Language of document : ECLI:EU:C:2022:348

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

5 de maio de 2022 (*)

«Reenvio prejudicial — Imposto sobre o valor acrescentado (IVA) — Diretiva 2006/112/CE — Ocultação fraudulenta do imposto devido — Sanções — Legislação nacional que prevê uma sanção administrativa e uma sanção penal pelos mesmos factos — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 49.o — Artigo 50.o — Princípio ne bis in idem — Artigo 52.o, n.o 1 — Restrições ao princípio ne bis in idem — Exigência de prever regras claras e precisas — Possibilidade de ter em conta a interpretação da legislação nacional pelos órgãos jurisdicionais nacionais — Necessidade de prever regras que assegurem a proporcionalidade do conjunto das sanções aplicadas — Sanções de naturezas diferentes»

No processo C‑570/20,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pela Cour de cassation (Tribunal de Cassação, França), por Decisão de 21 de outubro de 2020, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 28 de outubro de 2020, no processo penal contra

BV,

sendo interveniente:

Direction départementale des finances publiques de la HauteSavoie,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Arabadjiev, presidente de secção, I. Ziemele, T. von Danwitz (relator), P. G. Xuereb e A. Kumin, juízes,

advogado‑geral: M. Campos Sánchez‑Bordona,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

—        em representação de BV, por L. Goldman, avocat,

—        em representação do Governo francês, por E. de Moustier e A. Daniel, na qualidade de agentes,

—        em representação da Comissão Europeia, por A. Armenia e C. Ehrbar, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 9 de dezembro de 2021,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 50.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo penal instaurado contra BV por infrações fiscais, nomeadamente em matéria de imposto sobre o valor acrescentado (IVA).

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        O artigo 2.o, n.o 1, da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (JO 2006, L 347, p. 1), determina as operações sujeitas ao IVA.

4        Nos termos do artigo 273.o, primeiro parágrafo, desta diretiva:

«Os Estados‑Membros podem prever outras obrigações que considerem necessárias para garantir a cobrança exata do IVA e para evitar a fraude, sob reserva da observância da igualdade de tratamento das operações internas e das operações efetuadas entre Estados‑Membros por sujeitos passivos, e na condição de essas obrigações não darem origem, nas trocas comerciais entre Estados‑Membros, a formalidades relacionadas com a passagem de uma fronteira.»

 Direito francês

5        O artigo 1729.o do code général des impôts (Código Geral Tributário), na sua versão aplicável à data dos factos no processo principal (a seguir «CGT»), dispõe:

«As inexatidões ou as omissões encontradas numa declaração ou num ato que digam respeito a elementos relevantes para a base tributável ou para a liquidação do imposto, bem como o reembolso de um crédito fiscal cujo pagamento tenha sido indevidamente obtido do Estado, dão lugar à aplicação de uma majoração de:

a.      40% em caso de infração intencional;

[…]»

6        O artigo 1741.o do CGT, na versão aplicável à data dos factos no processo principal, resultante da loi no 2010‑1658 (Lei n.o 2010‑1658), de 29 de dezembro de 2010, previa:

«Sem prejuízo das disposições específicas contidas no presente Código, quem, de modo fraudulento, se furte ou tente eludir a determinação ou o pagamento da totalidade ou de parte dos impostos por ele abrangidos, não apresentando voluntariamente a sua declaração de impostos nos prazos previstos, ou dissimulando deliberadamente parte dos montantes sujeitos a imposto, ou organizando a sua insolvência ou dificultando de qualquer outra forma a cobrança do imposto, ou agindo de qualquer outra forma fraudulenta, será passível, independentemente das sanções fiscais aplicáveis, de uma multa de 37 500 euros e de uma pena de prisão de cinco anos. Quando os atos tenham sido realizados ou facilitados através de compras ou vendas sem fatura ou com faturas que não se referem a transações reais, ou se tenham destinado a obter reembolsos injustificados por parte do Estado, o infrator é punido com uma multa de 75 000 euros e uma pena de prisão de cinco anos.

Todavia, esta disposição só é aplicável, em caso de dissimulação, se esta exceder um décimo do valor tributável ou o montante de 153 euros.

Qualquer pessoa condenada ao abrigo das disposições deste artigo pode ser privada dos direitos cívicos, civis e familiares, em conformidade com o artigo 131.o‑26 do Código Penal.

