CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MELCHIOR WATHELET

apresentadas em 9 de fevereiro de 2017(1)

Processo C‑99/16

Jean‑Philippe Lahorgue

contra

Ordre des avocats du barreau de Lyon,

Conseil national des barreaux (CNB),

Conseil des barreaux européens (CCBE),

Ordre des avocats du barreau de Luxembourg

[pedido de decisão prejudicial submetido pelo tribunal de grande instance de Lyon (Tribunal de Primeira Instância de Lião, França)]

«Reenvio prejudicial — Livre prestação de serviços — Diretiva 77/249/CEE — Artigo 4.° — Artigo 5.° — Exercício da profissão de advogado — Router “RPVA” — Recusa de entrega — Discriminação»






I.      Introdução

1.        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 4.° da Diretiva 77/249/CEE do Conselho, de 22 de março de 1977, tendente a facilitar o exercício efetivo da livre prestação de serviços pelos advogados (2).

2.        A questão dos entraves à livre prestação de serviços pelos advogados não é nova. Todavia, a informatização da justiça e a desmaterialização das peças processuais, o surgimento de novos modos de comunicação, as possibilidades de armazenamento virtual ou ainda os programas de inteligência artificial transformam, inevitavelmente, a forma de encarar a profissão e o seu exercício.

3.        O presente pedido de decisão prejudicial insere‑se neste contexto. Com efeito, é apresentado após a Ordre des avocats du barreau de Lyon (Ordem dos Advogados de Lião, França) recusar entregar a J.‑P. Lahorgue, enquanto prestador de serviços transfronteiriços, a ferramenta necessária para estabelecer uma comunicação eletrónica segura com as Secretarias dos órgãos jurisdicionais franceses, nomeadamente, o router de ligação à Réseau privé virtuel des avocats (rede privada virtual dos advogados, a seguir «router RPVA»).

II.    Quadro jurídico

A.      Direito da União

4.        O artigo 4.° da Diretiva 77/249 dispõe o seguinte:

«1. As atividades relativas à representação e à defesa de um cliente em juízo ou perante autoridades públicas serão exercidas em cada Estado‑Membro de acolhimento nas condições previstas quanto aos advogados estabelecidos nesse Estado, com exclusão de qualquer requisito de residência ou de inscrição numa organização profissional no referido Estado.

2. No exercício destas atividades, o advogado respeitará as regras profissionais do Estado‑Membro de acolhimento, sem prejuízo das obrigações a que esteja sujeito no Estado‑Membro de proveniência.

[…]»

5.        O artigo 5.° da Diretiva 77/249 estabelece o seguinte:

«No que respeita ao exercício das atividades relativas à representação e à defesa de um cliente em juízo, os Estados‑Membros podem exigir aos advogados mencionados no artigo 1.°:

–        que, de acordo com as regras ou usos locais, sejam apresentados ao presidente da jurisdição e, se for caso disso, ao bastonário competente no Estado‑Membro de acolhimento;

–        que atuem de concerto, quer com um advogado que exerça perante a jurisdição competente e que será, se necessário, responsável perante essa jurisdição, quer com um ‘avoué’ ou um ‘procuratore’ que exerçam perante essa jurisdição.»

B.      Direito francês

1.      Decreto n.° 911197

6.        A Diretiva 77/249 foi transposta para o direito francês pelo décret n° 91‑1197, organisant la profession d’avocat (Decreto n.° 91‑1197, que regula a profissão de advogado), de 27 de novembro de 1991.

7.        Nos termos do artigo 202‑1 do Decreto n.° 91‑1197:

«Quando um advogado [nacional de um Estado‑Membro estabelecido a título permanente num dos Estados‑Membros] assegure a representação e a defesa de um cliente em juízo ou perante autoridades públicas, esse advogado exerce as suas funções nas mesmas condições que um advogado inscrito numa das Ordens dos Advogados francesas.

