Language of document : ECLI:EU:C:2023:440

DESPACHO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sétima Secção)

24 de maio de 2023 (*)

«Reenvio prejudicial — Artigo 99.° do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça — Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) — Diretiva 2006/112/CE — Artigo 178.°, alínea a) — Direito à dedução — Disposições relativas ao exercício — Artigo 226.°, ponto 6 — Menções que devem obrigatoriamente figurar nas faturas — Extensão e natureza dos serviços prestados — Faturas que contêm uma descrição genérica dos serviços prestados»

No processo C‑690/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pelo Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), por Decisão de 12 de outubro de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 9 de novembro de 2022, no processo

Shortcut — Consultadoria e Serviços de Tecnologias de Informação, Lda.,

contra

Autoridade Tributária e Aduaneira,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sétima Secção),

composto por: M. L. Arastey Sahún (relatora), presidente de secção, F. Biltgen e N. Wahl, juízes,

advogado‑geral: P. Pikamäe,

secretário: A. Calot Escobar,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de decidir por despacho fundamentado, nos termos do artigo 99.° do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça,

profere o presente

Despacho

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 178.°, alínea a), do artigo 219.°, do artigo 220.°, n.° 1, ponto 1, do artigo 226.°, ponto 6, e do artigo 273.° da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (JO 2006, L 347, p. 1; a seguir «Diretiva IVA»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Shortcut — Consultadoria e Serviços de Tecnologias de Informação, Lda. (a seguir «Shortcut»), à Autoridade Tributária e Aduaneira (Portugal) (a seguir «Autoridade Tributária») a respeito da recusa desta última em aceitar a dedução do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) pago a montante pela Shortcut enquanto destinatária de serviços, com o fundamento de que as faturas emitidas pelos prestadores desses serviços não cumprem os requisitos formais previstos pela legislação nacional.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        O artigo 168.° da Diretiva IVA prevê:

«Quando os bens e os serviços sejam utilizados para os fins das suas operações tributadas, o sujeito passivo tem direito, no Estado‑Membro em que efetua essas operações, a deduzir do montante do imposto de que é devedor os montantes seguintes:

a)      O IVA devido ou pago nesse Estado‑Membro em relação aos bens que lhe tenham sido ou venham a ser entregues e em relação aos serviços que lhe tenham sido ou venham a ser prestados por outro sujeito passivo;

[...]»

4        O artigo 178.° desta diretiva tem a seguinte redação:

«Para poder exercer o direito à dedução, o sujeito passivo deve satisfazer as seguintes condições:

a)      Relativamente à dedução referida na alínea a) do artigo 168.°, no que respeita às entregas de bens e às prestações de serviços, possuir uma fatura emitida em conformidade com os artigos 220.° a 236.°, 238.°, 239.° e 240.°;

[...]»

5        O artigo 219.° da referida diretiva dispõe:

«É assimilado a fatura qualquer documento ou mensagem que altere a fatura inicial e a ela faça referência específica e inequívoca.»

6        O artigo 220.° da mesma diretiva prevê, no seu n.° 1:

«Os sujeitos passivos devem assegurar que seja emitida uma fatura, por eles próprios, pelos adquirentes ou destinatários ou, em seu nome e por sua conta, por terceiros, nos seguintes casos:

1)      Relativamente às entregas de bens ou às prestações de serviços que efetuem a outros sujeitos passivos ou a pessoas coletivas que não sejam sujeitos passivos;

[...]»

7        Nos termos do artigo 226.° da Diretiva IVA:

«Sem prejuízo das disposições específicas previstas na presente diretiva, as únicas menções que devem obrigatoriamente figurar, para efeitos do IVA, nas faturas emitidas em aplicação do disposto nos artigos 220.° e 221.° são as seguintes:

[...]

6)      A quantidade e natureza dos bens entregues ou a extensão e natureza dos serviços prestados;

[...]»

