 A e B (XXX) da Assembleia Geral da ONU, por uma série de medidas que conduziram à repartição do território do Sara Ocidental em 1976 e à sua anexação em 1976 e 1979. O facto de algumas dessas medidas serem imputáveis a vários Estados em nada diminui a existência e a gravidade da violação do direito deste povo à autodeterminação.
183. Além disso, apesar de estas resoluções preverem que o direito à autodeterminação implica a escolha livre entre três opções (156), nomeadamente a independência (157), a associação com outro Estado independente e a integração num Estado independente, assim como a organização de um referendo (158) (em vez de uma consulta da Djemââ), o Reino de Marrocos procedeu à integração do Sara Ocidental no seu território por repartição e anexação, sem consulta do povo do Sara Ocidental e sem a supervisão da ONU.
184. Neste sentido, o juramento de lealdade ao rei de Marrocos prestado em nome das tribos sarauís pelo presidente da Djemââ, em 4 de novembro de 1975, e a reunião da Djemââ de 26 de fevereiro de 1976, não reconhecidos pela ONU nem pelo Reino de Espanha enquanto potência administrante do Sara Ocidental e membro da administração provisória deste último, não constituem a consulta do povo do Sara Ocidental à autodeterminação exigida pelas Resoluções 1514 (XV), 1541 (XV), 2625 (XXV) e 3458 A e B (XXX) da Assembleia Geral da ONU.
185. Resulta do exposto que o Sara Ocidental foi integrado no Reino de Marrocos sem que o povo deste território tenha livremente expressado a sua vontade a este respeito. Uma vez que o Acordo de pesca e o Protocolo de 2013 foram concluídos pelo Reino de Marrocos com base na integração unilateral do Sara Ocidental no seu território e na afirmação da sua soberania sobre este território, é evidente que o povo do Sara Ocidental não dispôs livremente dos seus recursos naturais, como impõem o artigo 1.o comum ao PIDESC e ao PIDCP, o n.o 2 da Resolução 1514 (XV) da Assembleia Geral da ONU e o título VII da Ata Final de Helsínquia de 1975.
186. Por conseguinte, a exploração haliêutica das águas adjacentes ao Sara Ocidental instituída e implementada pelos atos impugnados não respeita o direito do povo deste território à autodeterminação (159).
2) Quanto à obrigação de não reconhecer uma situação ilícita decorrente de uma violação do direito do povo do Sara Ocidental à autodeterminação, e de não prestar auxílio ou assistência à manutenção dessa situação
187. Mesmo que o Tribunal de Justiça entendesse que, por si só, os atos impugnados não violavam o direito do povo do Sara Ocidental à autodeterminação e que a violação deste direito não é imputável à União mas exclusivamente ao Reino de Marrocos, não deixa de ser verdade que os atos impugnados não respeitam a obrigação da União de não reconhecer uma situação ilícita decorrente da violação do direito do povo do Sara Ocidental à autodeterminação e de não prestar auxílio ou assistência à manutenção dessa situação (160).
188. Resulta da redação do Acordo de pesca e do Protocolo de 2013 que estas abrangem o Sara Ocidental e as águas adjacentes, como um acordo exclusivamente aplicável ao território reconhecido como território soberano do Reino de Marrocos pela comunidade internacional.
189. A este respeito, importa sublinhar, como declarou o Tribunal Permanente de Justiça Internacional, que «a faculdade de assumir compromissos internacionais é precisamente um atributo da soberania do Estado» (161) sobre o território visado por esses compromissos.
190. Isto vale igualmente para os acordos internacionais que têm por objeto o mar. Com efeito, segundo jurisprudência constante do Tribunal Internacional de Justiça, «os direitos do mar resultam da soberania do Estado costeiro sobre a terra, princípio que pode ser resumido da seguinte forma: “a terra domina o mar” […] Assim, é a situação territorial terrestre que deve ser tida em conta como ponto de partida para determinar os direitos de um Estado costeiro no mar» (162).
191. Ainda segundo o Tribunal Internacional de Justiça, «[e]stá devidamente estabelecido que “[o] título de um Estado sobre […] a zona económica exclusiva tem como fundamento o princípio segundo o qual a terra domina o mar devido à projeção das costas ou das frentes costeiras” […]. Conforme o Tribunal declarou […], “a terra é a fonte jurídica do poder que um Estado pode exercer nas extensões marítimas” […]» (163).
192. Por conseguinte, se a terra domina o mar não existe qualquer dúvida de que, como alega a Comader, o Reino de Marrocos concluiu o Acordo de pesca por se considerar o soberano do Sara Ocidental, titular dos direitos e obrigações respeitantes às águas adjacentes a este território que o direito internacional confere ao Estado costeiro (164). Com efeito, como declarou o rei Mohammed VI no 39.o aniversário da marcha verde, «rejeito a tentativa de alterar a natureza deste conflito regional apresentando‑o como um processo de descolonização. De facto, Marrocos nunca foi uma potência de ocupação ou uma potência administrante no seu Sahara. Ao invés, exerce as atribuições da sua soberania sobre a sua terra» (165).
193. Por este motivo, há que rejeitar o argumento do Conselho e da Comissão segundo o qual, referindo‑se às «águas sob a soberania ou jurisdição do Reino de Marrocos», os atos impugnados não contêm qualquer reconhecimento à pretensão de soberania do Reino de Marrocos no território do Sara Ocidental e à soberania ou à jurisdição que este Estado pretende exercer nas águas adjacentes a este território.
194. Em primeiro lugar, a negociação e a conclusão com o Reino de Marrocos de um acordo internacional aplicável ao Sara Ocidental e às águas adjacentes constituem, em si mesmas, um reconhecimento de jure da integração (166) do Sara Ocidental no Reino de Marrocos pela anexação operada em 1976 e 1979, o que implica o reconhecimento da sua soberania sobre o território, as águas interiores e o mar territorial do Sara Ocidental, assim como dos direitos soberanos e da jurisdição que o direito internacional confere ao Estado costeiro sobre as zonas marítimas que se encontram além do mar territorial.
195. Recordo que no processo de Timor‑Leste, que opunha a República Portuguesa (enquanto potência administrante expulsa de Timor‑Leste pela República da Indonésia) à Commonwealth da Austrália (enquanto país terceiro que concluiu com a República da Indonésia um acordo internacional aplicável a Timor‑Leste), a Commonwealth da Austrália considerou que o início de negociações para a conclusão do Tratado de 1989 relativo a Timor Gap «signifi[cava] o reconhecimento de jure pela Austrália da integração de Timor‑Leste na Indonésia» (167).
196. O facto de um acordo de pesca aplicável num território e nas suas zonas marítimas poder constituir a prova de um reconhecimento de soberania é demonstrado pela própria história do Sara Ocidental. A este respeito, recordo que o Reino de Marrocos apresentou como prova da sua soberania sobre o Sara Ocidental os acordos internacionais que tinha concluído com vários Estados, entre os quais, nomeadamente, os acordos de comércio e de pesca celebrados com o Reino de Espanha desde 1767 (168).
197. Ora, como declarou o Tribunal Internacional de Justiça, a anexação de um território cujo povo beneficia do direito à autodeterminação quando esse povo ainda não exerceu tal direito constitui uma violação da obrigação de respeitar o referido direito (169). Por conseguinte, um terceiro viola a sua obrigação de não reconhecer uma situação ilícita resultante de uma violação desse direito quando reconhece de jure pela conclusão de um acordo internacional a anexação de tal território.