O tribunal pode igualmente ordenar a exibição da decisão proferida e a sua difusão nas condições previstas nos artigos 131.o‑35 ou 131.o‑39 do Código Penal. […]»

7        O artigo L. 228.o do livre des procédures fiscales (Código de Processo Tributário), na sua versão aplicável à data dos factos no processo principal, enunciava:

«Sob pena de inadmissibilidade, as queixas destinadas à aplicação de sanções penais em matéria de impostos diretos, do imposto sobre o valor acrescentado e de outros impostos sobre o volume de negócios, de direitos de registo, do imposto predial e do imposto de selo são apresentadas pela Administração após a obtenção do parecer favorável da Comissão de Infrações Fiscais.»

8        Segundo jurisprudência constante da Cour de cassation (Tribunal de Cassação, França), resulta das disposições conjugadas do artigo 1741.o do CGT e dos artigos L. 228.o e seguintes do Código de Processo Tributário que, sob pena de inadmissibilidade, os processos penais por fraude fiscal só podem ser instaurados pelo Ministério Público mediante queixa prévia da Administração Tributária.

9        Através das Decisões n.o 2016‑545 QPC, de 24 de junho de 2016, n.o 2016‑546 QPC, de 24 de junho de 2016, n.o 2016‑556 QPC, de 22 de julho de 2016 e n.o 2018‑745 QPC, de 23 de novembro de 2018, o Conseil constitutionnel (Tribunal Constitucional, França) declarou que o cúmulo dos procedimentos e das sanções penais e fiscais em caso de ocultação de quantias sujeitas ao imposto e em caso de omissão de declaração, como resulta das disposições dos artigos 1729.o e 1741.o do CGT, está em conformidade com os princípios da necessidade e da proporcionalidade dos delitos e das penas. O Conseil constitutionnel (Tribunal Constitucional) enunciou, com efeito, que essas disposições «permitem assegurar em conjunto a proteção dos interesses financeiros do Estado e a igualdade perante o imposto, prosseguindo objetivos comuns, simultaneamente dissuasivos e repressivos», que «[a] cobrança da necessária contribuição pública e o objetivo de luta contra a fraude fiscal justificam a instauração de procedimentos complementares nos casos de fraudes mais graves», e que «[a]os controlos no termo dos quais a Administração Tributária aplica sanções pecuniárias podem, assim, acrescentar‑se processos penais em condições e segundo procedimentos regulados por lei».

10      No entanto, o Conseil constitutionnel (Tribunal Constitucional), à luz do princípio da proporcionalidade, formulou três reservas interpretativas que têm por efeito limitar a possibilidade de proceder a esse cúmulo, a saber:

—        em primeiro lugar, um contribuinte desonerado do pagamento do imposto por decisão judicial transitada em julgado por razões de substância não pode ser condenado penalmente por fraude fiscal;

—        em segundo lugar, o artigo 1741.o do CGT só se aplica aos casos mais graves de ocultação fraudulenta de quantias sujeitas a imposto, ou de omissões declarativas, podendo essa gravidade resultar do montante dos impostos não pagos, da natureza do comportamento do arguido ou das circunstâncias em que se verificou, e

—        em terceiro lugar, embora a eventualidade de serem intentados dois processos possa conduzir a um cúmulo de sanções, o princípio da proporcionalidade implica que, em qualquer caso, o montante global das sanções eventualmente impostas não ultrapasse o montante mais elevado de uma das sanções aplicadas.

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

11      BV exerceu a profissão de revisor oficial de contas, como empresário em nome individual, até 14 de junho de 2011. Nessa qualidade, estava sujeito de pleno direito ao IVA e estava abrangido, tendo em conta o seu volume de negócios, pelo regime normal de tributação, com apresentação de declarações mensais.

12      A Administração Tributária procedeu a operações de auditoria relativas aos anos de 2009, 2010 e 2011.

13      Em 10 de março de 2014, a Administração Tributária apresentou queixa ao procureur de la République d’Annecy (Ministério Público de Annecy, França) contra BV, acusando‑o de ter apresentado uma contabilidade irregular, de ter apresentado declarações de IVA omitindo a maior parte dos rendimentos, de ter apresentado declarações com montantes de lucros não comerciais sonegados e de ter apresentado declarações com montantes reduzidos da totalidade dos rendimentos indicando um lucro não comercial inferior ao efetivamente recebido. Segundo a referida queixa, o montante sonegado de IVA ascendia a 82 507 euros e o montante sonegado do imposto sobre o rendimento a 108 883 euros.

