Processo C‑624/19
K e o.
contra
Tesco Stores Ltd
(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Watford Employment Tribunal)
Acórdão do Tribunal de Justiça (Segunda Secção) de 3 de junho de 2021
«Reenvio prejudicial — Política social — Igualdade de remuneração entre trabalhadores masculinos e femininos — Artigo 157.° TFUE — Efeito direto — Conceito de trabalho de valor igual — Pedidos destinados a beneficiar de igualdade de remuneração por um trabalho de valor igual — Fonte única — Trabalhadores de sexo diferente com a mesma entidade patronal — Estabelecimentos diferentes — Comparação»
1. Questões prejudiciais — Competência do Tribunal de Justiça — Questão submetida por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro que se retirou da União Europeia — Acordo de Saída do Reino Unido — Artigo 86.° — Competência do Tribunal de Justiça para decidir a título prejudicial sobre os pedidos dos órgãos jurisdicionais do Reino Unido apresentados antes do termo do período de transição
(Acordo sobre a Saída do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica, artigo 86.°)
(cf. n.° 17)
2. Política social — Trabalhadores masculinos e femininos — Igualdade de remuneração — Artigo 157.° TFUE — Litígios entre particulares — Invocação da inobservância do princípio da igualdade de remuneração entre trabalhadores masculinos e femininos por um trabalho de valor igual — Efeito direto — Requisitos — Trabalho de valor igual executado por trabalhadores de sexo diferente com a mesma entidade patronal — Trabalho executado em estabelecimentos diferentes — Falta de incidência
(Artigo 157.° TFUE)
(cf. n.os 20, 22‑24, 26, 29, 30, 36, 37, 39 e disp.)
Resumo
O princípio da igualdade de remuneração entre trabalhadores masculinos e femininos, consagrado pelo direito da União, é diretamente invocável, tanto para um «trabalho igual» como para um «trabalho […] de valor igual», nos litígios entre particulares.
A Tesco Stores é um retalhista que vende os seus produtos em linha e em lojas situadas no Reino Unido. Estas lojas, de dimensão variável, empregam cerca de 250 000 trabalhadores no total, que executam diferentes tipos de trabalho. Esta sociedade dispõe igualmente de uma rede de distribuição com cerca de 11 000 trabalhadores, que executam diversos tipos de trabalho. Cerca de 6 000 trabalhadores ou antigos trabalhadores da Tesco Stores, tanto do sexo feminino como masculino, que trabalham ou trabalhavam nas lojas desta sociedade, demandaram a referida sociedade no órgão jurisdicional de reenvio, o Watford Employment Tribunal (Tribunal do Trabalho de Watford, Reino Unido), a partir de fevereiro de 2018, com o fundamento de que não tinham beneficiado de igualdade de remuneração por trabalho igual, em violação da regulamentação nacional e do artigo 157.° TFUE (1). Este órgão jurisdicional suspendeu a instância relativamente aos pedidos dos trabalhadores masculinos, considerando que o seu resultado dependia do resultado dos pedidos das demandantes no processo principal, do sexo feminino.
Ora, estas últimas alegam que o seu trabalho e o dos trabalhadores masculinos empregados pela Tesco Stores nos centros de distribuição da sua rede são de valor igual e que têm o direito de comparar o seu trabalho com o desses trabalhadores, ainda que o referido trabalho seja executado em estabelecimentos diferentes, nos termos do artigo 157.° TFUE. Em conformidade com este artigo, as suas condições de trabalho e as dos referidos trabalhadores são imputáveis a uma «fonte única», a saber, a Tesco Stores. A referida sociedade considera, por sua vez, que o artigo 157.° TFUE não tem efeito direto no âmbito dos pedidos baseados num trabalho de valor igual, pelo que as demandantes no processo principal não podem invocá‑lo perante o órgão jurisdicional de reenvio. Além disso, contesta que possa ser qualificada de «fonte única».
No que diz respeito ao artigo 157.° TFUE, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que, nos órgãos jurisdicionais do Reino Unido, existe incerteza quanto ao efeito direto deste artigo, que está associada, em particular, à distinção que tinha sido estabelecida pelo Tribunal de Justiça entre as discriminações suscetíveis de serem verificadas recorrendo apenas aos critérios de identidade de trabalho e igualdade de remuneração e as que só podem ser identificadas com base em disposições de aplicação mais explícitas (2). Ora, os pedidos em causa no processo principal podem estar abrangidos por esta segunda categoria, desprovida de efeito direto.