198. Em segundo lugar, os termos «águas sob a soberania ou jurisdição do Reino de Marrocos» não bastam para excluir o reconhecimento de jure da soberania do Reino de Marrocos sobre o Sara Ocidental, por duas razões principais.
199. A primeira é que o Acordo de pesca e o Protocolo de 2013 não são apenas aplicáveis às águas adjacentes ao Sara Ocidental mas igualmente ao seu território (170). Neste sentido, a utilização dos termos «águas sob a soberania ou jurisdição do Reino de Marrocos» não pode excluir o reconhecimento de jure da soberania do Reino de Marrocos sobre o território do Sara Ocidental e, assim, a violação do direito do povo deste território à autodeterminação.
200. A segunda razão é relativa à aplicação do Acordo de pesca e do Protocolo de 2013 às águas adjacentes ao Sara Ocidental. Contrariamente ao que alega a Comissão, a expressão «águas sob jurisdição marroquina» (171), recuperada dos acordos de pesca concluídos entre o Reino de Espanha e o Reino de Marrocos antes da adesão do Reino de Espanha à União, não permite identificar as águas adjacentes ao Sara Ocidental sem reconhecer os direitos soberanos e a jurisdição que o Reino de Marrocos pretende exercer sobre estas águas enquanto Estado costeiro (172). Tal como o princípio de que a terra domina o mar, o reconhecimento de soberania sobre a terra implica o reconhecimento de direitos soberanos sobre o mar, e vice‑versa.
201. A este respeito, importa sublinhar que os acordos de pesca concluídos pelo Reino de Espanha e o Reino de Marrocos são anteriores à ratificação da Convenção das Nações Unidas sobre o direito do mar, concluída em Montego Bay em 10 de dezembro de 1982 (173) (a seguir «CNUDM») pela União (174), os seus Estados‑Membros e o Reino de Marrocos, ao passo que o acordo de pesca em causa no presente processo foi assinado e ratificado sob a égide dessa convenção, que «prevalece, nas relações entre os Estados Partes, sobre as [c]onvenções de Genebra sobre o direito do mar, de 29 de abril de 1958» (175).
202. A Convenção sobre a pesca e a conservação dos recursos biológicos do alto mar e a Convenção sobre o alto mar, realizadas em Genebra em 29 de abril de 1958, não previam o direito de os Estados estabelecerem uma zona económica exclusiva (ZEE), mas o artigo 2.o desta última convenção dispunha que nenhum Estado poderia pretender submeter o alto mar à sua soberania e que a liberdade do alto mar incluía a liberdade da pesca. Além disso, nos termos do seu artigo 6.o, os navios no mar alto encontravam‑se sob a jurisdição exclusiva do Estado do respetivo pavilhão.
203. Este contexto jurídico, no qual os termos «águas sob jurisdição marroquina» («aguas bajo juridicción marroquí») tinham um sentido, não só já não existe entre a União e o Reino de Marrocos, como foi substituído pela CNUDM. A frase «águas sob a soberania ou a jurisdição do Reino de Marrocos» deve, assim, ser apreciada à luz do regime jurídico instituído pela CNUDM, que consagrou no direito internacional o conceito da ZEE, já existente na prática dos Estados.
204. Esta leitura do Acordo de pesca à luz da CNUDM é confirmada tanto pelo considerando 2 do Acordo de pesca (176) como pelo artigo 5.o, n.o 4, do mesmo acordo, que se refere à legislação marroquina «que rege o exercício da pesca nas águas sob a jurisdição de Marrocos, em conformidade com a [CNUDM]».
205. Ora, segundo a CNUDM, as águas interiores de um Estado e o seu mar territorial constituem as águas sob a sua soberania (177), enquanto a ZEE se encontra sob «[a] jurisdição» do Estado costeiro (178). Neste sentido, a primeira parte da frase utilizada pelos atos impugnados «águas sob a soberania e jurisdição do Reino de Marrocos» visa as águas interiores e o mar territorial do Reino de Marrocos (águas sob a sua soberania), enquanto a segunda se refere à sua ZEE (águas sob a sua jurisdição).
206. Todavia, como admite a Comissão no n.o 14 das suas respostas às questões escritas colocadas pelo Tribunal de Justiça, contrariamente à ZEE estabelecida pela República árabe sarauí democrática (entidade não reconhecida pela União e os seus Estados‑Membros), a ZEE marroquina atual, estabelecida em 1981 ainda antes da ratificação da CNUDM pelo Reino de Marrocos, não abrange as águas adjacentes ao Sara Ocidental que são visadas pelas zonas de pesca n.os 3 a 6 do Acordo de pesca (179), razão pela qual o Conselho do Governo do Reino de Marrocos adotou, em 6 de julho de 2017, o Projeto‑lei n.o 38‑17 que altera e completa a Lei n.o 1‑18, que institui uma zona económica exclusiva de 200 milhas marítimas ao largo das costas de Marrocos e do Sara Ocidental (180).
207. Nestas condições, a pesca «nas águas sob a jurisdição de Marrocos, em conformidade com a [CNUDM]» (181), deveria terminar no paralelo 27°42’N, que serve tanto de limite externo da ZEE marroquina atual (182) como de fronteira entre o Reino de Marrocos e o Sara Ocidental (183). Ora, as zonas de pesca n.os 3 a 6 abrangem essencialmente as águas a sul desta fronteira que são adjacentes ao Sara Ocidental.
208. Como admite a Comissão, a pesca numa ZEE é um direito soberano do Estado costeiro (184). Por conseguinte, ao concluir o acordo de pesca que visa as águas que constituem a ZEE do Sara Ocidental, a União reconhece de jure que o Reino de Marrocos exerce um direito soberano sobre estas águas.
209. Por último, contrariamente ao que afirma a Comissão, os termos «águas sob jurisdição» e «águas sob a soberania e jurisdição» não são exclusivos dos atos impugnados, o que permitiria acreditar que visam a situação específica do Sara Ocidental. Pelo contrário, trata‑se de descrições clássicas do âmbito de aplicação dos acordos de pesca concluídos pela União (185) e, neste sentido, visam tanto as águas interiores e o mar territorial do país terceiro (águas sob a sua soberania), como a sua ZEE (águas sob a sua jurisdição).
210. Por conseguinte, contrariamente ao que alegam o Conselho e a Comissão, a utilização da expressão «águas sob a soberania ou jurisdição do Reino de Marrocos» constitui um reconhecimento do exercício de direitos soberanos pelo Reino de Marrocos sobre o Sara Ocidental e as águas adjacentes. Este reconhecimento será ainda mais claro no momento da entrada em vigor do Projeto de lei n.o 38‑17, através do qual o Reino de Marrocos estabelecerá uma ZEE sobre as águas adjacentes ao Sara Ocidental.
211. Além disso, com os atos impugnados, a União prestou auxílio e assistência à manutenção da situação ilícita decorrente da violação do direito do povo do Sara Ocidental à autodeterminação. Este auxílio assume a forma de benefícios económicos (nomeadamente a contrapartida financeira) que o Acordo de pesca e o Protocolo de 2013 conferem ao Reino de Marrocos (186).