14      No termo de um inquérito preliminar conduzido pelo Ministério Público, BV foi chamado a comparecer no tribunal correctionnel d’Annecy (Tribunal Correcional de Annecy, França) para ser julgado pelos crimes de fraude fiscal por ocultação de valores tributáveis e omissão de registo em documento contabilístico.

15      Por Sentença de 23 de junho de 2017, o tribunal correctionnel d’Annecy (Tribunal Correcional de Annecy) considerou BV culpado dos factos de que era acusado, condenando‑o a 12 meses de prisão e ordenando a publicação da decisão a expensas suas.

16      BV interpôs recurso dessa sentença na cour d’appel de Chambéry (Tribunal de Recurso de Chambéry, França). Em apoio do seu recurso, alegou que a sua condenação penal violava o princípio ne bis in idem garantido pelo artigo 50.o da Carta, uma vez que, pelos mesmos factos, já tinha sido objeto de um procedimento de liquidação adicional que deu origem à aplicação de sanções fiscais definitivas, que ascendiam a 40% do imposto sonegado.

17      Por Acórdão de 13 de fevereiro de 2019, a cour d’appel de Chambéry (Tribunal de Recurso de Chambéry) negou provimento ao recurso. Este órgão jurisdicional considerou que o cúmulo de sanções penais e de sanções fiscais de que BV foi objeto não era contrário ao artigo 50.o da Carta, na medida em que a aplicação da regulamentação nacional em causa no processo principal respeitava aos exigências na matéria resultantes da jurisprudência do Conseil constitutionnel (Tribunal Constitucional).

18      BV interpôs recurso do Acórdão da cour d’appel de Chambéry (Tribunal de Recurso de Chambéry) na Cour de cassation (Tribunal de Cassação), o órgão jurisdicional de reenvio no presente processo, alegando que a regulamentação nacional em causa no processo principal não cumpre a exigência de clareza e de previsibilidade que um cúmulo de procedimentos e de sanções de natureza penal deve respeitar em conformidade com a jurisprudência decorrente do Acórdão de 20 de março de 2018, Menci (C‑524/15, EU:C:2018:197, n.os 49 a 51). Além disso, sustentou que, contrariamente à jurisprudência resultante nomeadamente do Acórdão de 20 de março de 2018, Garlsson Real Estate e o. (C‑537/16, EU:C:2018:193, n.os 56 e 60), a referida regulamentação nacional não prevê regras que permitam assegurar que a severidade do conjunto das sanções aplicadas não excede a gravidade da infração constatada.

19      A título preliminar, o órgão jurisdicional de reenvio considera que, na medida em que a regulamentação nacional em causa no processo principal visa, nomeadamente, lutar contra as infrações em matéria de IVA a fim de garantir a cobrança da totalidade do IVA devido, constitui uma aplicação do direito da União, na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta, pelo que deve respeitar o princípio ne bis in idem garantido pelo artigo 50.o da mesma.

20      No que respeita à exigência de clareza e previsibilidade, esse órgão jurisdicional salienta que os artigos 1729.o e 1741.o do CGT definem com precisão os atos e os incumprimentos suscetíveis de serem objeto de procedimentos e de sanções penais e fiscais e que a sua aplicação foi objeto das três reservas interpretativas pelo Conseil constitutionnel (Tribunal Constitucional) recordadas no n.o 10 do presente acórdão.

21      No que respeita, mais especificamente, à segunda reserva de interpretação, o referido órgão jurisdicional sublinha que especificou as modalidades de aplicação. Assim, quando a pessoa acusada de fraude fiscal demonstre ter sido objeto, a título pessoal, de uma sanção fiscal pelos mesmos factos, cabe ao juiz penal pronunciar‑se, antes de mais, sobre a caracterização da infração à luz dos elementos constitutivos previstos no artigo 1741.o do CGT. Em seguida, incumbe‑lhe verificar oficiosamente, se for caso disso, se os factos considerados apresentam um grau de gravidade suscetível de justificar a repressão penal em complemento da repressão fiscal, à luz dos critérios fixados pelo Conseil constitutionnel (Tribunal Constitucional) relativos ao montante dos impostos não pagos, à natureza do comportamento às circunstâncias em que se verificou. Por último, a decisão sobre a gravidade deve ser fundamentada e deve ser tomada antes da escolha e da fundamentação das penas a serem aplicadas.

22      Quanto à questão de saber se a severidade do conjunto das sanções aplicadas é limitada ao estritamente necessário, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que, em aplicação da segunda reserva de interpretação emitida pelo Conseil constitutionnel (Tribunal Constitucional), a legislação francesa limita os procedimentos penais às infrações que apresentem uma determinada gravidade, para as quais o legislador nacional previu, além de uma pena de multa, uma pena privativa de liberdade.