8        O artigo 273.° desta diretiva dispõe:

«Os Estados‑Membros podem prever outras obrigações que considerem necessárias para garantir a cobrança exata do IVA e para evitar a fraude, sob reserva da observância da igualdade de tratamento das operações internas e das operações efetuadas entre Estados‑Membros por sujeitos passivos, e na condição de essas obrigações não darem origem, nas trocas comerciais entre Estados‑Membros, a formalidades relacionadas com a passagem de uma fronteira.

A faculdade prevista no primeiro parágrafo não pode ser utilizada para impor obrigações de faturação suplementares às fixadas no capítulo 3.»

 Direito português

9        Resulta da decisão de reenvio que o artigo 36.°, n.° 5, alínea b), do Código do IVA estabelece que as faturas devem conter a «quantidade e denominação usual dos bens transmitidos ou dos serviços prestados, com especificação dos elementos necessários à determinação da taxa aplicável».

10      Só quando uma fatura preenche nomeadamente os requisitos previstos nesta disposição é que existe, em conformidade com o disposto no artigo 19.°, n.° 2, alínea a), e n.° 6, do Código do IVA, um direito à dedução do IVA mencionado na fatura.

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

11      A Shortcut, que é uma sociedade de direito português, exerce atividades de consultadoria em informática. Esta está sujeita ao IVA em Portugal.

12      Na sequência de uma ação inspetiva com incidência temporal sobre o ano de 2011, a Autoridade Tributária elaborou um relatório de inspeção no qual concluiu que quatro faturas emitidas por sociedades que prestaram à Shortcut serviços no domínio da informática (a seguir «faturas em causa») se baseavam em transações simuladas e que, por conseguinte, o IVA que nelas figurava foi indevidamente deduzido pela Shorcut.

13      No mesmo relatório, a Autoridade Tributária também considerou que, devido à descrição muito genérica dos serviços prestados à Shortcut nelas incluídos, essas faturas não preenchiam os requisitos formais previstos no artigo 36.°, n.° 5, alínea b), do Código do IVA, pelo que, por força do artigo 19.°, n.os 2 e 6, desse código, o IVA foi indevidamente deduzido.

14      A este respeito, resulta da decisão de reenvio que as faturas em causa continham as seguintes menções:

–        fatura n.° 2011001, com data de 31 de janeiro de 2011: quantidade: 631 h; descritivo: «Serviços de Desenvolvimento de Aplicações»;

–        fatura n.° 2011003, com data de 25 de fevereiro de 2011: quantidade: 1 780 h e 210 h; descritivo: «Serviços de Desenvolvimento de Aplicações» e «Consultadoria em Desenvolvimento de Aplicações», respetivamente;

–        fatura n.° 2011002, com data de 31 de maio de 2011: quantidade: 545 h; descritivo: «Serviços de Desenvolvimento de Aplicações», e

–        fatura n.° 2011007, com data de 6 de junho de 2011: quantidade: 2 400 h; descritivo: «Serviços de Integração de Aplicações».

15      A Autoridade Tributária corrigiu o IVA correspondente a essas faturas, que considerou ter sido indevidamente deduzido, e emitiu, em 21 de fevereiro de 2015, duas liquidações adicionais de IVA e duas liquidações de juros compensatórios, no montante total de 76 085,91 euros.

16      A Shortcut interpôs recurso destas liquidações para o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto (Portugal), o qual, por Sentença de 16 de outubro de 2019, declarou que os indícios coligidos pela Autoridade Tributária no seu relatório não permitiam concluir, com o grau de probabilidade exigido, que as transações objeto das faturas em causa tinham sido simuladas. Por conseguinte, o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto declarou que as referidas liquidações não podiam manter‑se com fundamento na simulação das transações.

17      Todavia, este órgão jurisdicional considerou que deviam manter‑se aquelas liquidações e que, por conseguinte, a Shortcut não tinha direito à dedução do IVA mencionado nas faturas em causa com fundamento no desrespeito pelas formalidades formais previstas no artigo 36.°, n.° 5, alínea b), do Código do IVA no que concerne à identificação dos serviços que lhe tinham sido prestados.