212. Uma vez que a afirmação da soberania marroquina sobre o Sara Ocidental resulta de uma violação do direito do povo deste território à autodeterminação pelas razões evocadas nos n.os 147 a 186 das presentes conclusões, a União não cumpriu a sua obrigação de não reconhecer a situação ilícita decorrente da violação do direito do povo do Sara Ocidental à autodeterminação pelo Reino de Marrocos, e de não prestar auxílio ou assistência à manutenção dessa situação (187). Por este motivo, na medida em que são aplicáveis ao território do Sara Ocidental e às águas adjacentes, o Acordo de Pesca e o Protocolo de 2013 são incompatíveis com o artigo 3.o, n.o 5, TUE, o artigo 21.o, n.o 1, primeiro parágrafo, TUE, o artigo 21.o, n.o 2, alíneas b) e c), TUE, e os artigos 23.o TUE e 205.o TFUE, que impõem à União a obrigação de a sua ação externa proteger os direitos do Homem e respeitar estritamente o direito internacional.
213. Por conseguinte, o Regulamento n.o 764/2006, a Decisão 2013/785 e o Regulamento n.o 1270/2013 violam o artigo 3.o, n.o 5, TUE, o artigo 21.o, n.o 1, primeiro parágrafo, TUE, o artigo 21.o, n.o 2, alíneas b) e c), TUE, e os artigos 23.o TUE e 205.o TFUE, na medida em que aprovam e implementam a aplicação do Acordo de pesca e do Protocolo de 2013 no território do Sara Ocidental e às águas adjacentes.
3) Deve considerar‑se que os acordos internacionais aplicáveis ao Sara Ocidental foram concluídos com o Reino de Marrocos com base num título distinto da sua afirmação de soberania sobre este território?
214. A análise anterior foi efetuada com base na afirmação pelo Reino de Marrocos da sua soberania sobre o Sara Ocidental, que lhe permitiu concluir com a União o Acordo de pesca e o Protocolo de 2013.
215. Todavia, como declarou a Comader na audiência, independentemente da sua visão sobre esta questão, o Reino de Marrocos admite que a União e os seus Estados‑Membros possam ter uma visão diferente.
216. Assim, irei apreciar a questão de saber se a conclusão do Acordo de pesca e do Protocolo de 2013 poderia ser justificada a outro título de que o Reino de Marrocos pudesse dispor em relação ao Sara Ocidental, que lhe conferisse aquilo que a Comissão designou, na audiência, como o «poder de concluir Tratados» (treaty‑making power) que vinculem o território não autónomo do Sara Ocidental.
217. A este respeito, o Governo francês, a Comissão e o Conselho alegam que o Reino de Marrocos é a «potência administrante de facto» do Sara Ocidental, o que permite a celebração de acordos internacionais aplicáveis ao Sara Ocidental e às águas adjacentes sem violação do direito do seu povo à autodeterminação.
218. Em contrapartida, a WSC afirma que, sendo a potência ocupante do Sara Ocidental (188), o Reino de Marrocos não pode celebrar nenhum acordo internacional aplicável ao Sara Ocidental e às águas adjacentes.
219. Os Governos espanhol e português não tomaram posição sobre esta questão, limitando‑se o Governo espanhol a declarar que o Reino de Marrocos não é a potência ocupante do Sara Ocidental, sem, no entanto, precisar em que qualidade pode então concluir acordos internacionais aplicáveis a este território e às águas adjacentes.
220. Esta questão da existência no direito internacional de uma base jurídica que permita à União concluir com o Reino de Marrocos acordos internacionais aplicáveis ao Sara Ocidental e às águas adjacentes é uma questão de interpretação do direito internacional à qual não são aplicáveis os requisitos de invocabilidade do direito internacional.
i) O Reino de Marrocos enquanto potência administrante de facto do Sara Ocidental
221. Em meu entender, há que afastar a tese do Governo francês, do Conselho e da Comissão segundo a qual o Reino de Marrocos é a «potência administrante de facto» do Sara Ocidental. Importa sublinhar que nem o Governo espanhol nem o Governo português adotaram estes termos.
222. Resulta da redação do artigo 73.o da Carta das Nações Unidas que o conceito de «potência administrante» significa «[o]s membros das Nações Unidas que assumiram ou assumam responsabilidades pela administração de territórios [não autónomos]». O Reino de Marrocos não tinha a responsabilidade de administrar o Sara Ocidental no momento da sua adesão à ONU, em 1956, e nunca assumiu tal responsabilidade por se considerar soberano deste território (189).
223. Por outro lado, o conceito de «potência administrante de facto» não existe no direito internacional e foi utilizado pela primeira vez pela Comissão na resposta dada em seu nome pelo Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, vice‑presidente da Comissão, Catherine Ashton, às questões parlamentares com as referências E—001004/11, P—001023/11 e E‑002315/11 (190).
224. Com efeito, o Conselho e a Comissão não conseguiram dar outro exemplo onde este termo tenha sido utilizado para descrever a relação entre um Estado e um território não autónomo. A este respeito, importa sublinhar que no caso, contemporâneo e muito semelhante, da anexação de Timor‑Leste pela República da Indonésia, o termo «potência administrante de facto» não foi utilizado para descrever a qualidade deste Estado na sua relação com Timor‑Leste. Em contrapartida, o Tribunal Internacional de Justiça qualificou como ocupação a intervenção militar da República da Indonésia em Timor‑Leste (191).
225. O facto de através do Acordo de Madrid o Reino de Marrocos se ter tornado membro da administração provisória do Sara Ocidental também não lhe pode conferir o estatuto de potência administrante capaz de concluir acordos internacionais aplicáveis ao Sara Ocidental sem violar o direito do povo deste território à autodeterminação. Com efeito, por um lado, a legitimidade do Acordo de Madrid é fortemente contestada (192), o que é confirmado pelo facto de a Resolução 3458 B (XXX), que toma nota do referido acordo, apenas ter sido aprovada por 56 Estados, ao passo que vários Estados‑Membros da União votaram contra ou se abstiveram (193). Por outro lado, como resulta do n.o 4 da Resolução 3458 B (XXX), a Assembleia Geral da ONU apenas tomou nota do Acordo de Madrid e da existência da administração provisória na medida em que esta última tinha de adotar todas as medidas necessárias para permitir ao povo do Sara Ocidental exercer o seu direito à autodeterminação. Neste sentido, mesmo os Estados que votaram a favor dessa resolução, entre os quais, nomeadamente, os Estados Unidos, não reconhecem ao Reino de Marrocos a qualidade de potência administrante, mas reconhecem o facto de o Reino de Marrocos ter colocado o Sara Ocidental sob o seu «controlo administrativo» (administrative control) (194). Neste contexto, a conclusão de acordos internacionais, sobretudo de acordos de exploração dos recursos naturais do Sara Ocidental como o Acordo de pesca, ultrapassa amplamente a interpretação, mesmo a mais extensiva, que poderia ser dada ao mandato confiado à administração provisória do Sara Ocidental da qual o Reino de Marrocos era membro.
226. Em todo o caso, cabe exclusivamente à Assembleia Geral da ONU reconhecer um território como não autónomo e, portanto, identificar a sua potência administrante (195).