[…]

Em matéria civil, quando a representação é obrigatória perante o tribunal de grande instance [Tribunal de Primeira Instância], só pode ser constituído depois de escolher domicílio no escritório de um advogado inscrito no foro do tribunal em que o pedido seja apresentado e ao qual os atos processuais são validamente notificados. […]

Quando a representação é obrigatória na cour d’appel [Tribunal de Segunda Instância], só pode litigar depois de escolher domicílio no escritório de um advogado habilitado a representar as partes nesse órgão jurisdicional e ao qual os atos processuais são validamente notificados. […]»

2.      Código de Processo Civil

8.        O décret no 2005‑1678 (Decreto n.° 2005‑1678), de 28 de dezembro de 2005, introduziu no code de procédure civile (Código de Processo Civil) um novo título XXI, intitulado «Comunicação por via eletrónica».

9.        Entre as disposições deste título, o artigo 748‑1 do Código de Processo Civil atualmente em vigor prevê que «[o]s envios e notificações dos atos processuais, dos articulados, avisos, citações ou convocatórias, dos relatórios, das atas, assim como das cópias e cópias autenticadas declaradas executórias das decisões jurisdicionais podem ser efetuados por via eletrónica nas condições e segundo as modalidades fixadas pelo presente título, sem prejuízo das disposições especiais que impõem a utilização deste modo de comunicação».

10.      Por outro lado, e no que respeita ao processo com representante obrigatório nos tribunais de segunda instância, o artigo 930‑1 do Código de Processo Civil dispõe o seguinte:

«Sob pena de serem oficiosamente declarados inadmissíveis, os atos processuais são enviados ao órgão jurisdicional por via eletrónica.

Quando um ato não puder ser transmitido por via eletrónica por motivo não imputável a quem o elaborou, será e entregue na Secretaria em papel. […]

Os avisos, citações ou convocatórias são enviados aos advogados das partes por via eletrónica, exceto se tal não for possível por motivo não imputável ao expedidor.

As modalidades de intercâmbios por via eletrónica são definidas por decreto do Ministro da Justiça.»

3.      Decreto de 7 de abril de 2009, relativo à comunicação por via eletrónica nos tribunais de primeira instância

11.      Nos termos do artigo 5.° do arrêté du 7 avril 2009 (Decreto de 7 de abril de 2009) (3), «[o] acesso dos advogados ao sistema de comunicação eletrónica disponibilizado aos órgãos jurisdicionais é efetuado mediante a utilização de um processo de ligação a uma rede independente privada administrada sob a responsabilidade do Conseil national des barreaux [Conselho Nacional da Ordem dos Advogados] denominada ‘rede privada virtual dos advogados’ (RPVA)».

12.      O artigo 9.° deste decreto prevê ainda que «[a] segurança da conexão dos advogados à RPVA é garantida por um dispositivo de identificação. Este dispositivo baseia‑se num serviço de certificação que garante a autenticação da qualidade de advogado pessoa singular […]. O dispositivo inclui uma função de verificação da validade do certificado eletrónico. Este é emitido por um prestador de serviços de certificação eletrónica que atua em nome do Conseil national des barreaux (Conselho Nacional da Ordem dos Advogados), autoridade de certificação».

III. RPVA

13.      Em meados dos anos 2000, a França iniciou uma desmaterialização dos processos judiciais.

14.      Este processo conduziu à assinatura de um protocolo de comunicação eletrónica entre os órgãos jurisdicionais e os advogados (denominado «ComCi TGI», no que respeita aos órgãos jurisdicionais de primeira instância, e «ComCi CA», no que respeita aos órgãos jurisdicionais de segunda instância).

15.      O objetivo deste protocolo consiste, nomeadamente, em melhorar a comunicação entre os tribunais e os advogados graças ao intercâmbio desmaterializado de dados estruturados. Tecnicamente, trata‑se de duas redes intranet distintas que estão ligadas por uma plataforma denominada «e‑barreau». Estas duas redes são, por um lado, a intranet dos órgãos jurisdicionais administrada pelo Ministério da Justiça (rede privada virtual justiça) e, por outro, a intranet dos advogados administrada pelo Conselho Nacional da Ordem dos Advogados (CNB), a RPVA.

16.      As informações trocadas entre os escritórios de advogados e a plataforma de serviços da RPVA são encriptadas mediante a utilização de um algoritmo entre o router VPN, presente na rede local do escritório antes do dispositivo de conexão Internet do escritório, e o interface VPN presente na entrada da plataforma de serviços da RPVA.