18      A Shortcut interpôs recurso desta sentença para o Tribunal Central Administrativo Norte (Portugal) que, por Acórdão de 27 de outubro de 2021, negou provimento ao recurso, tendo considerado que as faturas em causa não cumpriam os referidos requisitos formais no que toca à descrição dos serviços prestados e que os outros documentos juntos pela Shortcut não permitiam alterar esta conclusão.

19      A Shortcut interpôs recurso desse acórdão para o órgão jurisdicional de reenvio, que é o Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), alegando, nomeadamente, que, por força do princípio da neutralidade do IVA, a Autoridade Tributária não pode recusar o direito à dedução do IVA apenas com base em critérios formais relativos às faturas. Por outro lado, as faturas em causa incluíam todos os elementos formais exigidos, nomeadamente no que respeita à indicação dos serviços prestados, o que é demonstrado pelo facto de, no seu relatório de inspeção, a Autoridade Tributária não ter experimentado a mínima dificuldade em identificar a quantidade e a denominação usual dos serviços prestados, tendo examinado minuciosamente a menção e a extensão desses serviços.

20      Perante o Supremo Tribunal Administrativo, o Procurador‑Geral Adjunto (Portugal) sustenta que as descrições genéricas dos serviços prestados que figuram nas faturas em causa não preenchem os requisitos previstos no artigo 36.°, n.° 5, alínea b), do Código do IVA, cujo cumprimento é essencial para poder excluir qualquer evasão fiscal que revista a forma de uma dupla dedução do IVA.

21      O órgão jurisdicional de reenvio salienta que, uma vez que a simulação das transações objeto das faturas em causa não foi demonstrada, a única questão que se coloca perante si é a de saber se a descrição dos serviços prestados constantes destas faturas cumprem os requisitos previstos no artigo 36.°, n.° 5, alínea b), do Código do IVA, o que implica que se interprete o artigo 226.°, ponto 6, da Diretiva IVA. Este órgão jurisdicional também indica que, na hipótese de se considerar que estas descrições não preenchem os referidos requisitos, há que determinar se essa apreciação obsta à dedutibilidade do IVA mencionado nessas faturas.

22      A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio recorda que resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça, em especial do Acórdão de 15 de setembro de 2016, Barlis 06 — Investimentos Imobiliários e Turísticos (C‑516/14, EU:C:2016:690, n.° 27), que a finalidade das menções que devem obrigatoriamente constar da fatura consiste em permitir às Administrações Fiscais a realização de controlos do pagamento do imposto devido e, se for caso disso, da existência do direito a dedução do IVA. Ora, tendo em conta este objetivo, a particularidade do processo que foi submetido ao órgão jurisdicional de reenvio consiste no facto de, em sede de uma inspeção tributária, a Autoridade Tributária, apesar de ter considerado que as faturas em causa não descreviam de forma suficientemente precisa os serviços prestados, ter concluído, embora erradamente, que as transações que nelas figuravam configuravam operações simuladas.

23      Nestas condições, o Supremo Tribunal Administrativo decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Os descritivos utilizados nas faturas em causa nos autos “Serviços de desenvolvimento de aplicações”, para efeitos de identificação da dimensão e características dos serviços prestados, são suficientes em face da correta interpretação dos artigos 178.°, alínea a), 219.°, 220.°, n.° 1, 226.°, n.° 6 e 273.° da [Diretiva IVA], quando os mesmos não impediram que a [Autoridade Tributária], em sede de inspeção tributária, apreciasse a questão da correspondência à realidade dos serviços nelas descritos, tendo concluído pela “falsidade das faturas”?»

 Quanto à questão prejudicial

24      Nos termos do artigo 99.° do seu Regulamento de Processo, o Tribunal de Justiça pode, nomeadamente quando a resposta a uma questão submetida a título prejudicial possa ser claramente deduzida da jurisprudência ou quando a resposta a tal questão não suscite nenhuma dúvida razoável, a qualquer momento, mediante proposta do juiz‑relator, ouvido o advogado‑geral, decidir pronunciar‑se por meio de despacho fundamentado.