227. Os dois exemplos dados pela Comissão e que visam as Ilhas Cocos (Keeling) e a Nova Guiné ocidental (196) confirmam este papel privilegiado da Assembleia Geral da ONU. No caso das Ilhas Cocos (Keeling), o Reino Unido tinha retirado estas ilhas da colónia da Singapura e tinha‑as colocado sob a autoridade da Commonwealth da Austrália (197). Embora a Assembleia Geral da ONU não tenha dado a sua autorização prévia a essa transferência, a Commonwealth da Austrália continuou a prática do Reino Unido que consiste em fornecer à ONU as informações previstas no artigo 73.o, alínea e), da Carta das Nações Unidas a partir de 1957 (198), e a Assembleia Geral aprovou a referida transferência posteriormente, fazendo figurar a Commonwealth da Austrália como a potência administrante das Ilhas Cocos (Keeling) na sua lista de territórios não autónomos (199).
228. No que respeita à Nova Guiné ocidental, cuja potência administrante era o Reino dos Países Baixos, contrariamente ao que afirma a Comissão, a transferência deste território pelo Reino dos Países Baixos para a Autoridade executiva temporária das Nações Unidas e por esta para a República da Indonésia foi efetuada por tratado internacional que apenas entrou em vigor após a sua aprovação pela Assembleia Geral da ONU (200).
229. No caso em apreço, apesar de o Sara Ocidental ter sido reconhecido como território não autónomo (201), desde 1960, pela Assembleia Geral da ONU, esta nunca reconheceu a qualidade de potência administrante (de jure ou de facto) ao Reino de Marrocos e ainda hoje mantém o Reino de Espanha como tal na sua lista dos territórios não autónomos e das potências administrantes (202).
230. Esta conclusão é reforçada pela carta de 29 de janeiro de 2002, enviada ao presidente do Conselho de Segurança pelo secretário‑geral adjunto para os assuntos jurídicos, conselheiro jurídico, Hans Corell, segundo o qual «[o] [a]cordo de Madrid não previa a transferência de soberania sobre o território nem conferia a nenhum dos signatários o estatuto de potência administrante, estatuto que, de resto, Espanha não podia transferir unilateralmente» (203). Além disso, apesar de ter observado que «Marrocos administra sozinho o território do Sara Ocidental desde [1976]», o que é um facto incontestável, acrescentou que «[t]odavia, Marrocos não figura como potência administrante do território na lista dos territórios não autónomos da ONU, [e por conseguinte,] não transmite informações sobre o território nos termos da alínea e) do [a]rtigo 73.o da Carta das Nações Unidas» (204).
231. Quanto ao resto, o secretário‑geral adjunto para os assuntos jurídicos analisou, por analogia, a legalidade das decisões que tinham sido adotadas pelas autoridades marroquinas relativamente à proposta e à assinatura de contratos de prospeção de recursos minerais no Sara Ocidental celebrados com sociedades privadas estrangeiras, com base nos princípios aplicáveis aos poderes e às responsabilidades das potências administrantes sobre as atividades referentes aos recursos minerais dos territórios não autónomos (205). Baseou esta analogia com o regime jurídico aplicável às potências administrantes na ideia de que, sendo o Sara Ocidental um território não autónomo e existindo este regime em benefício do seu povo, o Reino de Marrocos deveria, pelo menos, assumir as mesmas obrigações que uma potência administrante.
232. Contudo, essa carta não poderia em caso algum servir de base para fundamentar a existência, no direito internacional, do conceito de «potência administrante de facto», nomeadamente no que respeita à questão da celebração de acordos internacionais, que, ao contrário da assinatura de contratos com sociedades privadas, é «um atributo da soberania» (206).
233. Por último, importa observar que a capacidade da potência administrante de concluir acordos internacionais aplicáveis ao território não autónomo e relativos a elementos essenciais do direito dos povos, entre os quais o direito à autodeterminação e o princípio da soberania permanente sobre os recursos naturais, é limitada a partir do momento em que «[a] atividade [de um movimento de libertação nacional] teve alcance internacional» (207). Por conseguinte, mesmo que fosse reconhecida ao Reino de Marrocos a qualidade de potência administrante, a sua capacidade de concluir acordos internacionais aplicáveis ao Sara Ocidental teria sido «limitada» (208).
ii) O Reino de Marrocos enquanto potência ocupante do Sara Ocidental
234. O órgão jurisdicional de reenvio e a WSC consideram que o Reino de Marrocos está a ocupar o Sara Ocidental. Todavia, contrariamente ao órgão jurisdicional de reenvio, a WSC entende que, enquanto potência ocupante, o Reino de Marrocos não pode em caso algum concluir com a União um acordo internacional aplicável ao Sara Ocidental e às águas adjacentes.
235. No que respeita às instituições da União, existe uma diferença significativa entre as posições do Conselho e da Comissão. Com efeito, o Conselho nega categoricamente a aplicação ao Sara Ocidental das regras do direito internacional relativas às ocupações militares, ao passo que a Comissão não o exclui, alegando que os regimes jurídicos aplicáveis às potências administrantes e às potências ocupantes não se excluem mutuamente.
236. Não partilho da tese da WSC uma vez que, em determinadas condições, uma potência ocupante pode concluir acordos internacionais aplicáveis ao território ocupado. É o que sucede no caso em apreço?
– Quanto à aplicabilidade do direito internacional humanitário ao Sara Ocidental
237. As disposições do direito internacional humanitário (ou direito dos conflitos armados) relevantes para a análise seguinte são os artigos 42.o e 43.o do Regulamento de Haia de 1907, os artigos 2.o e 64.o da Convenção IV de Genebra, e o artigo 1.o, n.o 4, do Primeiro Protocolo adicional de 8 de junho de 1977 às Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949, relativo à proteção das vítimas dos conflitos armados internacionais (209) (a seguir «Protocolo adicional I») (210).
238. Antes de mais, importa observar que, como declarou o Tribunal Internacional de Justiça, «[as regras fundamentais do direito internacional humanitário, entre as quais o Regulamento de Haia de 1907,] impõem‑se a todos os Estados, quer tenham ou não ratificado os instrumentos convencionais que as estabelecem, uma vez que constituem princípios invioláveis do direito internacional consuetudinário» (211) e «incluem obrigações que assumem, pela sua própria essência, um caráter erga omnes» (212).
239. Com efeito, nos termos do artigo 1.o da Convenção IV de Genebra, disposição comum às quatro Convenções de Genebra, «[a]s Partes Contratantes comprometem‑se a respeitar e a fazer respeitar a presente convenção em quaisquer circunstâncias» (213).
240. Segundo o Tribunal Internacional de Justiça, «[r]esulta desta disposição a obrigação de cada Estado parte nesta convenção, independentemente de ser parte ou não num determinado conflito, de fazer respeitar as prescrições dos instrumentos em causa» (214).
241. Neste sentido, nos termos do artigo 3.o, n.o 5, TUE, atuando na rigorosa observância do direito internacional, a União tem a obrigação de não reconhecer uma situação ilícita decorrente de uma violação dessas regras e de não prestar auxílio ou assistência à manutenção dessa situação (215).
242. A Convenção IV de Genebra é aplicável desde que estejam preenchidos dois requisitos, designadamente a existência de um conflito armado (quer o estado de guerra tenha sido ou não reconhecido) e a ocorrência deste conflito entre duas partes contratantes (216). Segundo o Tribunal Internacional de Justiça, «[o] segundo parágrafo do artigo 2.o não tem por objeto limitar o âmbito de aplicação da convenção assim fixado pelo primeiro parágrafo, excluindo deste âmbito de aplicação os territórios que não se encontram sob a soberania de uma das partes contratantes. O seu objetivo é apenas precisar que, mesmo que a ocupação operada durante o conflito não tenha encontrado resistência militar, a convenção continua a ser aplicável» (217).