23      Além disso, em aplicação da terceira reserva de interpretação, a faculdade de cumular sanções é limitada pela impossibilidade de ultrapassar o montante mais elevado de uma das sanções já aplicadas. Todavia, o órgão jurisdicional de reenvio especifica que, segundo a sua própria jurisprudência, esta terceira reserva de interpretação refere‑se apenas às sanções da mesma natureza, a saber, as sanções pecuniárias, na medida em que pressupõe que o juiz possa proceder à comparação das sanções penais e fiscais máximas aplicadas para determinar o montante mais elevado que constitui o limite máximo. Assim, esta reserva de interpretação não se aplica na hipótese de um cúmulo de sanções pecuniárias fiscais e de uma pena privativa de liberdade.

24      Nestas circunstâncias, a Cour de cassation (Tribunal de Cassação) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      A exigência de clareza e de previsibilidade das circunstâncias em que as ocultações declarativas em matéria de IVA devido podem ser objeto de um cúmulo de procedimentos e de sanções de natureza penal é respeitada por regras nacionais como as anteriormente descritas?

2)      A exigência de necessidade e de proporcionalidade do cúmulo dessas sanções é respeitada por regras nacionais como as anteriormente descritas?»

 Quanto às questões prejudiciais

25      Com as suas duas questões prejudiciais, que há que examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se o direito fundamental garantido pelo artigo 50.o da Carta, em conjugação com o artigo 52.o, n.o 1, da mesma, deve ser interpretado no sentido de que se opõe

—        a que a limitação aos casos mais graves do cúmulo de procedimentos e de sanções de natureza penal, em caso de ocultações fraudulentas ou de omissões declarativas em matéria de IVA, previsto numa regulamentação nacional, resulte apenas de uma jurisprudência assente que interprete, de forma restritiva, as disposições legais que definem as condições de aplicação desse cúmulo, e/ou

—        a uma regulamentação nacional que não assegura, nos casos de cúmulo de uma sanção pecuniária e de uma pena privativa de liberdade, através de regras claras e precisas, tal como interpretadas pelos órgãos jurisdicionais nacionais, que o conjunto das sanções aplicadas não excede a gravidade da infração constatada.

26      A título preliminar, importa recordar que, segundo jurisprudência constante, as sanções administrativas aplicadas pelas autoridades tributárias nacionais e os processos penais instaurados por infrações em matéria de IVA constituem uma aplicação dos artigos 2.o e 273.o da Diretiva 2006/112 e do artigo 325.o TFUE e, portanto, do direito da União, na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta, e devem, por conseguinte, respeitar o direito fundamental garantido pelo artigo 50.o desta última (Acórdão de 20 de março de 2018, Menci, C‑524/15, EU:C:2018:197, n.o 21 e jurisprudência referida).

27      Nos termos desta disposição, ninguém pode ser julgado ou punido penalmente por um delito do qual já tenha sido absolvido ou pelo qual já tenha sido condenado na União por sentença transitada em julgado, nos termos da lei.

28      No caso em apreço, no âmbito do processo penal em causa no processo principal, BV é acusado de atos de ocultações fraudulentas e de omissões declarativas em matéria de IVA, quando, segundo as indicações que figuram no pedido de decisão prejudicial, já lhe foi aplicada, pelos mesmos factos, uma sanção administrativa definitiva de natureza penal na aceção do artigo 50.o da Carta. Ora, esse cúmulo de procedimentos constitui uma restrição do direito fundamental consagrado nesta disposição da Carta, que proíbe a aplicação, por factos idênticos, de várias sanções de natureza penal no termo de diferentes processos instaurados para esses fins (v., por analogia, Acórdão de 20 de março de 2018, Menci, C‑524/15, EU:C:2018:197, n.o 35).

29      No entanto, segundo jurisprudência constante, uma restrição do direito fundamental garantido pelo artigo 50.o da Carta pode ser justificada com base no artigo 52.o, n.o 1, da mesma (Acórdãos de 20 de março de 2018, Menci, C‑524/15, EU:C:2018:197, n.o 40 e jurisprudência referida, e de 22 de março de 2022, Nordzucker e o., C‑151/20, EU:C:2022:203, n.o 49).