25      Há que aplicar esta disposição no âmbito do presente processo.

26      Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 178.°, alínea a), o artigo 219.° e o artigo 226.°, ponto 6, da Diretiva IVA devem ser interpretados no sentido de que se opõem a que as autoridades tributárias nacionais possam recusar o direito à dedução do IVA pelo facto de faturas que contêm menções como «Serviços de desenvolvimento de aplicações» não serem conformes com os requisitos formais previstos nesta última disposição.

27      A título preliminar, importa salientar que esta questão é submetida em circunstâncias nas quais as autoridades tributárias nacionais consideraram que estas menções eram suficientes para se poderem pronunciar sobre a natureza pretensamente simulada dos serviços assim descritos. Com efeito, como o órgão jurisdicional de reenvio observa, no caso em apreço, em sede de uma inspeção tributária, a Autoridade Tributária, apesar de ter considerado que as faturas em causa não descreviam de forma suficientemente precisa os serviços prestados, concluiu, embora erradamente, que as transações que nelas figuravam constituíam operações simuladas.

28      Além disso, há que recordar que, nos termos de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o direito à dedução do IVA constitui um princípio fundamental do sistema comum do IVA que não pode, em princípio, ser limitado, e é exercido imediatamente em relação à totalidade dos impostos que incidiram sobre as operações efetuadas a montante pelo sujeito passivo (Acórdão de 16 de fevereiro de 2023, DGRFP Cluj, C‑519/21, EU:C:2023:106, n.° 93 e jurisprudência referida).

29      Este regime das deduções visa desonerar inteiramente o empresário do encargo do IVA devido ou pago no quadro de todas as suas atividades económicas. O sistema comum do IVA garante, por conseguinte, uma neutralidade perfeita quanto à carga fiscal de todas as atividades económicas, independentemente dos respetivos fins ou resultados, desde que essas atividades estejam por sua vez sujeitas a IVA (Acórdão de 16 de fevereiro de 2023, DGRFP Cluj, C‑519/21, EU:C:2023:106, n.° 94 e jurisprudência referida).

30      Para responder à questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio, há que examinar, num primeiro momento, a questão de saber se as menções referidas na questão prejudicial cumprem os requisitos formais que figuram no artigo 226.°, ponto 6, da Diretiva IVA.

31      No que respeita aos requisitos formais do direito à dedução, resulta do artigo 178.°, alínea a), da Diretiva IVA que o exercício deste direito está subordinado à posse de uma fatura emitida nos termos do artigo 226.° desta diretiva (Acórdão de 21 de novembro de 2018, Vădan, C‑664/16, EU:C:2018:933, n.° 40 e jurisprudência referida).

32      O artigo 226.° da Diretiva IVA indica que, sem prejuízo das disposições específicas previstas nesta diretiva, só as menções citadas nesse artigo devem obrigatoriamente figurar, para efeitos do IVA, nas faturas emitidas em aplicação do disposto no artigo 220.° da referida diretiva. Daqui decorre que não é legítimo aos Estados‑Membros associar o exercício do direito à dedução do IVA ao preenchimento de pressupostos relativos ao conteúdo das faturas que não estão expressamente previstos nas disposições da Diretiva IVA (Acórdão de 15 de setembro de 2016, Barlis 06 — Investimentos Imobiliários e Turísticos, C‑516/14, EU:C:2016:690, n.° 25 e jurisprudência referida).

33      O artigo 226.°, ponto 6, da Diretiva IVA exige que a fatura contenha a menção da extensão e natureza dos serviços prestados. A redação desta disposição indica assim que é obrigatório especificar a extensão e natureza dos serviços prestados, sem contudo precisar que é necessário descrever os serviços específicos prestados de forma exaustiva (Acórdão de 15 de setembro de 2016, Barlis 06 — Investimentos Imobiliários e Turísticos, C‑516/14, EU:C:2016:690, n.° 26).

34      A finalidade das menções que devem obrigatoriamente constar da fatura consiste em permitir às Administrações Fiscais a realização de controlos do pagamento do imposto devido e, se for caso disso, da existência do direito à dedução do IVA. É, portanto, à luz desta finalidade que importa analisar se faturas como as que estão em causa respeitam as exigências do artigo 226.°, ponto 6, da Diretiva IVA (Acórdão de 15 de setembro de 2016, Barlis 06 — Investimentos Imobiliários e Turísticos, C‑516/14, EU:C:2016:690, n.° 27).