243. Além disso, o artigo 1.o, n.o 4, do Protocolo adicional I estende a aplicação das quatro Convenções de Genebra de 1949 aos «conflitos armados em que os povos lutam contra a dominação colonial e a ocupação estrangeira […] no exercício do direito dos povos à autodeterminação» (218). É o caso do povo do Sara Ocidental, que ainda não exerceu esse direito e se encontra num processo de descolonização (219).
244. Resulta do exposto que o conflito armado que ocorreu no Sara Ocidental entre 1976 e 1988 é um conflito armado internacional, o que torna o Regulamento de Haia de 1907 aplicável ao Sara Ocidental.
– Quanto à existência de uma ocupação militar no Sara Ocidental
245. Neste contexto, há que apreciar se a presença do Reino de Marrocos no Sara Ocidental constitui uma ocupação na aceção do artigo 42.o do Regulamento de Haia de 1907, que a União não pode reconhecer nem à qual pode prestar auxílio ou assistência. Segundo esta disposição, «[c]onsidera‑se que um território está ocupado quando se encontre efetivamente sob a autoridade do exército inimigo».
246. A este respeito, importa antes de mais sublinhar que a existência de uma ocupação é uma questão de facto (220). O órgão jurisdicional de reenvio, assim como a administração tributária e aduaneira e o ministro do Ambiente, da Alimentação e dos Assuntos rurais consideram que o Sara Ocidental se encontra sob ocupação marroquina (221), o que é confirmado pela Resolução 34/37 da Assembleia Geral da ONU (222) à qual o Tribunal de Justiça se referiu nos n.os 35 e 105 do seu acórdão de 21 de dezembro de 2016, Conselho/Frente Polisário (C‑104/16 P, EU:C:2016:973).
247. Além disso, a existência de uma ocupação marroquina no Sara Ocidental é amplamente reconhecida (223), incluindo por Hans Corell (224), que, enquanto secretário‑geral adjunto para os assuntos jurídicos da ONU e conselheiro jurídico, realizou a consulta jurídica sobre a legalidade da decisão, adotada pelas autoridades marroquinas, de celebrar com sociedades estrangeiras contratos de prospeção de recursos minerais no Sara Ocidental (225).
248. Por último, segundo o Tribunal Internacional de Justiça, para saber se «um Estado cujas forças militares estão presentes no território de outro Estado devido a uma intervenção é uma “potência ocupante” na aceção do jus in bello, [há que apreciar] se existem elementos de prova suficientes que demonstrem que [a] autoridade [do exército inimigo] se encontrava efetivamente estabelecida e era exercida nas zonas em questão pelo Estado autor da intervenção» (226).
249. É este claramente o caso da maior parte do Sara Ocidental que se estende a oeste do muro de areia edificado e vigiado pelo exército marroquino e que se encontra sob a autoridade do Reino de Marrocos desde a sua anexação em duas etapas (em 1976 e em 1979 (227)). Foi administrada de forma estruturada (228) pelo Reino de Marrocos desde essa época sem o consentimento do povo do Sara Ocidental, que ainda não exerceu o seu direito à autodeterminação (229).
250. Por outro lado, importa observar que a existência de uma ocupação não se limita ao território continental, mas estende‑se igualmente às águas interiores e ao mar territorial (230). Uma vez que a ZEE não está sob a soberania do Estado costeiro, uma ocupação não se estende a ela, mas a potência ocupante do território costeiro, no caso em apreço o Reino de Marrocos, pode exercer nessa zona a jurisdição que o direito do mar confere ao território costeiro (231).
– Quanto à capacidade da potência ocupante para concluir acordos internacionais aplicáveis ao território ocupado e quanto às condições de legalidade a que está sujeita a conclusão de tais acordos
251. No que respeita à capacidade de uma potência ocupante concluir acordos internacionais aplicáveis ao território ocupado, importa observar que resulta do artigo 43.o do Regulamento de Haia de 1907 (232) e do artigo 64.o, segundo parágrafo, da Convenção IV de Genebra (233) que a potência ocupante pode promulgar leis para assegurar a vida pública e a administração regular do território ocupado (234). Como observa a Comissão, este poder legal de que dispõe a potência ocupante no território ocupado inclui a capacidade de concluir acordos internacionais aplicáveis ao referido território (235). A este respeito, há que observar que o Tribunal Internacional de Justiça não excluiu oficiosamente a possibilidade de terceiros concluírem acordos internacionais aplicáveis a um território não autónomo ocupado unicamente com a potência administrante que já não exerce a sua missão devido à intervenção militar (236).
252. No entanto, ao concluir um acordo internacional aplicável ao território ocupado, a potência ocupante deve atuar na sua qualidade de potência ocupante e não enquanto soberano do território ocupado (237), uma vez que a anexação do território ocupado é estritamente proibida (238).
253. Neste sentido, por exemplo, a Confederação Suíça celebrou com a Autoridade provisória da coligação (239), que atuava expressamente em nome da República do Iraque, um acordo sobre a garantia dos riscos de exportação (240), por considerar que «um Estado ocupante dispõe do poder legal no país que ocupa (artigo 43.o da convenção de Haia de 1907), [o que] significa, em particular, que a potência ocupante pode promulgar leis ou concluir acordos internacionais em nome do Estado ocupado» (241). Esta prática era apoiada pela Resoluções 1483 (2003) de 23 de maio de 2003 (242) e 1511 (2003) de 16 de outubro de 2003 (243) do Conselho de Segurança da ONU.
254. Resulta claramente da redação do referido acordo‑quadro que este não foi concluído com as potências ocupantes da República do Iraque, mas com a Autoridade de coligação provisória, que, «em aplicação das leis e costumes da guerra, […] t[inha] temporariamente força de autoridade governamental no Iraque» (244). Por conseguinte, não existia uma questão de reconhecimento por parte da Confederação Suíça de uma situação ilícita resultante de uma violação das normas invioláveis do direito internacional consuetudinário que incorporam obrigações erga omnes.
255. No caso em apreço, a redação do Acordo de pesca e do Protocolo de 2013 não indica explicitamente que estes foram concluídos com o Reino de Marrocos na sua qualidade de potência ocupante do Sara Ocidental. Em contrapartida, o Reino de Marrocos concluiu tais acordos como soberano do Sara Ocidental. Por conseguinte, contrariamente ao que afirma a Comissão no n.o 139 das suas observações, o artigo 43.o do Regulamento de Haia de 1907 e o artigo 64.o, parágrafo 2, da Convenção IV de Genebra não autorizam a conclusão do Acordo de pesca e do Protocolo de 2013 na forma e da maneira em que foram celebrados, mesmo que o Reino de Marrocos devesse ser considerado a potência ocupante do Sara Ocidental.
b) Quanto ao respeito, pelos atos impugnados, do princípio da soberania permanente sobre os recursos naturais e das regras do direito internacional humanitário aplicáveis à exploração dos recursos naturais do território ocupado
1) O princípio da soberania permanente sobre os recursos naturais
256. O Sara Ocidental é um território não autónomo em processo de descolonização. A este título, a exploração das suas riquezas naturais está abrangida pelo artigo 73.o da Carta das Nações Unidas e pelo princípio consuetudinário da soberania permanente sobre os recursos naturais (245). Além disso, a CNUDM prevê na Resolução III anexada à ata final da terceira Conferência das Nações Unidas sobre o direito do mar que «[n]o caso de um território cujo povo não tenha acedido à plena independência ou a outro regime de autonomia reconhecido pelas Nações Unidas, ou de um território sob dominação colonial, as disposições relativas a direitos ou interesses visados na [CNUDM] são aplicadas em benefício do povo desse território, a fim de promover a sua prosperidade e o seu desenvolvimento».