17.      Apenas os routers devidamente identificados e autorizados a conectarem‑se ao serviço RPVA podem comunicar com o interface VPN na entrada da plataforma da RPVA e, assim, aceder ao serviço ebarreau. Segundo as explicações fornecidas pelo CNB na audiência de 11 de janeiro de 2017, os routers seriam doravante substituídos por chaves USB.

18.      Materialmente, esse dispositivo consiste num certificado eletrónico armazenado num suporte físico criptográfico específico para cada advogado, ou seja, um dispositivo de memória com conexão USB. Este dispositivo é designado «router RPVA» e permite autenticar os utilizadores dos serviços e‑barreau.

19.      Na prática, a autenticação é possível porque o certificado eletrónico pessoal do advogado está ligado à lista nacional dos advogados, que é atualizada automaticamente através de uma sincronização diária com as listas dos advogados de todas as Ordens dos Advogados francesas.

20.      Na sequência deste protocolo, foram sucessivamente celebradas várias convenções entre o Ministério da Justiça e o CNB para fixar as modalidades e as condições da comunicação eletrónica entre os advogados e os órgãos jurisdicionais de primeira e segunda instância.

21.      Nos termos do artigo VI da Convenção de 16 de junho de 2010, celebrada entre o Ministério da Justiça e o CNB, a inscrição no «ComCi CA» e no «ComCI TGI» é efetuada através da Ordem dos Advogados a que pertence o advogado. A entrega do router RPVA depende igualmente desta Ordem (4).

IV.    Factos do litígio no processo principal

22.      J.‑P. Lahorgue, de nacionalidade francesa, é um advogado inscrito na Ordem dos Advogados do Luxemburgo.

23.      Este solicitou à Ordem dos Advogados de Lião que lhe fornecesse um router RPVA. Esta indeferiu o pedido de J.‑P. Lahorgue pelo facto de este não estar inscrito na Ordem dos Advogados de Lião.

24.      Na sequência desta recusa, J.‑P. Lahorgue apresentou ao presidente do tribunal de grande instance de Lyon (Tribunal de Primeira Instância de Lião) um pedido de medidas provisórias contra a Ordem dos Advogados de Lião, o CNB, o Conseil des barreaux européens (Conselho das Ordens dos Advogados Europeias) (CCBE) e a Ordre des avocats du Barreau de Luxembourg (Ordem dos Advogados do Luxemburgo), em que pedia que a Ordem dos Advogados de Lião lhe entregasse, no prazo de oito dias e sob pena de sanção pecuniária compulsória, o router RPVA, de modo a poder exercer plenamente a profissão de advogado em França e nas mesmas condições que um advogado francês.

25.      O órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à compatibilidade da decisão de recusa da Ordem dos Advogados de Lião com o direito da União.

26.      Em particular, considera que, uma vez que o exercício das vias de recurso em matéria penal ou social não impõe qualquer restrição ao advogado de outro Estado‑Membro relativa à obrigação de recorrer a um advogado que atua de concerto, inscrito na Ordem dos Advogados do local do órgão jurisdicional em questão, pode revelar‑se contrário à liberdade de exercício impor a um advogado de outro Estado‑Membro o recurso a um advogado da Ordem dos Advogados do foro do órgão jurisdicional em causa para utilizar a RPVA.

27.      Nestas condições, o presidente do tribunal de grande instance de Lyon (Tribunal de Primeira Instância de Lião) decidiu suspender a instância e submeter uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça.

V.      Pedido de decisão prejudicial e tramitação processual no Tribunal de Justiça

28.      Por despacho de medidas provisórias de 15 de fevereiro de 2016, entrado no Tribunal de Justiça em 19 de fevereiro de 2016 e completado por despacho de medidas provisórias complementar de 14 de março de 2016, registado no Tribunal de Justiça em 22 de março de 2016, o presidente do tribunal de grande instance de Lyon (Tribunal de Primeira Instância de Lião) decidiu, assim, submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«A recusa de entrega de um router Rede Privada Virtual dos Advogados (RPVA) a um advogado devidamente inscrito na Ordem dos Advogados de um Estado‑Membro, onde pretende exercer a profissão de advogado em regime de livre prestação de serviços é contrária ao artigo 4.° da Diretiva 77/249 por constituir uma medida discriminatória suscetível de criar entraves ao exercício da profissão em regime de livre prestação de serviços nos casos em que a lei não impõe esse advogado ‘que atua de concerto’?»

