CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL
MACIEJ SZPUNAR
apresentadas em 27 de março de 2019 (1)
Processo C‑716/17
A
[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Østre Landsret (Tribunal de Recurso da Região Este, Dinamarca)]
«Reenvio prejudicial — Trabalhadores — Restrições à livre circulação — Abertura de um processo de saneamento de dívidas — Requisito de residência — Admissibilidade»
I. Introdução
1. No Acórdão Radziejewski (2), o Tribunal de Justiça declarou que uma regulamentação nacional que subordina a concessão de uma medida de exoneração de dívidas a um requisito de residência no Estado‑Membro em causa constitui uma restrição à livre circulação de trabalhadores proibida, em princípio, pelo artigo 45.o TFUE.
2. O presente processo diz respeito à questão de saber se uma regulamentação dinamarquesa em matéria de competência judiciária nos processos de exoneração de dívidas é contrária ao artigo 45.o TFUE. Diferentemente do órgão jurisdicional de reenvio no processo que deu origem ao Acórdão Radziejewski (3), o órgão jurisdicional autor do despacho de reenvio no presente processo considera que a regulamentação em causa constitui uma restrição à livre circulação dos trabalhadores. Assim sendo, com a sua primeira questão prejudicial, o Østre Landsret (Tribunal de Recurso da Região Este, Dinamarca) pretende saber se essa restrição pode, no entanto, ser justificada. Com a sua segunda questão, submetida a título subsidiário, esse órgão jurisdicional pede ao Tribunal de Justiça para declarar se, nas circunstâncias do caso em apreço, o artigo 45.o TFUE tem efeito direto relativamente aos credores privados de um devedor que tenha apresentado um pedido de exoneração de dívidas.
II. Quadro jurídico
A. Direito da União
1. Regulamento (CE) n.o 44/2001
3. O artigo 1.o do Regulamento (CE) n.o 44/2001 (4) enuncia:
«1. O presente regulamento aplica‑se em matéria civil e comercial e independentemente da natureza da jurisdição. O presente regulamento não abrange, nomeadamente, as matérias fiscais, aduaneiras e administrativas.
2. São excluídos da sua aplicação:
[…]
b) As falências, as concordatas e os processos análogos;
[…]»
2. Regulamento (UE) n.o 1215/2012
4. Nos termos do artigo 1.o do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 (5):
«1. O presente regulamento aplica‑se em matéria civil e comercial, independentemente da natureza da jurisdição. Não abrange, nomeadamente, as matérias fiscais, aduaneiras ou administrativas, nem a responsabilidade do Estado por atos ou omissões no exercício da autoridade do Estado (acta jure imperii).
2. O presente regulamento não se aplica:
[…]
b) Às falências, concordatas e processos análogos;
[…]»
3. Regulamento (UE) 2015/848
5. O artigo 1.o do Regulamento (UE) 2015/848 (6), intitulado «Âmbito de aplicação», dispõe:
«1. O presente regulamento é aplicável aos processos coletivos públicos de insolvência, incluindo os processos provisórios, com fundamento na lei no domínio da insolvência e nos quais, para efeitos de recuperação, ajustamento da dívida, reorganização ou liquidação:
[…]
b) Os bens e negócios do devedor ficam submetidos ao controlo ou à fiscalização por um órgão jurisdicional; ou
[…]»
6. Ora, o considerando 88 do Regulamento 2015/848 recorda que o Reino da Dinamarca não está vinculado por este regulamento nem sujeito à sua aplicação. O Reino da Dinamarca também não estava vinculado pelo antecessor deste regulamento, o Regulamento (CE) n.o 1346/2000 (7).
B. Direito dinamarquês
7. Nos termos do artigo 3.o da konkursloven (Lei da Insolvência):
«1. Os requerimentos de reestruturação de dívidas, insolvência ou exoneração de dívidas devem ser apresentados no tribunal de insolvência do local onde o devedor prossegue atividade comercial.
2. Se o devedor não exercer atividade comercial na Dinamarca, o requerimento deve ser apresentado no tribunal de insolvência da área judicial em que o devedor tem domicílio.
[…]»
8. O conceito de «domicílio» («hjemting») deve ser interpretado em conformidade, designadamente, com o artigo 235.o da retsplejeloven (Lei de Administração da Justiça), que tem a seguinte redação:
«1. Os processos judiciais devem ser propostos no local do domicílio do demandado, salvo disposição legal em contrário.
2. O domicílio considera‑se situado na área judicial onde o demandado tenha residência. Se o demandado tiver residência em mais de uma área judicial, cada uma delas constitui um domicílio.
3. Se o demandado não tiver residência, o domicílio considera‑se situado na área judicial onde ele viver.
4. Se o demandado não tiver nem residência nem lugar conhecido onde viva, o domicílio considera‑se situado na área judicial onde tenha residido ou vivido mais recentemente.»
III. Factos do litígio do processo principal
9. O requerente no processo principal, A, é um cidadão dinamarquês que exerce a sua atividade profissional como trabalhador dependente na Dinamarca, onde também é tributado pela totalidade do seu rendimento. A tem domicílio na Suécia.
10. Em 8 de fevereiro de 2017, A apresentou um pedido de exoneração de dívidas no Sø‑ og Handelsretten (Tribunal Marítimo e Comercial, Dinamarca), em Copenhaga (Dinamarca). O pedido dizia respeito a dívidas a credores dinamarqueses, contraídas desde 1999.
11. Por despacho de 6 de abril de 2017, o Sø‑ og Handelsretten (Tribunal Marítimo e Comercial) indeferiu o pedido por falta de competência. Segundo esse órgão jurisdicional, os tribunais dinamarqueses não são competentes para conhecer de uma ação intentada por A, com o fundamento de que este não exerce uma atividade económica independente no país e não tem aí o seu domicílio.