30      Em conformidade com o artigo 52.o, n.o 1, primeiro período, da Carta, qualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades reconhecidos por esta deve ser prevista por lei e respeitar o conteúdo essencial desses direitos e liberdades. De acordo com o segundo período do mesmo número, na observância do princípio da proporcionalidade, essas restrições aos referidos direitos e liberdades só podem ser introduzidas se forem necessárias e corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União, ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros.

31      No caso em apreço, em primeiro lugar, é facto assente que a possibilidade de cumular procedimentos e sanções penais, bem como procedimentos e sanções administrativas de natureza penal, está prevista na lei, a saber, nos artigos 1729.o e 1741.o do CGT. Embora a exigência, segundo a qual qualquer restrição ao exercício dos direitos fundamentais deve ser prevista por lei, implique que a própria base jurídica que permite a ingerência nesses direitos deva definir o alcance da restrição ao exercício do direito em causa, esta exigência confunde‑se amplamente com as exigências de clareza e de precisão que decorrem do princípio da proporcionalidade (v., neste sentido, Acórdão de 16 de julho de 2020, Facebook Ireland e Schrems, C‑311/18, EU:C:2020:559, n.o 180), que será examinado nos n.os 34 e seguintes do presente acórdão.

32      Em segundo lugar, uma regulamentação nacional, como a que está em causa no processo principal, respeita o conteúdo essencial do direito fundamental garantido pelo artigo 50.o da Carta, uma vez que, segundo as indicações que constam dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça, apenas permite esse cúmulo de procedimentos e de sanções em condições limitativamente fixadas, assegurando assim que o direito garantido por este artigo 50.o não é posto em causa enquanto tal.

33      Em terceiro lugar, resulta dos autos à disposição do Tribunal de Justiça que esta regulamentação visa garantir a cobrança da totalidade do IVA devido. Tendo em conta a importância que a jurisprudência do Tribunal de Justiça atribui, para efeitos da realização deste objetivo, à luta contra as infrações em matéria de IVA, a limitação do princípio ne bis in idem que resulta de uma regulamentação nacional como a que está em causa no processo principal responde a um objetivo de interesse geral.

34      No que respeita, em quarto lugar, ao princípio da proporcionalidade, este exige que o cúmulo de procedimentos e de sanções previsto por uma regulamentação nacional como a que está em causa no processo principal não exceda os limites do que é adequado e necessário para a realização dos objetivos legítimos prosseguidos por essa regulamentação, entendendo‑se que, quando haja uma escolha entre várias medidas adequadas, se deve recorrer à menos restritiva e que os inconvenientes causados por esta não devem ser desproporcionados relativamente aos objetivos prosseguidos (Acórdão de 20 de março de 2018, Menci, C‑524/15, EU:C:2018:197, n.o 46 e jurisprudência referida).

35      Uma regulamentação nacional que prevê a possibilidade desse cúmulo de procedimentos e de sanções é adequada à realização do objetivo legítimo de lutar contra as infrações em matéria de IVA a fim de garantir a cobrança da totalidade do IVA devido (Acórdão de 20 de março de 2018, Menci, C‑524/15, EU:C:2018:197, n.o 48).

36      No que respeita ao caráter estritamente necessário dessa regulamentação nacional, o Tribunal de Justiça especificou, nos n.os 49, 53 e 55 do Acórdão de 20 de março de 2018, Menci (C‑524/15, EU:C:2018:197), que a mesma deve prever regras claras e precisas que, antes de mais, permitem ao litigante prever quais os atos e omissões suscetíveis de serem objeto desse cúmulo de procedimentos e de sanções, em seguida, asseguram uma coordenação dos procedimentos para reduzir ao estritamente necessário o encargo complementar que implica um cúmulo de processos de natureza penal que são conduzidos de forma independente e, por último, permitam garantir que a severidade do conjunto das sanções aplicadas corresponde à gravidade da infração em causa.

37      O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, em primeiro lugar, sobre a primeira das exigências recordadas no número anterior, a qual, no que respeita ao direito fundamental garantido pelo artigo 50.o da Carta, reflete igualmente o princípio da legalidade dos delitos e das penas consagrado no artigo 49.o, n.o 1, da Carta. Com efeito, como salientou o advogado‑geral nos n.os 56 a 58 das suas conclusões, este último princípio é aplicável ao cúmulo de uma sanção administrativa definitiva de natureza penal, na aceção do artigo 50.o da Carta, e de procedimentos penais, na medida em que esse cúmulo é suscetível de conduzir a uma consequência mais grave, para a pessoa em causa, do que a que resulta apenas dos procedimentos penais. Em especial, o ónus punitivo que resulta do cúmulo das sanções de natureza penal é suscetível de ir além do previsto na lei para um comportamento ilícito, razão pela qual é necessário que qualquer disposição que autoriza uma dupla punição respeite as exigências ligadas ao princípio da legalidade dos delitos e das penas, conforme garantido pelo artigo 49.o, n.o 1, da Carta.