Foi neste contexto que o órgão jurisdicional de reenvio recorreu ao Tribunal de Justiça. No seu acórdão, o Tribunal de Justiça declara que o artigo 157.° TFUE tem efeito direto nos litígios entre particulares em que é invocada a inobservância do princípio da igualdade de remuneração entre trabalhadores masculinos e femininos por um «trabalho […] de valor igual», conforme previsto neste artigo.
Apreciação do Tribunal de Justiça
A título preliminar, o Tribunal de Justiça declara a sua competência, em aplicação do artigo 86.° do Acordo de Saída (3), para responder ao pedido de decisão prejudicial, apesar da saída do Reino Unido da União Europeia.
Quanto ao mérito, o Tribunal de Justiça salienta, antes de mais, no que se refere à redação do artigo 157.° TFUE, que este artigo impõe, de forma clara e precisa, uma obrigação de resultado e tem caráter imperativo tanto no que se refere a um «trabalho igual» como a um «trabalho […] de valor igual». Em seguida, recorda que, segundo jurisprudência constante, o artigo 157.° TFUE tem efeito direto ao criar, na esfera jurídica dos particulares, direitos que os órgãos jurisdicionais nacionais devem salvaguardar, designadamente em caso de discriminações que tenham a sua fonte direta em disposições legislativas ou convenções coletivas de trabalho, bem como no caso de o trabalho ser prestado num mesmo estabelecimento ou serviço, privado ou público. O Tribunal de Justiça recorda que precisou que essas discriminações figuravam entre as suscetíveis de ser verificadas recorrendo apenas aos critérios de identidade de trabalho e de igualdade de remuneração fornecidos pelo artigo 119.° do Tratado CEE e que, nessa situação, o juiz se encontrava habilitado para determinar todos os elementos de facto que lhe permitam apreciar se um trabalhador do sexo feminino recebia uma remuneração inferior à de um trabalhador do sexo masculino que desempenhava um trabalho igual ou de valor igual (4). Assim, resulta de jurisprudência constante que, contrariamente ao que alega a Tesco Stores, o efeito direto do artigo 157.° TFUE não se limita às situações em que os trabalhadores de sexo diferente comparados executam um «trabalho igual», mas estende‑se também às situações de «trabalho […] de valor igual». Neste contexto, o Tribunal de Justiça precisa que a questão de saber se os trabalhadores em causa executam o «trabalho igual» ou um «trabalho […] de valor igual» faz parte de uma apreciação factual do juiz.
Além disso, o Tribunal de Justiça considera que o objetivo prosseguido pelo artigo 157.° TFUE, a saber, a eliminação, para um trabalho igual ou um trabalho de valor igual, de qualquer discriminação em razão do sexo em todos os elementos e condições de remuneração, corrobora essa interpretação. A este respeito, o Tribunal de Justiça salienta que o princípio da igualdade de remuneração entre trabalhadores masculinos e femininos por um trabalho igual ou de valor igual, previsto no artigo 157.° TFUE, faz parte dos fundamentos da União.
Por último, o Tribunal de Justiça sublinha que, quando as diferenças verificadas nas condições de remuneração de trabalhadores que efetuam um trabalho igual ou um trabalho de valor igual não podem ser atribuídas a uma fonte única, falta uma entidade que possa restabelecer a igualdade de tratamento, pelo que essa situação não é abrangida pelo artigo 157.° TFUE. Em contrapartida, quando essas condições de remuneração podem ser atribuídas a uma fonte única, o trabalho e a remuneração desses trabalhadores podem ser comparados, mesmo que estes últimos trabalhem em estabelecimentos diferentes. Consequentemente, esta disposição pode ser invocada perante os órgãos jurisdicionais nacionais num litígio baseado num trabalho de valor igual efetuado por trabalhadores de sexo diferente que tenham a mesma entidade patronal, em estabelecimentos diferentes dessa entidade patronal, uma vez que esta constitui uma fonte única.