257. Neste contexto, a exploração de recursos naturais de um território não autónomo, incluindo a exploração haliêutica das águas adjacentes a esse território, deve beneficiar o seu povo (246).
2) Artigo 55.o do Regulamento de Haia de 1907
258. Como potência ocupante do Sara Ocidental (247), o Reino de Marrocos está vinculado pelo artigo 55.o do Regulamento de Haia de 1907, relativo à exploração da propriedade pública do país ocupado. Nos termos destes artigo, «[o] Estado ocupante apenas será considerado administrador e usufrutuário dos edifícios públicos, florestas e explorações agrícolas que pertencem ao Estado inimigo e que se encontrem no país ocupado. Deverá salvaguardar estas propriedades e administrá‑las em conformidade com as regras do usufruto».
259. À semelhança da Comissão, considero que o artigo 55.o do Regulamento de Haia de 1907 pode igualmente ser aplicado à exploração das unidades populacionais haliêuticas de zonas marítimas situadas ao largo das costas do território ocupado.
260. O usufruto é o direito de utilizar as coisas (jus utendi) de outrem e de perceber os frutos (jus fruendi), sem alterar a substância (248). Isto implica que a potência ocupante não pode dispor dos bens públicos do país ocupado mas pode explorá‑los, perceber e vender os seus frutos, bem como utilizar os lucros gerados pela disposição dos frutos dessa exploração, não podendo, porém, desperdiçar, abandonar ou destruir o valor económico dos bens em causa ou exceder o que é necessário ou habitual (249).
261. A redação do artigo 55.o não prevê qualquer limitação específica quanto aos fins da disposição dos frutos da exploração da propriedade pública (250). Todavia, foi declarado que «os artigos 53.o, 55.o e 56.o [do Regulamento de Haia de 1907], relativos à propriedade pública, demonstram claramente que, de acordo com as leis da guerra, a economia de um país ocupado [apenas] deve suportar as despesas de ocupação […]; além disso, estas despesas só devem incumbir‑lhe na medida em que possa razoavelmente assumi‑las» (251).
262. Além disso, o artigo 55.o do Regulamento de Haia de 1907 permite uma exploração da propriedade pública para satisfazer as necessidades do povo do território ocupado, ainda mais no âmbito de uma ocupação prolongada (252).
263. Assim, na ocupação do Iraque, os Estados Unidos da América, o Reino Unido e os membros da coligação aceitaram imediatamente que «o petróleo do Iraque seja protegido e utilizado em benefício do povo iraquiano» (253) e, em conformidade com o n.o 20 da Resolução 1483 (2003) do Conselho de Segurança da ONU, criaram o Fundo de desenvolvimento para o Iraque (254) para aí serem depositados os produtos das vendas da exportação de petróleo, de produtos petrolíferos e de gás natural do Iraque, na expectativa da constituição de um Governo iraquiano representativo e reconhecido pela comunidade internacional.
3) Quanto ao respeito, pelos atos impugnados, do princípio da soberania permanente sobre os recursos naturais e do artigo 55.o do Regulamento de Haia de 1907
264. Antes de mais, importa observar que o direito internacional humanitário, nomeadamente o artigo 55.o do Regulamento de Haia de 1907, constitui uma lex specialis em relação às outras regras do direito internacional, incluindo os direitos do Homem, que podem ser igualmente aplicáveis à mesma situação de facto (255).
265. É certo que o Tribunal Internacional de Justiça declarou, no que respeita ao princípio da soberania permanente sobre os recursos naturais, que «nada […] dá a entender que [seja aplicável] ao caso específico do saque e da exploração de determinados recursos naturais por membros do exército de um Estado que intervém militarmente no território de outro Estado» (256).
266. Todavia, o presente processo não diz respeito a um caso de saque e de exploração de recursos naturais por indivíduos membros do exército, mas a uma política oficial e sistemática de exploração dos recursos haliêuticos (257) implementada conjuntamente pelo Reino de Marrocos e a União.
267. Neste sentido, algumas situações podem estar exclusivamente abrangidas pelo direito internacional humanitário; ou exclusivamente abrangidas pelo direito aplicável à exploração dos recursos naturais dos territórios não autónomos; enquanto outras situações podem estar simultaneamente abrangidas por estes dois ramos do direito internacional (258).
268. Como observa a Comissão no n.o 43 das suas respostas às questões escritas colocadas pelo Tribunal de Justiça, os regimes jurídicos aplicáveis aos territórios não autónomos e aos territórios ocupados não se excluem mutuamente. Além disso, no que respeita ao presente processo, o princípio da soberania permanente sobre os recursos naturais e o artigo 55.o do Regulamento de Haia de 1907 convergem num ponto, nomeadamente o de que a exploração dos recursos naturais do Sara Ocidental (enquanto território não autónomo e território ocupado) não pode ser efetuada em benefício económico do Reino de Marrocos (além das despesas de ocupação, na medida em que o Sara Ocidental possa razoavelmente assumi‑las), devendo ser efetuada em benefício do povo do Sara Ocidental.
269. A este respeito, importa recordar que tanto o Conselho como a Comissão concordam que a exploração das zonas de pesca situadas ao largo das costas do Sara Ocidental deve beneficiar o povo deste território, embora considerem que as disposições do Acordo de pesca e do Protocolo de 2013 são suscetíveis de garantir que esse é efetivamente o caso.
270. Não partilho desta tese pelas seguintes razões.
271. Há que observar que o Acordo de pesca prevê uma exploração sustentável (em inglês «sustainable exploration») das unidades populacionais haliêuticas (259) e, neste sentido, não conduz ao esgotamento desse recurso. A este título, o Acordo de pesca é, à primeira vista, conforme às regras do usufruto a que se refere o artigo 55.o do Regulamento de Haia de 1907 (260) e ao princípio da soberania permanente sobre os recursos naturais. Com efeito, não se pode considerar que uma exploração das águas adjacentes ao Sara Ocidental que esgota as unidades populacionais haliêuticas beneficia o povo deste território.
272. Contudo, resulta do artigo 2.o do Regulamento n.o 764/2006, das fichas técnicas das zonas de pesca n.os 3 a 6 (261) e das informações fornecidas pela Comissão na audiência (262) que a maior parte da exploração prevista no Acordo de pesca e no Protocolo de 2013 visa quase exclusivamente as águas adjacentes ao Sara Ocidental. Com efeito, as capturas efetuadas só na zona de pesca n.o 6 (que abrange unicamente as águas adjacentes ao Sara Ocidental) representam cerca de 91,5% das capturas totais efetuadas no âmbito da exploração haliêutica instituída pelo Acordo de pesca e pelo Protocolo de 2013.