35      No processo principal, é facto assente que as faturas em causa descrevem suficientemente a extensão, a saber, a quantidade, dos serviços prestados, uma vez que indicam a duração em horas.

36      Quanto à descrição da natureza dos referidos serviços, a menção «Serviços de desenvolvimento de aplicações», constante das faturas n.° 2011001, n.° 2011002 e n.° 2011003, retomada pelo órgão jurisdicional de reenvio na redação da questão prejudicial, é, certamente, bastante genérica.

37      Contudo, por um lado, importa salientar que resulta da fundamentação da decisão de reenvio que uma destas faturas contém uma segunda menção, a saber, «Consultadoria em Desenvolvimento de Aplicações» na fatura n.° 2011003, e que outra fatura contém uma menção diferente, a saber, «Serviços de Integração de Aplicações» na fatura n.° 2011007. Caberá ao órgão jurisdicional de reenvio, único competente para apreciar os factos do processo que lhe foi submetido, verificar se se pode considerar que estas menções permitem especificar de uma melhor forma a natureza dos serviços prestados.

38      Por outro lado, no Acórdão de 15 de setembro de 2016, Barlis 06 — Investimentos Imobiliários e Turísticos (C‑516/14, EU:C:2016:690, n.° 28), o Tribunal de Justiça declarou, em substância, que o conceito de «serviços jurídicos», que figurava nas faturas em causa no processo que deu origem a esse acórdão, abrangia um vasto acervo de prestações de serviços e, nomeadamente, prestações que não assumiam necessariamente um âmbito empresarial, pelo que o referido conceito não parecia indicar, de forma suficientemente detalhada, a natureza dos serviços em causa.

39      Ora, ao contrário da menção que estava em causa no referido processo, a menção referida na redação da questão prejudicial no presente processo não parece abranger prestações que não assumem um âmbito empresarial e que, por conseguinte, não estão abrangidas pelo IVA. Com efeito, embora seja verdade que a Diretiva IVA atribui um âmbito de aplicação muito lato ao IVA, apenas são abrangidas por este imposto as atividades de caráter económico (Acórdão de 15 de abril de 2021, Administration de l’Enregistrement, des Domaines et de la TVA, C‑846/19, EU:C:2021:277, n.° 31 e jurisprudência referida).

40      Além disso, o facto, salientado pelo órgão jurisdicional de reenvio, de a Autoridade Tributária ter considerado que esta menção era suficiente para que se pudesse pronunciar sobre o caráter pretensamente simulado dos serviços assim descritos também parece pertinente para concluir que esta menção é suficiente para permitir que as autoridades nacionais conheçam da natureza dos serviços prestados.

41      Com efeito, resulta da jurisprudência referida no n.° 34 do presente despacho que a finalidade das menções que devem obrigatoriamente constar da fatura consiste em permitir às Administrações Fiscais a realização de controlos do pagamento do imposto devido e, se for caso disso, da existência do direito à dedução do IVA. 

42      Ora, não se pode excluir que, uma vez que qualificou, embora erradamente, os serviços prestados à Shortcut, a que dizem respeito as faturas em causa, de operações simuladas, a Autoridade Tributária teve possibilidade de proceder ao controlo da existência do direito à dedução invocado por esta sociedade.

43      No entanto, é ao órgão jurisdicional de reenvio que incumbirá verificar, igualmente a este respeito, se as menções contidas nas faturas em causa precisam de forma juridicamente bastante a natureza dos serviços prestados. Com efeito, decorre dos n.os 28 e 35, bem como do dispositivo do Acórdão de 15 de setembro de 2016, Barlis 06 — Investimentos Imobiliários e Turísticos (C‑516/14, EU:C:2016:690), que é aos órgãos jurisdicionais nacionais que cabe verificar se essas faturas preenchem ou não os requisitos formais indicados no artigo 226.°, ponto 6, da Diretiva IVA.