12. Assim, o Østre Landsret (Tribunal de Recurso da Região Este), na sua qualidade de órgão jurisdicional de segunda instância, deve decidir se um tribunal dinamarquês é competente para conhecer do pedido de A com vista a obter uma exoneração de dívidas. Esse órgão jurisdicional considera que um tribunal dinamarquês pode ser competente se as regras dinamarquesas relativas à competência dos tribunais em matéria de exoneração de dívidas forem contrárias ao direito da União.
IV. Questões prejudiciais e tramitação do processo no Tribunal de Justiça
13. Nestas circunstâncias, o Østre Landsret (Tribunal de Recurso da Região Este) decidiu suspender a instância e submeter à apreciação do Tribunal de Justiça as seguintes questões:
«1) O artigo 45.o TFUE, tal como interpretado na sequência do Acórdão [Radziejewski (8)], opõe‑se a uma regra de competência judiciária como a dinamarquesa, cujo objetivo é garantir que o tribunal que aprecia um processo envolvendo a exoneração de dívidas conhece e pode ter em conta na sua avaliação a situação socioeconómica específica em que o/a devedor/a e a sua família vivem e se deve presumir que continuarão a viver daí em diante e que a avaliação pode ser realizada segundo critérios previamente determinados estabelecendo o que pode ser considerado um padrão de vida aceitavelmente modesto no âmbito do acordo de exoneração de dívidas?
Se a resposta à primeira questão for que a restrição não se pode considerar justificada, o Tribunal de Justiça da União Europeia é convidado a responder à seguinte questão:
2) Deve o artigo 45.o TFUE ser interpretado no sentido de que tem igualmente efeito direto entre particulares numa situação como a do processo principal, com a consequência de os credores privados terem de aceitar reduções ou a perda total de montantes que lhes são devidos por um devedor que se tenha mudado para outro país?»
14. O pedido de decisão prejudicial deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 22 de dezembro de 2017.
15. Foram apresentadas observações escritas por A, pelo Governo dinamarquês e pela Comissão Europeia. Estas partes participaram na audiência que teve lugar em 15 de janeiro de 2019.
V. Análise
16. Para uma clara compreensão dos desafios colocados pelo presente processo, há que, antes de mais, contextualizar os problemas suscitados pelas questões prejudiciais no âmbito do sistema de direito internacional privado da União. Para este efeito, apresentarei a título preliminar algumas observações sobre o processo dinamarquês de exoneração de dívidas. Em seguida, analisarei se esse processo se enquadra no âmbito de aplicação dos instrumentos do direito da União. Por último, com base nestas considerações, farei a análise das questões prejudiciais.
A. O processo dinamarquês de exoneração de dívidas
17. O órgão jurisdicional de reenvio explica que um processo dinamarquês de exoneração de dívidas é iniciado com a apresentação de um pedido por um devedor no tribunal de insolvência. Esse tribunal reúne com o devedor e determina se existem circunstâncias que se oponham à instauração desse processo. É também nesta fase que é analisada a competência dos tribunais dinamarqueses e que tem lugar o processo que deu origem às presentes questões prejudiciais.
18. Se o tribunal for competente e não existirem, nesta fase, circunstâncias que se oponham à instauração do processo de exoneração de dívidas, o tribunal de insolvência dá início ao referido processo. Para o efeito, esse tribunal designa um assistente, que deve ser um advogado, que deve analisar em detalhe a situação económica do devedor e elaborar um plano de desendividamento. Este plano contém uma descrição detalhada do ativo e do passivo do devedor, bem como da situação económica do agregado familiar, e inclui uma proposta de exoneração de dívidas.
19. Esta proposta é enviada aos credores que só intervêm no processo a partir desse momento. É‑lhes fixado um prazo para formularem objeções contra a referida proposta. O tribunal de insolvência convoca, em seguida, uma reunião na qual é tomada uma decisão quanto ao pedido de exoneração.
20. O tribunal de insolvência pode proferir um despacho de exoneração de dívidas se, por um lado, o devedor provar que não tem condições para pagar as suas dívidas e que não terá a possibilidade de o fazer durante vários anos e se, por outro, se considerar que a exoneração das suas dívidas é suscetível de conduzir a uma melhoria duradoura da sua situação económica. Não pode ser proferido despacho de exoneração de dívidas se, nomeadamente, a situação económica do devedor não estiver clarificada. O tribunal de insolvência também pode recusar uma exoneração de dívidas se a isso se opuserem outras circunstâncias.
21. Resulta da interpretação das disposições dinamarquesas, apresentada pelo órgão jurisdicional de reenvio, que o tribunal de insolvência deve poder avaliar a situação social e financeira passada, presente e futura do devedor, para determinar se este preenche os requisitos de uma exoneração de dívidas, bem como a do seu cônjuge ou coabitante e a dos seus filhos. Para efeitos dessa apreciação e, nomeadamente, da verificação das informações apresentadas pelo devedor, é muitas vezes necessário um conhecimento do contexto local. Assim, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, é essencial que os pedidos de exoneração de dívidas sejam apreciados pelo tribunal do domicílio ou de residência do devedor.
B. Observação preliminar sobre a aplicabilidade dos instrumentos jurídicos do direito internacional privado da União
22. Em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio refere que o Reino da Dinamarca não aplica o Regulamento n.o 1346/2000 e alega que, à luz do Acórdão Radziejewski (9), mesmo que este regulamento fosse aplicável, o processo dinamarquês de exoneração de dívidas não seria abrangido pelo referido regulamento. Por outro lado, esse órgão jurisdicional assinala que, à semelhança do processo sueco de exoneração de dívidas em causa nesse acórdão, o processo dinamarquês de exoneração de dívidas não determina a inibição do devedor.