38      Ora, no que respeita ao princípio da legalidade dos delitos e das penas, o Tribunal de Justiça declarou que, embora este princípio exija que a lei defina claramente as infrações e as penas que as reprimem, esta condição está preenchida quando o litigante pode saber, a partir da redação da disposição pertinente e, se necessário, recorrendo à interpretação que lhes é dada pelos tribunais, quais os atos e omissões pelos quais responde penalmente (Acórdãos de 22 de outubro de 2015, AC‑Treuhand/Comissão, C‑194/14 P, EU:C:2015:717, n.o 40 e jurisprudência referida, e de 11 de junho de 2020, Prokuratura Rejonowa w Słupsku, C‑634/18, EU:C:2020:455, n.o 49).

39      Assim, a circunstância de as condições exigidas para um cúmulo de procedimentos e de sanções de natureza penal não resultarem exclusivamente de disposições legislativas mas igualmente da sua interpretação pelos órgãos jurisdicionais nacionais não é, em si, suscetível de pôr em causa o caráter claro e preciso da regulamentação nacional, desde que o litigante possa saber, a partir da redação das disposições pertinentes e, se necessário, recorrendo à interpretação que delas é feita por esses órgãos jurisdicionais, quais os atos e omissões que podem dar origem a esse cúmulo de procedimentos e de sanções.

40      No que diz respeito ao recurso, pelo legislador nacional, a conceitos gerais para determinar os comportamentos suscetíveis de dar origem a um cúmulo de procedimentos e de sanções de natureza penal, há que recordar que, nos n.os 52 e 53 do Acórdão de 20 de março de 2018, Garlsson Real Estate e o. (C‑537/16, EU:C:2018:193), o Tribunal de Justiça considerou que a regulamentação nacional em causa no processo que deu origem a esse acórdão era suficientemente clara e precisa, embora essa regulamentação nacional faça depender esse cúmulo da questão de saber se os comportamentos em causa eram suscetíveis de provocar «uma alteração significativa» do valor dos instrumentos financeiros e, por conseguinte, da interpretação de um conceito geral que requer uma apreciação significativa por parte dos órgãos jurisdicionais nacionais.

41      Com efeito, resulta da jurisprudência relativa ao princípio da legalidade dos delitos e das penas que este princípio não pode ser interpretado no sentido de que proscreve a clarificação gradual das regras da responsabilidade penal através da interpretação judiciária casuística, desde que o resultado seja razoavelmente previsível no momento em que a infração foi cometida, tendo em conta, nomeadamente, a interpretação então acolhida na jurisprudência relativa à disposição legal em causa (Acórdãos de 22 de outubro de 2015, AC‑Treuhand/Comissão, C‑194/14 P, EU:C:2015:717, n.o 41 e jurisprudência referida, e de 11 de junho de 2020, Prokuratura Rejonowa w Słupsku, C‑634/18, EU:C:2020:455, n.o 50).

42      Assim, e sob reserva das mesmas condições, a circunstância de a jurisprudência nacional se referir, no âmbito da sua interpretação das disposições legislativas pertinentes, a conceitos gerais que devem gradualmente ser clarificados, não obsta, em princípio, a que se possa considerar que a regulamentação nacional prevê regras claras e precisas que permitem ao litigante prever que atos e omissões são suscetíveis de serem objeto de um cúmulo de procedimentos e de sanções de natureza penal.

43      Neste contexto, há que recordar uma vez mais que o alcance da previsibilidade assim exigida depende em larga medida do conteúdo do texto em questão, do domínio que abrange, bem como do número e da qualidade dos seus destinatários. A previsibilidade da lei não se opõe a que a pessoa em causa recorra a aconselhamento especializado a fim de avaliar, com um grau razoável nas circunstâncias do processo em causa, as consequências que podem resultar de determinado ato. É, em especial, o que acontece com os profissionais habituados a ter de demonstrar grande prudência no exercício da sua profissão. Por conseguinte, pode esperar‑se que avaliem com particular cuidado os riscos que o mesmo comporta (v., neste sentido, Acórdãos de 28 de junho de 2005, Dansk Rørindustri e o./Comissão, C‑189/02 P, C‑202/02 P, C‑205/02 P a C‑208/02 P e C‑213/02 P, EU:C:2005:408, n.o 219 e jurisprudência referida; de 22 de outubro de 2015, AC‑Treuhand/Comissão, C‑194/14 P, EU:C:2015:717, n.o 42, e de 28 de março de 2017, Rosneft, C‑72/15, EU:C:2017:236, n.o 166).