29.      Esta questão contém uma afirmação que não corresponde à situação do requerente no processo principal, uma vez que prevê a situação de um advogado «inscrito na Ordem dos Advogados de um Estado‑Membro, onde pretende exercer a profissão de advogado em regime de livre prestação de serviços», o que não é o caso de J.‑P. Lahorgue.

30.      Além disso, esta formulação altera a proposta de questão que o próprio formulou. Ora, embora o órgão jurisdicional de reenvio não esteja vinculado pelas sugestões das partes a este respeito (5), resulta do pedido de decisão prejudicial que, no caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio entendeu submeter «a questão prejudicial sugerida pelo requerente» (6).

31.      Uma vez que esta proposta de questão não contém qualquer contradição nem imprecisão e está em conformidade com a situação factual do requerente no processo principal, entendo que deve considerar‑se a questão tal como é enunciada no n.° 1 do pedido de decisão prejudicial, em vez da que consta do dispositivo:

«A recusa de entrega de um router Rede Privada Virtual dos Advogados (RPVA) a um advogado devidamente inscrito na Ordem dos Advogados de um Estado‑Membro, pelo simples facto de não estar inscrito na Ordem dos Advogados do outro Estado‑Membro, onde pretende exercer a profissão de advogado em regime de livre prestação de serviços é contrária ao artigo 4.° da Diretiva 77/249 por constituir uma medida discriminatória suscetível de criar entraves ao exercício da profissão em regime de livre prestação de serviços nos casos em que a lei não impõe [o] advogado ‘que atua de concerto’?»

32.      O CNB, o Governo francês e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas. Além disso, apresentaram observações orais na audiência que se realizou em 11 de janeiro de 2017.

33.      J.‑P. Lahorgue e a Ordem dos Advogados de Lião não apresentaram observações escritas. Todavia, apresentaram os seus argumentos nessa audiência.

VI.    Análise

A.      Jurisprudência relativa à livre prestação de serviços dos advogados

34.      Conforme recordado na introdução das presentes conclusões, a questão da livre prestação de serviços pelos advogados e os seus potenciais entraves não é nova. Mesmo antes da adoção da Diretiva 77/249, o Tribunal de Justiça já teve oportunidade de confirmar, num intervalo de seis meses, a aplicabilidade das disposições do Tratado relativas à liberdade de estabelecimento e à livre prestação de serviços aos advogados (7).

35.      Por conseguinte, não é estranho que os princípios enunciados aquando da interpretação destas disposições do Tratado tenham sido aplicados às prestações de serviços próprias da profissão de advogado.

36.      Assim, o artigo 56.° TFUE exige não só a eliminação de qualquer discriminação contra o prestador de serviços estabelecido noutro Estado‑Membro em função da sua nacionalidade, mas também a supressão de qualquer restrição, ainda que indistintamente aplicada aos prestadores nacionais e aos de outros Estados‑Membros, quando seja suscetível de impedir, dificultar ou tornar menos atrativas as atividades do prestador estabelecido noutro Estado‑Membro, onde presta legalmente serviços análogos (8).

37.      Por outras palavras, o artigo 56.° TFUE opõe‑se à aplicação de qualquer legislação nacional que tenha como efeito tornar a prestação de serviços entre Estados‑Membros mais difícil do que a prestação de serviços puramente interna a um Estado‑Membro (9).

38.      Todavia, o Tribunal de Justiça confirmou que, em conformidade com jurisprudência clássica na matéria, as medidas nacionais suscetíveis de dificultar ou de tornar menos atrativo o exercício das liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado eram autorizadas desde que estivessem preenchidas as quatro condições seguintes:

–        aplicarem‑se de modo não discriminatório,

–        justificarem‑se por razões imperiosas de interesse geral,

–        serem adequadas para garantir a realização do objetivo que prosseguem, e

–        não ultrapassarem o que é necessário para atingir esse objetivo (10).