23. Saliento que, no Acórdão Radziejewski (10), o Tribunal de Justiça assinalou que o processo sueco de exoneração de dívidas não constava do anexo A do Regulamento n.o 1346/2000 e que este regulamento se aplicava apenas aos processos enumerados no referido anexo (11). Nesta ordem de ideias, o Tribunal de Justiça declarou, no Acórdão Bank Handlowy e Adamiak (12), que o processo francês de sauvegarde se inseria no âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1346/2000 pelo facto de constar dos processos inscritos no anexo A deste regulamento. Ora, alguns autores exprimiram dúvidas quanto ao respeito por esse processo dos requisitos enunciados no artigo 1.o, n.o 1, do referido regulamento (13). Assim, esses autores deduziram que, ao incluírem um processo no anexo A do Regulamento n.o 1346/2000, os Estados‑Membros podem tornar esse regulamento aplicável a processos que não preenchem os requisitos que determinam o seu âmbito de aplicação (14).
24. Nestas circunstâncias, no presente processo, não se me afigura necessário debater a questão de saber se um processo que não preenche os requisitos previstos no artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1346/2000 pode ser incluído no anexo A do referido regulamento. O processo dinamarquês não consta desse anexo muito simplesmente porque o Reino da Dinamarca não aplica o Regulamento n.o 1346/2000.
25. Além disso, é verdade, como referem o Governo dinamarquês e a Comissão, que o Regulamento 2015/848, que sucedeu ao Regulamento n.o 1346/2000, parece abranger os processos de exoneração de dívidas. Resulta do artigo 1.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento 2015/848 que este regulamento é aplicável aos processos coletivos públicos de insolvência com fundamento na lei no domínio da insolvência e nos quais, para efeitos de ajustamento da dívida, os bens e negócios do devedor ficam submetidos ao controlo ou à fiscalização por um órgão jurisdicional, desde que, conforme resulta do artigo 1.o, n.o 1, terceiro parágrafo, do referido regulamento, esses processos sejam enumerados no anexo A do mesmo regulamento (15). Todavia, importa observar que, à semelhança do Regulamento n.o 1346/2000, o Regulamento 2015/848 não vincula o Reino da Dinamarca. Por outro lado, o Regulamento 2015/848 é aplicável aos processos iniciados após 26 de junho de 2017 (16), ao passo que o pedido que deu origem ao processo principal foi apresentado em 7 de fevereiro de 2017.
26. Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio refere que, ao contrário dos regulamentos relativos à insolvência, o Regulamento n.o 44/2001 é aplicável ao Reino da Dinamarca por força do «acordo paralelo» (17).
27. Ora, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, o processo dinamarquês de exoneração de dívidas não entra no âmbito de aplicação do Regulamento n.o 44/2001 nem do seu sucessor, o Regulamento n.o 1215/2012. Nos termos do respetivo artigo 1.o, n.o 2, alínea b), estes dois regulamentos não são aplicáveis às falências, concordatas e processos análogos.
28. A este respeito, partilho do ponto de vista do órgão jurisdicional de reenvio.
29. Embora o processo de exoneração de dívidas preencha os requisitos estabelecidos no artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento 2015/848 e, por conseguinte, seja suscetível de ser abrangido pelo âmbito de aplicação deste regulamento, este processo não pode, na minha opinião, ser abrangido pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1215/2012. O Regulamento n.o 1215/2012 e o Regulamento 2015/848 são complementares e os respetivos âmbitos de aplicação não se devem sobrepor (18).
30. O facto de o Regulamento 2015/848 não ser aplicável à Dinamarca não é pertinente (19). O âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1215/2012 não pode ser determinado em função da aplicabilidade ou não do Regulamento 2015/848 no Estado‑Membro em causa.
31. Além disso, conforme resulta dos n.os 23 e 24 das presentes conclusões, a aplicabilidade do Regulamento 2015/848 está dependente da inclusão de um processo no anexo A deste regulamento (20). Todavia, é evidente que um processo que preenche os requisitos enunciados no artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento 2015/848 não pode ser abrangido pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1215/2012 pelo mero facto de não constar d anexo A do Regulamento 2015/848 (21).
32. Em resumo, o processo dinamarquês de exoneração de dívidas objeto da decisão de reenvio não está abrangido pelos âmbitos de aplicação dos Regulamentos n.os 1346/2000, 44/2001 e 1215/2012. Consequentemente, as normas destes regulamentos não serão tidas em conta na análise relativa às questões prejudiciais submetidas no presente processo. Sendo assim, na minha análise da primeira questão prejudicial, abordarei a problemática relativa à aplicação do Regulamento 2015/848 em circunstâncias como as do caso em apreço, dado que o Governo dinamarquês parece deduzir deste regulamento um argumento a favor da tese de que o artigo 45.o TFUE não se opõe ao requisito de residência previsto pela regulamentação dinamarquesa.
C. Quanto à primeira questão prejudicial
33. Com a sua primeira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se o requisito de residência, conforme previsto pela regulamentação dinamarquesa, pode ser justificado pelo facto de permitir que o tribunal chamado a pronunciar‑se sobre o pedido de exoneração de dívidas possa decidir com base em informações relativas à situação social e financeira passada, presente e futura do devedor e da sua família.
34. Em contrapartida, o órgão jurisdicional de reenvio não pede ao Tribunal de Justiça para se pronunciar sobre a questão de saber se o requisito de residência previsto pelas regras dinamarquesas constitui uma restrição à livre circulação dos trabalhadores proibida, em princípio, pelo artigo 45.o TFUE. Fazendo referência ao Acórdão Radziejewski (22), o órgão jurisdicional de reenvio e todas as partes consideram que a regulamentação dinamarquesa em causa restringe a livre circulação dos trabalhadores. No entanto, as suas opiniões divergem no que se refere à justificação dessa restrição.
35. Antes de abordar a análise de mérito, farei algumas observações quanto aos eventuais entraves criados pelas regras de competência à luz do Acórdão Radziejewski (23). Em seguida, tendo em conta os argumentos apresentados pelo órgão jurisdicional de reenvio e pelo Governo dinamarquês, analisarei a questão de saber se, nas circunstâncias do caso em apreço, o requisito de residência pode ser considerado justificado.