44      No caso em apreço, embora incumba ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se a regulamentação nacional em causa no processo principal respeita as exigências de clareza e de precisão recordadas no n.o 36 do presente acórdão, cabe ao Tribunal de Justiça fornecer indicações úteis a este respeito para lhe permitir dirimir o litígio que lhe foi submetido [v., por analogia, Acórdão de 22 de junho de 2021, Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Efeitos de uma decisão de afastamento), C‑719/19, EU:C:2021:506, n.o 82 e jurisprudência referida].

45      Ora, antes de mais, resulta das indicações que figuram no pedido de decisão prejudicial que o artigo 1729.o do CGT prevê as condições em que ocultações fraudulentas ou omissões declarativas em matéria, nomeadamente, de IVA podem dar lugar à aplicação de uma sanção administrativa pecuniária de natureza penal. Em conformidade com o artigo 1741.o do CGT e nas condições visadas por esta disposição, tais comportamentos podem, «independentemente das sanções fiscais aplicáveis», ser igualmente objeto de uma multa e de uma pena privativa de liberdade.

46      Em seguida, o Conseil constitutionnel (Tribunal Constitucional) declarou que o cúmulo de procedimentos e de sanções previstos nesses artigos apenas se pode aplicar aos casos mais graves de ocultação fraudulenta de quantias sujeitas a imposto ou de omissões declarativas, precisando que essa gravidade pode resultar do montante dos impostos não pagos, da natureza do comportamento do arguido ou das circunstâncias em que se verificou. Ora, sem prejuízo da apreciação do órgão jurisdicional de reenvio, tal interpretação feita por esse órgão jurisdicional à luz do princípio da proporcionalidade não se afigura, em si mesma, imprevisível.

47      Por último, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que já aplicou, por diversas vezes, a jurisprudência do Conseil constitutionnel (Tribunal Constitucional) referida no número anterior, tendo, assim, clarificado melhor o seu alcance. Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se, tendo em conta estes precedentes jurisprudenciais, era razoavelmente previsível para BV, no momento em que os factos em causa no processo principal foram cometidos, que estes pudessem dar lugar a um cúmulo de procedimentos e de sanções de natureza penal ao abrigo dos artigos 1729.o e 1741.o do CGT.

48      Neste contexto, a circunstância de BV dever, sendo esse o caso, ter recorrido à assistência de um consultor jurídico para avaliar as consequências que podem resultar dos factos que lhe foram imputados à luz das condições de aplicação do cúmulo de procedimentos e de sanções de natureza penal previsto nesses artigos, conforme interpretados pelos órgãos jurisdicionais nacionais, não é, em conformidade com a jurisprudência recordada no n.o 43 do presente acórdão, suscetível de pôr em causa o caráter claro e preciso da regulamentação nacional em causa no processo principal. Tal é especialmente válido para BV, na medida em que este parece ter cometido os referidos factos no âmbito da sua atividade profissional de revisor oficial de contas.

49      Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a terceira exigência referida no n.o 36 do presente acórdão, que decorre tanto do artigo 52.o, n.o 1, da Carta como do princípio da proporcionalidade das penas consagrado no artigo 49.o, n.o 3, da mesma, que implica para as autoridades competentes a obrigação, em caso de aplicação de uma segunda sanção, de assegurarem que a severidade do conjunto das sanções aplicadas não excede a gravidade da infração constatada (v., neste sentido, Acórdão de 20 de março de 2018, Garlsson Real Estate e o., C‑537/16, EU:C:2018:193, n.o 56).

50      A este respeito, há que especificar que, segundo a jurisprudência recordada no n.o 36 e no número anterior do presente acórdão, esta exigência se aplica, sem exceção, a todas as sanções aplicadas cumulativamente e, por conseguinte, tanto ao cúmulo de sanções da mesma natureza como ao cúmulo de sanções de natureza diferente, como o de sanções pecuniárias e de penas privativas de liberdade. A simples circunstância de as autoridades competentes terem a intenção de impor sanções de naturezas diferentes não as pode dispensar da obrigação de assegurarem que a severidade do conjunto das sanções aplicadas não excede a gravidade da infração constatada, sob pena de violar o princípio da proporcionalidade.