B.      Aplicação dos princípios ao caso em apreço

1.      Observações preliminares sobre a limitação do litígio à hipótese prevista pelo órgão jurisdicional de reenvio e sobre o quadro jurídico

a)      Quanto à limitação do litígio aos processos em que a representação por um advogado não é obrigatória

39.      A questão que se coloca no processo principal consiste em saber se o artigo 4.° da Diretiva 77/249 se opõe a que um Estado‑Membro reserve aos advogados inscritos numa Ordem dos Advogados deste Estado a entrega de meios técnicos que permitam a comunicação eletrónica dos atos processuais aos órgãos jurisdicionais do referido Estado‑Membro.

40.      Parece, resultar do pedido de decisão prejudicial, bem como das observações escritas e orais apresentadas ao Tribunal de Justiça, que as regras processuais aplicáveis aos processos penais e sociais não exigem que as partes sejam representadas por um advogado, nem, por conseguinte, o recurso a um advogado que atua de concerto da Ordem dos Advogados do foro da jurisdição competente. Todavia, afigura‑se que o órgão jurisdicional de reenvio parte da premissa de que o facto de o advogado estabelecido noutro Estado‑Membro não dispor de um router RPVA o obriga, na realidade, a recorrer a um tal advogado.

41.      Segundo o Governo francês, a questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio apenas seria relevante nestes processos e não nos processos em que a representação é obrigatória. Com efeito, neste último tipo de processos, tanto os advogados estabelecidos em França (e inscritos numa Ordem diferente da do foro do órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se), como os advogados estabelecidos noutro Estado‑Membro devem atuar de concerto com um advogado autorizado a exercer a sua atividade no referido órgão jurisdicional. Ora, este é o único que pode necessitar de um router RPVA.

42.      Em contrapartida, a Comissão considera que a resposta à questão da compatibilidade da obrigação de inscrição na Ordem dos Advogados local para beneficiar da RPVA com o artigo 4.° da Diretiva 77/249 é independente do tipo de processo em causa (civil, penal ou social).

43.      Uma vez que o órgão jurisdicional de reenvio limitou a sua descrição do quadro jurídico e factual apenas à hipótese dos processos em que a representação das partes por um advogado não é obrigatória, considero que não compete ao Tribunal de Justiça prever na sua resposta uma situação sobre a qual não foi interrogado (11).

b)      Quanto ao quadro jurídico

44.      Para poder compreender corretamente a questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio e responder‑lhe de forma útil, o Tribunal de Justiça enviou‑lhe um pedido de esclarecimentos em 12 de outubro de 2016, em que solicitava que confirmasse, até 21 de novembro de 2016, que, na hipótese dos processos a que se referia (ou seja, os processos penais e sociais), o direito francês autorizava a comunicação dos atos processuais por via postal.

45.      Resulta da resposta do órgão jurisdicional de reenvio de 14 de dezembro de 2016, entrada no Tribunal de Justiça no dia 23 do mesmo mês, e das explicações complementares fornecidas pelo representante do Governo francês na audiência de 11 de janeiro de 2017 que a comunicação obrigatória por via eletrónica está, em princípio, limitada aos processos de recurso interpostos nos órgãos jurisdicionais em que a representação por um advogado é obrigatória.

46.      Todavia, o recurso à comunicação por via eletrónica foi tornado possível — mas não obrigatório — noutras três hipóteses em que a representação por um advogado é facultativa: em determinados processos nos tribunais de primeira instância (12), nos processos nos tribunais de segunda instância em que a representação por um advogado é facultativa (13), e nos processos nos tribunais de comércio (14).

47.      Em qualquer caso, independentemente do processo em que comunicação eletrónica é autorizada, o acesso a este meio de comunicação está limitado aos advogados da circunscrição territorial do órgão jurisdicional em causa. Quanto aos outros advogados, entre os quais os advogados estabelecidos noutro Estado‑Membro, as únicas comunicações autorizadas são as apresentadas na Secretaria ou por via postal.