1. Quanto à existência da restrição à livre circulação
36. O Tribunal de Justiça sublinhou na sua jurisprudência que uma disposição nacional que opera distinções com base no critério da residência corre o risco de funcionar principalmente em detrimento de nacionais de outros Estados‑Membros e, por conseguinte, constituir uma discriminação indireta em razão da nacionalidade, contrária à livre circulação dos trabalhadores (24).
37. Ora, o presente processo diz respeito a regras nacionais em matéria de competência internacional. Estas regras, pela sua natureza, carecem de critérios de conexão nos termos dos quais as autoridades de um Estado são designadas como competentes para conhecer de uma categoria de processos. Além disso, nomeadamente no interesse de uma boa administração da justiça, essas regras baseiam‑se em grande medida na premissa de que deve existir um vínculo entre o processo em causa e o Estado cujos tribunais são competentes para conhecer desse litígio (25). Assim, não surpreende que, relativamente ao critério de conexão, seja muitas vezes feita referência ao local de residência.
38. Seguir a abordagem segundo a qual a introdução, numa regra de competência, de um critério de conexão relativo ao local de residência constitui uma discriminação indireta em razão da nacionalidade, pode levar a considerar que todas as regras de competência que assentam na existência de um vínculo entre o domicílio ou a residência e o Estado em questão seriam, pela sua natureza, discriminatórias e, por isso, em princípio contrárias às liberdades consagradas pelo direito da União.
39. Ora, afigura‑se‑me que esse resultado seria paradoxal na medida em que a repartição de competências é, atualmente, realizada através de regras de competência, que utilizam critérios de conexão.
40. Há que não perder de vista o facto de que o presente processo diz respeito a uma regra de competência específica, relativa ao processo de exoneração de dívidas. Esses processos não são objeto, pelo menos no contexto temporal do presente processo, de regras de competência harmonizadas. Além disso, os Estados‑Membros não são obrigados a introduzir um processo de exoneração de dívidas nos respetivos ordenamentos jurídicos.
41. Em geral, as regras de competência não conferem, pelo menos diretamente, direitos substantivos. O seu papel limita‑se à designação das autoridades que são competentes para decidir sobre a concessão ou não de um direito.
42. No entanto, no caso de um processo específico, como o processo de exoneração de dívidas, os Estados‑Membros são livres de o introduzir ou não no seu direito nacional. Consequentemente, o papel de uma regra de competência não se limita exclusivamente à repartição das competências entre as autoridades de todos os Estados‑Membros. Relativamente a esse processo, a competência dos órgãos jurisdicionais de um Estado‑Membro pode traduzir‑se num acesso à exoneração de dívidas e, logo, à decisão relativa à exoneração de dívidas que, no território de um Estado‑Membro interessado, será oponível aos credores de um devedor.
43. Consequentemente, não se exclui que uma regra de competência nacional pela qual o legislador determina na prática quem pode beneficiar de um dado processo possa impedir ou dissuadir um trabalhador nacional de um Estado‑Membro de deixar o seu país de origem para exercer o seu direito à livre circulação, previsto pelo direito primário.
44. Este foi o raciocínio seguido pelo Tribunal de Justiça no Acórdão Radziejewski (26), no qual declarou que uma regulamentação nacional que subordina a concessão de uma medida de exoneração de dívidas a um requisito de residência é suscetível de dissuadir um trabalhador insolvente, cujo endividamento é de tal ordem que dificilmente se prevê que possa pagar as suas dívidas num futuro previsível, de exercer o seu direito de livre circulação.
45. Por conseguinte, e pelas mesmas razões, considero que o requisito de residência, introduzido no âmbito da regulamentação dinamarquesa, constitui uma restrição à livre circulação dos trabalhadores. Importa agora responder à questão de saber se esta restrição pode ser considerada justificada.
2. Quanto à justificação
46. O órgão jurisdicional de reenvio considera que o requisito de residência, previsto pelas regras dinamarquesas em matéria de competência judiciária, deve ser considerado justificado. Sobre esta questão, as partes têm posições divergentes. O Governo dinamarquês subscreve a posição do órgão jurisdicional de reenvio, ao passo que A e a Comissão consideram que, à luz do artigo 45.o TFUE, esse requisito não pode ser justificado.
47. Para determinar se uma medida, que se constatou que restringe a livre circulação dos trabalhadores, pode ser justificada, há que verificar, em primeiro lugar, se essa medida prossegue um objetivo legítimo compatível com o Tratado e se se justifica por razões imperiosas de interesse geral, em segundo lugar, se garante a realização do objetivo em causa e, em terceiro, se não vai além do necessário para alcançar esse objetivo (27). Analisarei antes de mais o primeiro requisito relativo à existência de um objetivo legítimo e, em seguida, o segundo e terceiro requisitos, que se traduzem, respetivamente, pelo caráter adequado e necessário da regulamentação em causa.
a) Fundamento de justificação invocado
48. Resulta da formulação da primeira questão prejudicial, bem como do conteúdo da decisão de reenvio, que o requisito de que o domicílio do devedor se deve situar na Dinamarca tem por objetivo que o pedido de exoneração de dívidas possa ser objeto de uma decisão suficientemente fundamentada, baseada em informações que permitam, em primeiro lugar, apreciar as condições de vida do devedor nos planos social e financeiro, a fim de determinar se o seu endividamento se deve a uma falta de capacidade ou de vontade, em segundo lugar, garantir uma melhoria duradoura da situação do devedor e, em terceiro lugar, fazer com que o devedor tenha um nível de vida adequado — modesto mas suficiente — no período que se segue, em que a dívida será reembolsada de forma faseada.