44      Por outro lado, e em todo o caso, também decorre do n.° 34 do Acórdão de 15 de setembro de 2016, Barlis 06 — Investimentos Imobiliários e Turísticos (C‑516/14, EU:C:2016:690), que, se o órgão jurisdicional de reenvio constatar que as faturas em causa não preenchem os requisitos previstos nesta disposição, cabe‑lhe ainda verificar se os outros documentos apresentados pela Shortcut, como, por exemplo, os mencionados pelo Tribunal Central Administrativo Norte no acórdão referido no n.° 18 do presente despacho, contêm uma apresentação mais detalhada dos serviços em causa e podem ser equiparados a uma fatura, nos termos do artigo 219.° da Diretiva IVA, na qualidade de documentos que alteram a fatura inicial e a ela fazem referência específica e inequívoca.

45      Num segundo momento, há que examinar o impacto que a resposta à questão de saber se as faturas em causa preenchem ou não os requisitos formais previstos na Diretiva IVA pode ter no direito à dedução do IVA. Com efeito, resulta da decisão de reenvio que esta questão visa, em última instância, determinar se a Shortcut pode invocar o direito à dedução do IVA mencionado nessas faturas.

46      Ora, importa salientar que, ainda que o órgão jurisdicional de reenvio chegasse à conclusão de que as faturas em causa não cumprem os referidos requisitos, isso não justifica que se negue à Shortcut o direito à dedução do IVA, desde que os requisitos materiais exigidos para a constituição deste direito estejam preenchidos.

47      A este respeito, no que se refere a estes requisitos materiais, resulta do artigo 168.°, alínea a), da Diretiva IVA que os bens ou serviços invocados para fundamentar o direito à dedução do IVA devem ser utilizados pelo sujeito passivo a jusante para os efeitos das suas próprias operações tributadas e que, a montante, esses bens ou serviços devem ser prestados por outro sujeito passivo (Acórdão de 15 de setembro de 2016, Barlis 06 — Investimentos Imobiliários e Turísticos, C‑516/14, EU:C:2016:690, n.° 40 e jurisprudência referida).

48      Decorre de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que o princípio fundamental da neutralidade do IVA exige que a dedução deste imposto pago a montante seja concedida se os requisitos materiais estiverem cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham omitido certos requisitos formais. Por conseguinte, quando a Administração Tributária dispõe dos dados necessários para saber que os requisitos materiais foram cumpridos, não pode impor requisitos suplementares ao direito do sujeito passivo de dedução do imposto que possam ter por efeito eliminar esse direito (Acórdão de 29 de setembro de 2022, Raiffeisen Leasing, C‑235/21, EU:C:2022:739, n.° 38 e jurisprudência referida).

49      Ora, a posse de uma fatura com as menções previstas no artigo 226.° da Diretiva IVA constitui um requisito formal e não um requisito material do direito à dedução do IVA (v., neste sentido, Acórdão de 15 de setembro de 2016, Senatex, C‑518/14, EU:C:2016:691, n.° 38).

50      Daqui resulta que a Administração Tributária não pode recusar o direito à dedução do IVA pelo simples facto de uma fatura não preencher os requisitos exigidos pelo artigo 226.°, ponto 6, da Diretiva IVA, se dispuser de todos os dados para verificar se os requisitos materiais relativos a esse direito estão preenchidos (v., neste sentido, Acórdão de 29 de setembro de 2022, Raiffeisen Leasing, C‑235/21, EU:C:2022:739, n.° 39 e jurisprudência referida).

51      Com efeito, a aplicação estrita do requisito formal de apresentar faturas colidiria com os princípios da neutralidade e da proporcionalidade, uma vez que teria por efeito impedir de maneira desproporcionada o sujeito passivo de beneficiar da neutralidade fiscal relativa às suas operações (Acórdão de 16 de fevereiro de 2023, DGRFP Cluj, C‑519/21, EU:C:2023:106, n.° 98 e jurisprudência referida).