273. Por conseguinte, se o Acordo de pesca é aplicável quase exclusivamente ao Sara Ocidental e às águas adjacentes, daqui resulta que a contrapartida financeira paga ao Reino de Marrocos pela União em conformidade com o artigo 7.o do Acordo de pesca também deveria beneficiar, como admitem o Conselho e a Comissão, quase exclusivamente o povo do Sara Ocidental (exceto se utilizada para cobrir as despesas da ocupação, na medida em que este território possa razoavelmente assumi‑las (263)).
274. Todavia, o artigo 3.o, n.o 1, do Protocolo de 2013 dispõe que a contrapartida financeira anual de 40 milhões de euros está dividida em duas subpartes, uma de 30 milhões de euros paga a título do artigo 7.o do Acordo de pesca (16 milhões de euros como compensação financeira para o acesso aos recursos e 14 milhões de euros como apoio à política setorial das pescas em Marrocos) e uma de 10 milhões de euros correspondentes ao montante estimado das taxas devidas pelos armadores a título das licenças de pesca emitidas em aplicação do artigo 6.o do Acordo de pesca.
275. Nos termos do artigo 3.o, n.o 4, do Protocolo de 2013, esta contrapartida é paga em nome do Tesoureiro Geral do Reino de Marrocos numa conta aberta na Tesouraria Geral do Reino de Marrocos (enquanto no caso da ocupação do Iraque os produtos das vendas do petróleo eram pagos ao Fundo de desenvolvimento para o Iraque).
276. No que respeita à sua afetação, o artigo 3.o, n.o 5 e o artigo 6.o, n.o 1, do Protocolo de 2013 preveem que a contrapartida financeira anual de 40 milhões de euros é da competência exclusiva das autoridades marroquinas, mas no que respeita aos 14 milhões de euros (apoio à política setorial das pescas em Marrocos), instituem um mecanismo de acompanhamento e de supervisão, por parte da União no âmbito de uma comissão mista, da sua utilização pelas autoridades marroquinas.
277. Ora, nos termos do artigo 5.o, n.o 6, do Protocolo de 2013, este mecanismo apenas permite o acompanhamento geral das «repercussões económicas e sociais previstas [no Acordo de pesca], nomeadamente os efeitos ao nível do emprego, os investimentos e qualquer impacto quantificável das ações realizadas, bem como a sua distribuição geográfica».
278. Segundo a Comissão, este mecanismo de acompanhamento permitiu‑lhe garantir que no período de validade do Protocolo de 2013 (2014‑2018), 54 milhões de euros foram ou serão utilizados para a construção de lotas de nova geração, instalações para pescadores, assim como pontos de desembarque equipados e aquícolas, e que aproximadamente 80% dos projetos financiados por este auxílio se situam no Sara Ocidental.
279. Em meu entender, resulta destes elementos que nem o Acordo de pesca nem o Protocolo de 2013 incluem as garantias jurídicas necessárias para que a exploração haliêutica satisfaça as exigências do critério que impõe que esta exploração seja feita em benefício do povo do Sara Ocidental.
280. Em primeiro lugar, o Protocolo de 2013 não inclui nenhum compromisso do Reino de Marrocos de utilizar a contrapartida financeira paga pela União em benefício do povo do Sara Ocidental de forma proporcionada às quantidades das capturas efetuadas nas águas adjacentes ao Sara Ocidental. Em contrapartida, enquanto 91,5% das capturas são efetuadas apenas na zona de pesca n.o 6 (que apenas abrange as águas adjacentes ao Sara Ocidental), somente 35% da contrapartida financeira (14 dos 40 milhões de euros) está abrangida pelo mecanismo de acompanhamento instaurado pelo artigo 6.o do Protocolo de 2013.
281. Em segundo lugar, não existe nenhuma prova de que os 14 milhões de euros são verdadeiramente utilizados em benefício do povo do Sara Ocidental. Em contrapartida, os elementos fornecidos pela Comissão demonstram que dos 160 milhões de euros a pagar num período de quatro anos (2014‑2018), apenas 54 milhões de euros (ou seja, 33,75%) foram utilizados para o desenvolvimento de projetos, 80% dos quais se situaram no Sara Ocidental.
282. Em terceiro lugar, o facto de 80% dos projetos que beneficiam destes 54 milhões de euros se situarem no Sara Ocidental, em si mesmo, não quer dizer nada. O que importa é conhecer a parte deste montante de 54 milhões de euros que está afetada ao financiamento dos projetos situados no Sara Ocidental, mas a Comissão não forneceu esta informação.
283. Por último, importa referir que o artigo 49.o, n.o 6, da Convenção IV de Genebra proíbe a potência ocupante de proceder «à transferência de uma parte da sua própria população civil para o território por ela ocupado» (264). Todavia, não existe nenhuma disposição no Acordo de pesca e no Protocolo de 2013 que obrigue o Reino de Marrocos a fazer com que a parte da contrapartida financeira correspondente à exploração haliêutica das zonas de pescas situadas ao largo das costas do Sara Ocidental seja utilizada de forma a beneficiar sobretudo os «sarauís originários do território» (265) ou as «populações sarauís originárias do território» (266).
284. Por exemplo, a ficha técnica para a zona de pesca n.o 6 (pesca pelágica industrial) prevê uma obrigação de embarque nos navios da União de 2 a 16 «marinheiros marroquinos» em função da arqueação do navio(267), quando esta zona de pesca está exclusivamente compreendida nas águas adjacentes ao Sara Ocidental.
285. Por conseguinte, considero que as disposições do Acordo de pesca e o Protocolo de 2013 não dão qualquer garantia de que a exploração haliêutica das águas adjacentes ao Sara Ocidental seja efetuada em benefício do povo de tal território. Neste sentido, os atos impugnados não respeitam nem o princípio da soberania permanente sobre os recursos naturais (268), nem o artigo 55.o do Regulamento de Haia de 1907, nem a obrigação que incumbe à União de não reconhecer uma situação ilícita decorrente da violação destas disposições e de não prestar auxílio ou assistência à manutenção dessa situação.
286. Resulta do exposto que, na medida em que se aplicam ao território do Sara Ocidental e águas adjacentes a este, o Acordo de pesca e o Protocolo de 2013 são incompatíveis com o artigo 3.o, n.o 5, TUE, o artigo 21.o, n.o 1, primeiro parágrafo, TUE, o artigo 21.o, n.o 2, alíneas b) e c), TUE, e os artigos 23.o TUE e 205.o TFUE, que impõem à União a obrigação de a sua ação externa respeitar estritamente o direito internacional.
287. O Regulamento n.o 764/2006, a Decisão 2013/785 e o Regulamento n.o 1270/2013 violam o artigo 3.o, n.o 5, TUE, o artigo 21.o, n.o 1, primeiro parágrafo, TUE, o artigo 21.o, n.o 2, alíneas b) e c), TUE, e os artigos 23.o TUE e 205.o TFUE, na medida em que aprovam e implementam a aplicação do Acordo de pesca e do Protocolo de 2013 ao território do Sara Ocidental e às águas adjacentes.
c) Quanto às limitações à obrigação de não reconhecimento
288. A este respeito, na audiência, tanto a Comader como a Comissão alegaram que a obrigação de não reconhecer uma situação ilícita decorrente de uma violação de regras erga omnes do direito internacional e da obrigação de não prestar auxílio ou assistência à manutenção dessa situação não pode conduzir à proibição de conclusão de acordos internacionais que promovam o desenvolvimento económico do povo do Sara Ocidental, uma vez que tal proibição acabaria, afinal, por prejudicá‑lo.