49. Assim, o objetivo do requisito de residência, tal como explicitado pelo órgão jurisdicional de reenvio, visa assegurar que as circunstâncias relativas à situação social e financeira do devedor e dos seus familiares, bem como as condições de vida no local onde asseguram o sustento das suas necessidades, serão tidas em conta na análise do pedido de exoneração de dívidas.
50. No Acórdão Radziejewski, o Tribunal de Justiça declarou, nomeadamente, ao responder ao argumento do Governo sueco segundo o qual o requisito de residência era necessário para poder determinar, de forma satisfatória, a situação financeira e pessoal do devedor, que é legítimo que um Estado‑Membro queira fiscalizar a situação financeira e pessoal do devedor, antes de lhe conceder uma medida que se destina a exonerá‑lo da totalidade ou de uma parte das suas dívidas (28).
51. Afigura‑se‑me que o objetivo do requisito de residência previsto na regulamentação dinamarquesa não apresenta diferenças com o do requisito de residência referido no Acórdão Radziejewski (29).
52. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio e o Governo dinamarquês, o Tribunal de Justiça tinha analisado nesse acórdão o requisito de residência à luz da necessidade de fiscalizar a situação pessoal e financeira do devedor. Contudo, o Tribunal de Justiça não se tinha pronunciado sobre a questão de saber se o facto de reservar o acesso ao processo de exoneração de dívidas a pessoas residentes ou, pelo menos, que tivessem tido o seu último domicílio no Estado do pedido, pode ser justificado pelo objetivo de garantir que o órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se sobre esse pedido tem conhecimento da real situação social e financeira do devedor e pode tê‑la em conta na sua apreciação.
53. Além disso, o Governo dinamarquês considera que a regulamentação sueca objeto do processo que deu origem ao Acórdão Radziejewski (30) também implicava uma fiscalização a posteriori do devedor, permitindo às autoridades suecas acompanhar os esforços por ele envidados para cumprir as suas obrigações. Consequentemente, este governo alega que o requisito de residência não podia garantir o objetivo prosseguido, uma vez que o devedor podia simplesmente transferir a sua residência para outro Estado‑Membro após a apresentação do seu pedido de exoneração de dívidas. Em contrapartida, no âmbito do processo de exoneração de dívidas dinamarquês, os tribunais não procedem a uma fiscalização a posteriori do devedor.
54. Afigura‑se assim que o órgão jurisdicional de reenvio e o Governo dinamarquês alegam que a regulamentação dinamarquesa procura assegurar um nível de conhecimento da situação de um devedor mais elevado que o exigido nos termos da regulamentação sueca em causa no processo Radziejewski (31).
55. No entanto, nestes dois casos, o objetivo do requisito de residência permanece inalterado. As diferenças quanto ao nível de conhecimento da situação de um devedor poderiam ser, na minha opinião, refletidas na análise da necessidade da regulamentação em causa.
56. Parece‑me, por outro lado, que o argumento alegado pelo Governo dinamarquês, de que a regulamentação dinamarquesa não prevê uma fiscalização a posteriori, não é coerente com alguns dos seus outros argumentos. Com efeito, este governo alega nas suas observações que um despacho de exoneração de dívidas proferido a favor de um devedor que se ausentou para o estrangeiro pode, em determinadas circunstâncias, ser anulado.
57. O órgão jurisdicional de reenvio refere‑se a essa eventualidade de forma mais clara ao indicar que um despacho de exoneração de dívidas pode ser anulado se o devedor agir fraudulentamente durante o processo de exoneração de dívidas ou incumprir as obrigações que lhe tenham sido impostas no despacho de exoneração de dívidas. Em todo o caso, conforme resulta da decisão de reenvio e das observações do Governo dinamarquês, a anulação de um despacho de exoneração de dívidas não é proferida automaticamente.
58. A análise do comportamento de um devedor após a adoção de um despacho desse tipo, pelo qual as autoridades dinamarquesas pretendem saber se o devedor cumpre as condições estabelecidas nesse despacho constitui, na minha opinião, uma forma de fiscalização a posteriori. Por conseguinte, não estou convencido com o argumento do Governo dinamarquês de que o presente processo se distingue do processo que deu origem ao Acórdão Radziejewski (32) na medida em que as autoridades dinamarquesas não fazem fiscalização a posteriori.
59. À luz do que precede, tendo em conta a analogia entre o objetivo da regulamentação sueca em causa no Acórdão Radziejewski (33) e o da regulamentação em causa no presente processo, considero que o requisito de residência previsto pela regulamentação dinamarquesa prossegue um objetivo legítimo, a saber, que o pedido de exoneração de dívidas seja objeto de uma decisão esclarecida e baseada em informações que permitam determinar a situação social e financeira passada, presente e futura de um devedor e dos seus familiares, bem como as condições de vida no local onde asseguram o sustento das suas necessidades.
b) Caráter apropriado e necessidade da regulamentação em causa
60. As considerações do órgão jurisdicional de reenvio e do Governo dinamarquês, pelas quais procuram justificar a restrição em causa, assentam na ideia de que a proximidade geográfica entre o local de residência de um devedor e o da sede de um tribunal chamado a pronunciar‑se sobre o pedido de exoneração de dívidas permite assegurar que as circunstâncias relativas à situação social e financeira desse devedor e dos seus familiares, bem como as condições de vida no local onde asseguram o sustento das suas necessidades, serão tidas em conta na apreciação desse pedido.
61. A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio e o Governo dinamarquês sustentam que um tribunal que conhece de pedidos de exoneração de dívidas não tem, e não pode ter, conhecimento das circunstâncias em que vive um requerente noutro Estado‑Membro. Não existem regras que permitam exigir de outros Estados‑Membros o envio de informações sobre as circunstâncias locais em matéria de recursos e de despesas ou sobre outros fatores importantes para apreciar um pedido de exoneração de dívidas. Por outro lado, esse tribunal não estaria em condições de verificar as informações prestadas pelo próprio devedor.
62. Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio refere que, na falta de regras harmonizadas, não há um meio menos restritivo para atingir esse resultado que o que consiste em restringir o acesso ao processo de exoneração de dívidas aos devedores residentes na Dinamarca. Em contrapartida, segundo o Governo dinamarquês, a interpretação do artigo 45.o TFUE no sentido de que esta disposição se opõe a uma regra de competência como a dinamarquesa obsta à aplicação efetiva do Regulamento 2015/848.
63. À semelhança de A e da Comissão, considero que a aplicação do requisito de residência em relação aos trabalhadores apresenta, pelo menos em dois aspetos, uma falta de lógica e uma falta de coerência. Os argumentos do Governo dinamarquês e do órgão jurisdicional de reenvio relativos, respetivamente, à existência de disposições harmonizadas e à sua falta não podem resolver estes problemas.
64. O primeiro problema prende‑se com o facto de o requisito de residência parecer aplicar‑se apenas em relação aos trabalhadores que exercem a sua atividade profissional na Dinamarca e não às pessoas que exerçam uma atividade económica independente na Dinamarca. Ora, quanto a estes últimos, o facto de não residirem no território dinamarquês não constitui um obstáculo à apresentação de um pedido de exoneração de dívidas nos tribunais desse Estado‑Membro.
65. O segundo problema diz respeito ao facto de, conforme resulta do pedido de decisão prejudicial e das observações escritas da parte requerente, de acordo com a regulamentação dinamarquesa, a existência do requisito de residência só ser apreciada no momento da apresentação do pedido de exoneração de dívidas.
1) Coerência da aplicação do requisito de residência e suas implicações na resposta à questão prejudicial
66. O requisito de residência assenta na ideia de que, graças à proximidade geográfica entre o local de residência de um devedor e o local da sede do tribunal chamado a pronunciar‑se, este último pode decidir sobre um pedido de exoneração de dívidas com base em informações relativas à situação social e económica do devedor. Na apreciação da sua situação socioeconómica pelo tribunal de insolvência, deve, em princípio, ser dada a mesma importância a este requisito quer se trate de um trabalhador independente ou de um trabalhador por conta de outrem. Nestes dois casos, as medidas que permitam obter informações provenientes de outro Estado‑Membro e as que permitem verificar as informações provenientes do devedor são praticamente idênticas.
67. Ora, afigura‑se‑me que, segundo a regulamentação dinamarquesa, o requisito de residência não é aplicado de forma coerente. Com efeito, enquanto uma pessoa que exerce uma atividade económica independente em território dinamarquês pode apresentar um pedido de exoneração de dívidas no tribunal dinamarquês do local de exercício dessa atividade, apesar de não residir na Dinamarca, um trabalhador por conta de outrem que não tenha a sua residência em território dinamarquês não pode apresentar esse pedido nos tribunais deste Estado‑Membro.
68. No que respeita ao presente processo, é pacífico que o requerente no processo principal trabalha na Dinamarca, onde é tributado pela totalidade do seu rendimento. Consequentemente, como admite o Governo dinamarquês, a situação social e económica deste requerente pode ser determinada, pelo menos parcialmente, sem necessitar de ter em conta informações provenientes de outro Estado‑Membro (34).
69. No entanto, em conformidade com a regulamentação dinamarquesa, o requerente não tem qualquer possibilidade de invocar as circunstâncias referidas no número anterior para poder recorrer a um tribunal dinamarquês, embora estas evidenciem a existência de um vínculo com a Dinamarca. Ora, se esse vínculo é suficiente para permitir aos tribunais dinamarqueses decidirem sobre um pedido de exoneração de dívidas apresentado por uma pessoa que exerce uma atividade económica independente no território desse Estado‑Membro, esse vínculo também deve ser suficiente para permitir decidir quanto a um pedido apresentado por um trabalhador por conta de outrem.
70. Isto é tanto mais verdade quanto, como demonstram os exemplos apresentados por A nas suas observações escritas (35), a regulamentação dinamarquesa não impede os tribunais nacionais de decidirem sobre pedidos de exoneração de dívidas ainda que devam tomar em conta informações provenientes de outro Estado‑Membro.
71. Consequentemente, esta aplicação incoerente do requisito de residência nos termos da regulamentação dinamarquesa evidencia que não é necessário residir no território dinamarquês para que os tribunais deste Estado‑Membro possam decidir sobre pedidos de exoneração de dívidas. Trata‑se de um indício de que um requisito de residência, como o previsto pela regulamentação dinamarquesa, vai além do que é necessário para atingir o objetivo referido no n.o 59 das presentes conclusões.
2) Implicações do princípio da perpetuatio fori na justificação do requisito de residência
72. Nas suas observações escritas, A refere que, segundo a doutrina e a jurisprudência dinamarquesa, um pedido que dá origem ao processo de exoneração de dívidas deve ser apresentado no tribunal competente ratione locis tendo em conta o domicílio à data desse pedido. Em contrapartida, as apreciações efetuadas no âmbito do processo de exoneração de dívidas dizem respeito à situação do requerente no momento da tomada de decisão sobre esse pedido.
73. Afigura‑se‑me que o órgão jurisdicional de reenvio faz, a este respeito, a mesma interpretação das disposições dinamarquesas. Com efeito, refere na decisão de reenvio que um tribunal dinamarquês aprecia a existência da sua própria competência na fase de apresentação de um pedido de exoneração de dívidas.
74. De facto, de acordo com a regra do «princípio da perpetuatio fori», quando um órgão jurisdicional competente é chamado a pronunciar‑se, em princípio continua a ser competente mesmo que o fator de conexão, nos termos do qual a sua competência foi estabelecida, mude no decurso do processo judicial (36).