52      A este respeito, a Administração Tributária não se deve limitar ao exame das faturas, mas deve igualmente ter em conta, em conformidade com o disposto no artigo 219.° da Diretiva IVA, informações complementares eventualmente prestadas pelo sujeito passivo (v., neste sentido, Acórdão de 15 de setembro de 2016, Barlis 06 — Investimentos Imobiliários e Turísticos, C‑516/14, EU:C:2016:690, n.° 44).

53      No entanto, cabe ao sujeito passivo que pede a dedução do IVA provar que preenche os requisitos para dela beneficiar (Acórdão de 16 de fevereiro de 2023, DGRFP Cluj, C‑519/21, EU:C:2023:106, n.° 99 e jurisprudência referida).

54      Por conseguinte, a dedução do IVA pode ser recusada se a violação dos requisitos formais previstos na Diretiva IVA tiver por efeito impedir que se apresente prova irrefutável de que os requisitos materiais foram preenchidos (v., neste sentido, Acórdão de 9 de dezembro de 2021, Kemwater ProChemie, C‑154/20, EU:C:2021:989, n.° 31 e jurisprudência referida).

55      Ora, o órgão jurisdicional de reenvio parece partir, no caso em apreço, da premissa de que estes requisitos materiais foram efetivamente cumpridos pela Shortcut, o que, no entanto, cabe a esse órgão jurisdicional verificar.

56      Do mesmo modo, decorre de jurisprudência constante que o direito à dedução pode ser recusado quando se provar, com base em elementos objetivos, que esse direito é invocado de maneira fraudulenta ou abusiva. Com efeito, a luta contra a fraude, a evasão fiscal e os eventuais abusos é um objetivo reconhecido e encorajado pela Diretiva IVA, e os litigantes não podem, de maneira fraudulenta ou abusiva, invocar as normas do direito da União (Acórdão de 5 de julho de 2018, Marle Participations, C‑320/17, EU:C:2018:537, n.° 41 e jurisprudência referida).

57      No entanto, como é sublinhado pelo órgão jurisdicional de reenvio, a simulação das operações mencionadas nas faturas em causa, invocada no caso em apreço pela Autoridade Tributária, não foi demonstrada perante os órgãos jurisdicionais nacionais que conheceram do mérito da causa.

58      Além disso, embora os Estados‑Membros sejam competentes para prever sanções em caso de inobservância dos requisitos formais relativos ao exercício do direito à dedução do IVA, através da adoção, ao abrigo do artigo 273.° da Diretiva IVA, de medidas para assegurar a cobrança exata do imposto e evitar a fraude, tal só ocorre todavia desde que tais medidas não excedam o que é necessário para atingir tais objetivos e não ponham em causa a neutralidade do IVA. (v., neste sentido, Acórdão de 15 de setembro de 2016, Barlis 06 — Investimentos Imobiliários e Turísticos, C‑516/14, EU:C:2016:690, n.° 47 e jurisprudência referida). Daqui resulta que tais medidas não podem pôr em causa o direito à dedução do IVA.

59      Atendendo a todas as considerações que precedem, há que responder à questão submetida que o artigo 178.°, alínea a), o artigo 219.° e o artigo 226.°, ponto 6, da Diretiva IVA devem ser interpretados no sentido de que se opõem a que as autoridades tributárias nacionais possam recusar o direito à dedução do IVA pelo facto de faturas que contêm menções como «Serviços de desenvolvimento de aplicações» não serem conformes com os requisitos formais previstos nesta última disposição.

 Quanto às despesas

60      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Sétima Secção) declara:

O artigo 178.°, alínea a), o artigo 219.° e o artigo 226.°, ponto 6, da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado,

devem ser interpretados no sentido de que:

se opõem a que as autoridades tributárias nacionais possam recusar o direito à dedução do imposto sobre o valor acrescentado pelo facto de faturas que contêm menções como «Serviços de desenvolvimento de aplicações» não serem conformes com os requisitos formais previstos nesta última disposição.

Feito no Luxemburgo, em 24 de maio de 2023.

O Secretário

 

A Presidente de Secção

A. Calot Escobar

 

M. L. Arastey Sahún


*      Língua do processo: português.