289. Assim, invocam o n.o 125 do parecer consultivo sobre a Namíbia (269), no qual o Tribunal Internacional de Justiça declarou que «o não reconhecimento da administração sul‑africana no território não deve ter como consequência privar o povo namibiano das vantagens que pode retirar da cooperação internacional» (270).
290. Em meu entender, esta limitação à obrigação de não reconhecimento não tem qualquer impacto no presente processo.
291. Em primeiro lugar, a Comissão já tentou utilizar o mesmo n.o 125 do parecer consultivo sobre a Namíbia para justificar a aceitação, por parte das autoridades aduaneiras britânicas, dos certificados de circulação dos produtos agrícolas originários do território cipriota ocupado, que tinham sido emitidos pela referida «República Turca de Chipre do Norte», entidade não reconhecida pela União e os seus Estados‑Membros (271). Todavia, o Tribunal de Justiça rejeitou esta abordagem por considerar que não podia ser efetuada uma analogia entre a situação da Namíbia e a ocupação militar que continua a existir no Chipre do Norte (272). Em meu entender, o mesmo sucede na presente situação.
292. Em segundo lugar, a limitação da obrigação de não reconhecimento, estabelecida pelo Tribunal Internacional de Justiça no n.o 125 do seu parecer consultivo sobre a Namíbia para não privar o povo namibiano das vantagens que podia retirar da cooperação internacional, não pode justificar a celebração de acordos internacionais comerciais. Por um lado, a conclusão de tais acordos estava abrangida pela obrigação de não reconhecimento (273). Por outro lado, os exemplos das vantagens de que o povo namibiano devia poder continuar a beneficiar estão longe de incluir os acordos internacionais comerciais. Com efeito, os exemplos dados pelo Tribunal Internacional de Justiça visam a inscrição dos nascimentos, dos casamentos e dos falecimentos no estado civil, «cujos efeitos não podem ser ignorados se não em detrimento dos habitantes do território» (274).
4. Resumo
293. Decorre do exposto que os atos impugnados, que são aplicáveis ao território do Sara Ocidental e às águas adjacentes na medida em que se encontram sob a soberania ou jurisdição do Reino de Marrocos, violam a obrigação que incumbe à União de respeitar o direito do povo desse território à autodeterminação assim como a sua obrigação de não reconhecer uma situação ilegal decorrente de uma violação deste direito e de não prestar auxílio ou assistência à manutenção dessa situação. Além disso, no que respeita à exploração dos recursos naturais do Sara Ocidental, os atos impugnados não estabelecem as garantias necessárias para assegurar que essa exploração é realizada em benefício do povo do referido território.
VI. Quanto ao pedido de limitação temporária dos efeitos da declaração de invalidade apresentado pelo Conselho
294. O Conselho pediu ao Tribunal de Justiça «a limitação temporária dos efeitos da declaração de invalidade [do Regulamento n.o 764/2006, da Decisão 2013/785 e do Regulamento n.o 1270/2013] de forma a permitir à União adotar as medidas necessárias em conformidade com as obrigações que lhe são impostas pelo direito internacional» (275).
295. Sem apresentar mais fundamentação, o Conselho pede, deste modo, que os efeitos dos atos impugnados sejam mantidos durante um período de tempo limitado, como sucedeu, por exemplo, no acórdão de 3 de setembro de 2008, Kadi e Al Barakaat Internacional Foundation/Conselho e Comissão (C‑402/05 P e C‑415/05 P, EU:C:2008:461) (276). No entanto, importa sublinhar que o Protocolo de 2013, que constitui parte integrante do Acordo de pesca (277) e é indispensável para a sua execução, caducará em 14 de julho de 2018 (278). Uma vez que o período entre a prolação do acórdão, em 2018, e o termo deste protocolo é particularmente breve, não estou convencido de que a manutenção dos efeitos dos atos impugnados faça sentido. Em todo caso, as razões que motivaram a manutenção dos efeitos do ato impugnado por um período de três meses no processo que deu origem ao acórdão de 3 de setembro de 2008, Kadi e Al Barakaat Internacional Foundation/Conselho e Comissão (C‑402/05 P e C‑415/05 P, EU:C:2008:461) (279) não se encontram presentes no caso em apreço.
VII. Conclusão
296. Tendo em consideração o exposto, proponho ao Tribunal de Justiça que comece por responder à quarta e, em seguida, à terceira questão prejudicial submetidas pela High Court of Justice (England & Wales), Queen’s Bench Division (Administrative Court) [Tribunal Superior de Justiça (Inglaterra e País de Gales), Secção do foro da Rainha (subsecção administrativa), Reino Unido] o seguinte:
1. a) No âmbito da fiscalização jurisdicional dos acordos internacionais celebrados pela União Europeia e dos atos da União que aprovam ou implementam tais acordos, a invocabilidade das regras do direito internacional está sujeita aos seguintes requisitos, independentemente da sua pertença a uma ou várias fontes do direito internacional: a União deve estar vinculada pela regra invocada, o seu conteúdo deve ser incondicional e suficientemente preciso, e, por último, a sua natureza e sistemática não se devem opor à fiscalização jurisdicional do ato impugnado.
b) O princípio enunciado pelo Tribunal Internacional de Justiça no processo Ouro Monetário Retirado de Roma em 1943, segundo o qual não pode exercer a sua jurisdição em relação a um Estado que não é parte no processo que lhe foi submetido sem o seu consentimento, não é aplicável à fiscalização jurisdicional dos acordos internacionais celebrados pela União Europeia bem como dos atos da União que aprovam ou implementam tais acordos.
2. a) O Acordo de parceria no domínio da pesca entre a Comunidade Europeia e o Reino de Marrocos e o Protocolo entre a União Europeia e o Reino de Marrocos, que fixa as possibilidades de pesca e a contrapartida financeira previstas por este acordo são incompatíveis com o artigo 3.o, n.o 5, TUE, o artigo 21.o, n.o 1, primeiro parágrafo, TUE, o artigo 21.o, n.o 2, alíneas b) e c), TUE, e os artigos 23.o TUE e 205.o TFUE na medida em que se aplicam ao território do Sara Ocidental e às águas adjacentes.
b) O Regulamento (CE) n.o 764/2006 do Conselho, de 22 de maio de 2006, relativo à celebração do acordo de parceria no domínio da pesca entre a Comunidade Europeia e o Reino de Marrocos, a Decisão 2013/785/UE do Conselho, de 16 de dezembro de 2013, relativa à celebração, em nome da União Europeia, do Protocolo entre a União Europeia e o Reino de Marrocos que fixa as possibilidades de pesca e a contrapartida financeira previstas no Acordo de Parceria no domínio da pesca entre a União Europeia e o Reino de Marrocos, e o Regulamento (UE) n.o 1270/2013 do Conselho, de 15 de novembro de 2013, relativo à repartição das possibilidades de pesca a título do Protocolo entre a União Europeia e o Reino de Marrocos que fixa as possibilidades de pesca e a contrapartida financeira previstas no Acordo de Parceria no domínio da pesca em vigor entre a União Europeia e o Reino de Marrocos, são inválidos.