75. Assim, o conhecimento das informações relativas à situação de um devedor e das condições de vida no local da sua residência não pode ser garantido pelo requisito de residência, na medida em que, de acordo com o princípio da perpetuatio fori, uma alteração do fator de conexão após a apresentação do pedido de exoneração de dívidas, a saber, a transferência da sua residência para um Estado‑Membro, não se opõe a que um tribunal dinamarquês decida sobre esse pedido.
76. Consequentemente, uma vez que a conexão com o território dinamarquês só é apreciada no momento da apresentação de um pedido de exoneração de dívidas, ao passo que um tribunal de insolvência deve ter em conta, na análise desse pedido, circunstâncias anteriores e posteriores a esse momento, o requisito de residência, conforme previsto na regulamentação dinamarquesa, vai além do que é necessário para garantir o objetivo deste requisito. Este é o raciocínio seguido pelo Tribunal de Justiça no Acórdão Radziejewski (37), segundo o qual a fixação de um requisito de residência que se refere exclusivamente à data de apresentação do pedido vai além do que é necessário para efeitos da verificação da situação do requerente e do conhecimento da situação no local onde reside.
77. Esta consideração não pode ser posta em causa pelos argumentos do Governo dinamarquês relativos à existência de regras de competência harmonizadas nem pelos do órgão jurisdicional de reenvio relativos à sua inexistência.
3) Harmonização das regras de competência relativas a processos de exoneração de dívidas
78. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, dada a inexistência de harmonização das regras em matéria de exoneração de dívidas, não existem meios menos restritivos para atingir esse resultado que não seja o de restringir o acesso ao processo de exoneração de dívidas aos devedores que habitam na Dinamarca.
79. Em contrapartida, o Governo dinamarquês salienta que existem regras harmonizadas em matéria de competência internacional nos processos de ajustamento da dívida. Segundo este governo, a interpretação do artigo 45.o TFUE segundo a qual esta disposição obsta a uma regra de competência como a regra dinamarquesa entrava a efetiva execução do Regulamento 2015/848. Em conformidade com o artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento 2015/848, nas circunstâncias do caso em apreço, os órgãos jurisdicionais suecos são competentes para conhecer da situação de um devedor que reside e vive na Suécia. Com efeito, a regra de competência dinamarquesa não é materialmente diferente da regra de competência internacional deste regulamento.
80. Estes argumentos não podem ser acolhidos.
81. Conforme referi no n.o 25 das presentes conclusões, o Regulamento 2015/848 não é aplicável ratione temporis ao litígio no processo principal. No entanto, há que ter em conta que as regras dinamarquesas que preveem o requisito de residência continuam a ser aplicáveis nesse Estado‑Membro, ao passo que outros Estados‑Membros aplicam as regras do Regulamento 2015/848 desde 26 de junho de 2017.
82. Nos termos do artigo 3.o, n.o 1, quarto parágrafo, do Regulamento 2015/848, o centro dos interesses principais de uma pessoa singular, que não exerça uma atividade comercial ou profissional independente, presume‑se, até prova em contrário, ser a residência habitual dessa pessoa. Ora, independentemente do facto de o conceito de «residência habitual» na aceção do artigo 3.o, n.o 1, quarto parágrafo, do Regulamento 2015/848 não ter que necessariamente corresponder ao conceito de «residência» na aceção da regulamentação dinamarquesa, esta disposição do Regulamento 2015/848 não remete, de forma automática, o devedor para os órgãos jurisdicionais do local da sua residência. Com efeito, trata‑se apenas de uma presunção que pode ser ilidida.
83. Assim, por um lado, a solução prevista pelo Regulamento 2015/848 constitui, segundo os termos utilizados pelo órgão jurisdicional de reenvio, uma ilustração de «um meio menos restritivo» que permite atingir o objetivo do requisito de residência, conforme definido por esse órgão jurisdicional e o Governo dinamarquês.
84. Por outro lado, uma regulamentação que prevê o requisito de residência, como a regulamentação dinamarquesa em causa, podia afetar o funcionamento do Regulamento 2015/848 nos Estados‑Membros vinculados por este se se constatasse, sendo caso disso, que a presunção prevista no artigo 3.o, n.o 1, quarto parágrafo, deste regulamento devia ser ilidida, por exemplo, em benefício do lugar de cumprimento da prestação de trabalho. Em semelhante caso, a regulamentação dinamarquesa não respeitaria a refutação da referida presunção (38).
85. Para resumir esta parte da minha análise relativa à harmonização das regras de competência, em primeiro lugar, não partilho o ponto de vista do órgão jurisdicional de reenvio segundo o qual não há meios menos restritivos para atingir o objetivo fixado pelo requisito de residência. Em segundo lugar, contrariamente ao que sustenta o Governo dinamarquês, a existência das regras de competência previstas pelo Regulamento 2015/848 não permite defender a conformidade da regulamentação dinamarquesa com o direito da União.
4) Conclusões finais
86. Para recapitular os raciocínios que expus até aqui, observo que o requisito de residência previsto pela regulamentação dinamarquesa parece não ser aplicado de forma coerente, o que pode constituir um indício quanto ao facto de que este requisito vai além do que é necessário para efeitos da fiscalização da situação do requerente e do conhecimento da situação no local onde reside. Esta consideração é confirmada pelo facto de o requisito de residência se referir exclusivamente à data da apresentação do pedido. Por último, estas considerações não são postas em causa pelos argumentos relativos ao Regulamento 2015/848.
87. À luz de todas as considerações que precedem, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à primeira questão prejudicial que o artigo 45.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional, como a que está em causa no processo principal, por força da qual um trabalhador por conta de outrem que não tenha a sua residência no território de um Estado‑Membro não pode apresentar um pedido de exoneração de dívidas nos tribunais desse Estado‑Membro, mesmo que tenha um vínculo suficiente com o referido Estado‑Membro, comparável ao que decorre do facto de residir nesse território.