51      Nestas circunstâncias, o Tribunal de Justiça declarou no n.o 60 do Acórdão de 20 de março de 2018, Garlsson Real Estate e o. (C‑537/16, EU:C:2018:193), que esta exigência de proporcionalidade não é respeitada por uma regulamentação que prevê, para o cúmulo de uma multa e de uma sanção administrativa pecuniária de natureza penal, que a cobrança da primeira é limitada à parte que excede o montante da segunda, sem prever essa regra também para o cúmulo de uma sanção administrativa pecuniária de natureza penal e de uma pena privativa de liberdade.

52      No caso em apreço, embora, em conformidade com as indicações que figuram no pedido de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio já tenha declarado, baseando‑se em considerações de proporcionalidade, que o montante total de uma sanção aplicada em caso de cumulação de sanções não deve ultrapassar o montante mais elevado de uma das sanções já aplicadas, esse mesmo órgão jurisdicional especificou que a referida limitação apenas se aplica a sanções da mesma natureza, a saber, sanções pecuniárias. Ora, como salientou o advogado‑geral no n.o 103 das suas conclusões, essa limitação não é suscetível de assegurar a correspondência entre a gravidade da infração e a severidade do conjunto das sanções aplicadas quando uma sanção pecuniária é cumulada com uma pena privativa de liberdade.

53      Na medida em que o Governo francês salientou no Tribunal de Justiça que o juiz penal é obrigado a respeitar o princípio da proporcionalidade das penas que o poder de modular a sanção penal em função das circunstâncias do caso em apreço lhe confere, resulta da jurisprudência recordada nos n.os 36 e 49 do presente acórdão, por um lado, que as autoridades competentes estão sujeitas à obrigação de assegurar que a severidade do conjunto das sanções aplicadas não excede a gravidade da infração constatada e, por outro, que essa obrigação deve resultar, de forma clara e precisa, da regulamentação nacional em causa.

54      Incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se é o que acontece no caso em apreço, tendo em conta o facto de ter declarado, baseando‑se igualmente em considerações de proporcionalidade, que a limitação referida no n.o 52 apenas se aplica ao cúmulo de sanções da mesma natureza.

55      Tendo em conta as considerações que precedem, há que responder às questões prejudiciais que o direito fundamental garantido pelo artigo 50.o da Carta, em conjugação com o artigo 52.o, n.o 1, da mesma, deve ser interpretado no sentido de que

—        não se opõe a que a limitação aos casos mais graves do cúmulo de procedimentos e de sanções de natureza penal, em caso de ocultações fraudulentas ou de omissões declarativas em matéria de IVA, previsto numa regulamentação nacional, resulte apenas de uma jurisprudência assente que interprete, de forma restritiva, as disposições legais que definem as condições de aplicação desse cúmulo, desde que seja razoavelmente previsível, no momento em que a infração é cometida, que esta é suscetível de ser objeto de um cúmulo de procedimentos e de sanções de natureza penal, mas que

—        se opõe a uma regulamentação nacional que não assegura, nos casos de cúmulo de uma sanção pecuniária e de uma pena privativa de liberdade, através de regras claras e precisas, sendo caso disso tal como interpretadas pelos órgãos jurisdicionais nacionais, que o conjunto das sanções aplicadas não excede a gravidade da infração constatada.

 Quanto às despesas

56      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

O direito fundamental garantido pelo artigo 50.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, em conjugação com o artigo 52.o, n.o 1, da mesma, deve ser interpretado no sentido de que

—        não se opõe a que a limitação aos casos mais graves do cúmulo de procedimentos e de sanções de natureza penal, em caso de ocultações fraudulentas ou de omissões declarativas em matéria de imposto sobre o valor acrescentado (IVA), previsto numa regulamentação nacional, resulte apenas de uma jurisprudência assente que interprete, de forma restritiva, as disposições legais que definem as condições de aplicação desse cúmulo, desde que seja razoavelmente previsível, no momento em que a infração é cometida, que esta é suscetível de ser objeto de um cúmulo de procedimentos e de sanções de natureza penal, mas que

—        se opõe a uma regulamentação nacional que não assegura, nos casos de cúmulo de uma sanção pecuniária e de uma pena privativa de liberdade, através de regras claras e precisas, sendo caso disso tal como interpretadas pelos órgãos jurisdicionais nacionais, que o conjunto das sanções aplicadas não excede a gravidade da infração constatada.

Assinaturas


*      Língua do processo: francês.