D. Quanto à segunda questão
88. Com a sua segunda questão prejudicial que é submetida para a hipótese de a resposta à primeira questão ser afirmativa, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se um trabalhador por conta de outrem que não preenche o requisito de residência deve, no entanto, poder obter um ajustamento da dívida no caso de estarem preenchidos os outros requisitos materiais, o que obrigaria os credores privados a oporem‑se à redução ou à anulação da dívida de um seu devedor que tivesse mudado a residência para o estrangeiro.
89. Há que reconhecer que a leitura da segunda questão prejudicial deixa pairar uma certa incerteza quanto ao verdadeiro objeto da questão do órgão jurisdicional de reenvio. Resulta da redação desta questão que o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto ao efeito útil do artigo 45.o TFUE em circunstâncias como as do caso em apreço.
90. A este respeito, a Comissão defende que o litígio no processo principal não diz diretamente respeito às relações entre os particulares e que, por conseguinte, a questão de saber se o artigo 45.o TFUE tem efeito direto sobre essas relações não é pertinente. O Governo dinamarquês considera que, nas circunstâncias do caso em apreço, a aplicação do artigo 45.o TFUE levaria a uma situação de efeito horizontal acessório.
91. Observo que, no caso em apreço, são as disposições nacionais que são objeto de uma apreciação à luz do artigo 45.o TFUE e não os comportamentos de particulares pelos quais estes impõem obrigações aos outros particulares (39). Além disso, é evidente que disposições nacionais como as que estão em causa no presente processo são abrangidas pelo âmbito de aplicação do artigo 45.o TFUE. Quando essas disposições nacionais não estão em conformidade com o Tratado, a sua aplicação deve ser afastada, pouco importando que se trate de um litígio entre particulares ou entre um particular e uma emanação do Estado.
92. A título subsidiário, mesmo que se considere que a segunda questão devia ser analisada à luz das obrigações impostas aos credores de um devedor que beneficia de um processo de exoneração de dívidas, há que ter em conta o facto de o requisito de residência, como o que está em causa no processo principal, constituir um critério de conexão previsto por uma regra de competência. Como resulta das minhas considerações precedentes, as regras de competência não concedem, pelo menos diretamente, direitos substantivos nem impõem obrigações materiais a particulares. No caso em apreço, a regra de competência nacional permite apenas pedir a abertura de um processo de exoneração de dívidas num tribunal dinamarquês. Com efeito, é a decisão desse tribunal que confere direitos ou impõe obrigações a particulares.
93. Por último, não posso excluir que, com a sua segunda questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, em substância, saber quais as consequências que deve tirar do acórdão a proferir pelo Tribunal de Justiça no presente processo na hipótese de a resposta à primeira questão ser afirmativa.
94. É verdade que, no âmbito de um processo prejudicial, não cabe ao Tribunal de Justiça interpretar o direito interno de um Estado‑Membro, nem determinar como é que esse Estado‑Membro se deve conformar com a sua interpretação do direito da União. No entanto, a fim de dar uma resposta útil ao órgão jurisdicional de reenvio, apresentarei algumas observações sobre este aspeto.
95. A este respeito, observo que a não conformidade de um requisito de residência com o artigo 45.o TFUE não gera a nulidade absoluta desse requisito. Essa não conformidade é apenas a consequência do facto de, por força de uma regulamentação nacional, um devedor não poder, no caso concreto, obter a decisão de exoneração das suas dívidas, mesmo que tenha um vínculo suficiente com o território desse Estado‑Membro.
96. Neste caso e noutros semelhantes, um órgão jurisdicional nacional não é obrigado a afastar pura e simplesmente o requisito de residência e a proceder à aplicação da disposição nacional em causa, sem nenhuma exigência relativa à existência de um vínculo entre o devedor e o território dinamarquês.
97. Em contrapartida, esse órgão jurisdicional pode considerar uma solução mais equilibrada, que consiste em, sendo caso disso, flexibilizar o requisito de residência, de forma que os tribunais dinamarqueses possam conhecer dos pedidos de exoneração de dívidas quando haja um vínculo suficiente entre o devedor e o território dinamarquês. Com efeito, como referi no n.o 37 das presentes conclusões, nomeadamente no interesse de uma boa administração da justiça, a grande maioria das regras de competência assenta na ideia de que deve existir um vínculo entre o foro competente e a situação em causa. Assim, seria simplesmente necessário flexibilizar o requisito de residência previsto pela regulamentação dinamarquesa para dar mais espaço ao princípio da proximidade assim definido.
98. À luz desta argumentação, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à segunda questão prejudicial que o artigo 45.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que, em circunstâncias como as do processo principal, exclui a aplicação da regulamentação nacional em causa, independentemente da questão de saber se o processo de exoneração de dívidas pode eventualmente dar origem à imposição de obrigações a particulares.
99. Observo, a este respeito, que o facto de esses particulares terem que suportar a redução ou extinção dos créditos que detenham sobre um devedor que se estabeleceu no estrangeiro decorre de uma decisão do tribunal dinamarquês sobre o pedido de exoneração de dívidas.
VI. Conclusão
100. À luz de todas as considerações que precedem, proponho ao Tribunal de Justiça que dê a seguinte resposta às questões prejudiciais submetidas pelo Østre Landsret (Tribunal de Recurso da Região Este, Dinamarca):
1) O artigo 45.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional, como a que está em causa no processo principal, por força da qual um trabalhador por conta de outrem que não tenha a sua residência no território de um Estado‑Membro não pode apresentar um pedido de exoneração de dívidas perante os tribunais desse Estado‑Membro, mesmo que tenha um vínculo suficiente com o referido Estado‑Membro, comparável ao que decorre do facto de residir nesse território.
2) O artigo 45.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que, em circunstâncias como as do processo principal, exclui a aplicação da regulamentação nacional em causa, independentemente da questão de saber se o processo de exoneração de dívidas pode eventualmente dar origem à imposição de obrigações a particulares.