2.      Quanto à existência de uma restrição

48.      Resulta do quadro jurídico assim definido que o recurso à comunicação eletrónica é autorizado em determinados processos em que a representação por um advogado não é obrigatória, ou seja, nos processos a que se refere o pedido de decisão prejudicial (15).

49.      Uma vez que esta possibilidade está subordinada ao acesso à RPVA, não restam dúvidas de que a recusa de entrega do router RPVA aos advogados não inscritos numa Ordem dos Advogados francesa é suscetível de constituir uma restrição à livre prestação de serviços.

50.      Com efeito, como constata o CNB, esta recusa pode dificultar ou tornar menos atrativo o exercício da livre prestação de serviços pelos advogados não inscritos numa Ordem dos Advogados francesa, dado que simplesmente não podem aceder a serviço de desmaterialização dos processos, a não ser que solicitem sistematicamente a assistência de um advogado inscrito numa Ordem dos Advogados francesa que disponha de um router RPVA (16).

51.      Ora, uma legislação suscetível de tornar menos atrativa ou mais difícil a prestação transfronteiriça dos serviços de advogados constitui uma restrição proibida pelo artigo 56.° TFUE e pelo artigo 4.° da Diretiva 77/249 (17).

3.      Quanto à existência de uma justificação

52.      Em conformidade com a jurisprudência constante recordada anteriormente, uma restrição «pode ser justificada quando responder a razões [imperiosas] de interesse geral, desde que seja adequada a garantir a realização do objetivo que prossegue e não [vá além do] necessário para o atingir» (18).

a)      Quanto à existência de razões [imperiosas] de interesse geral

53.      O CNB e o Governo francês invocam o princípio da boa administração da justiça como razão imperiosa de interesse geral suscetível de justificar a recusa de entrega um router RPVA aos advogados não inscritos numa Ordem dos Advogados francesa. A esta primeira justificação, o Governo francês acrescenta a proteção do destinatário final dos serviços jurídicos.

54.      Seguramente «a proteção dos consumidores, nomeadamente dos destinatários de serviços judiciais prestados por operadores judiciais, por um lado, e a boa administração da justiça, por outro, são objetivos que podem ser considerados razões imperiosas de interesse geral, suscetíveis de justificar uma restrição à livre prestação de serviços […]» (19).

55.      Ora, a proteção do particular, ou seja o «consumidor final dos serviços jurídicos», e a boa administração da justiça estão necessariamente ligadas às exigências de controlo e de responsabilidade do prestador de serviço (20).

56.      A este respeito, cabe recordar que, apesar das diferenças que podem existir entre os Estados‑Membros, existe uma conceção comum do papel do advogado na ordem jurídica da União: a de um colaborador da justiça chamado a prestar, com toda a independência e no interesse superior da mesma, a assistência legal de que o cliente necessita (21). Esta proteção tem como contrapartida a disciplina profissional imposta e controlada no interesse geral (22).

57.      Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, tal conceção corresponde à tradição jurídica comum aos Estados‑Membros. Encontra‑se igualmente na ordem jurídica da União, tal como resulta das disposições do artigo 19.° do Estatuto do Tribunal de Justiça (23) e, mais precisamente, do seu quarto parágrafo, segundo o qual «[s]ó um advogado autorizado a exercer nos órgãos jurisdicionais de um Estado‑Membro ou de outro Estado parte no Acordo sobre o Espaço Económico Europeu pode representar ou assistir uma parte no Tribunal».

58.      Nesta perspetiva, o próprio Tribunal de Justiça exige que os advogados apresentem um documento de legitimação comprovativo de que estão autorizados a exercer nos órgãos jurisdicionais de um Estado‑Membro ou de outro Estado parte no Acordo EEE para poderem representar uma parte no âmbito de um recurso direto (24) assim como para beneficiarem dos privilégios, imunidades e direitos atribuídos pelo Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça aos agentes, consultores e advogados (25). Por último, a mesma prova é exigida para poderem utilizar a aplicação informática e‑curia que permite a apresentação e a notificação de atos processuais por via eletrónica (26).

59.      A impossibilidade de o advogado não inscrito numa Ordem do Advogados francesa obter um router RPVA explica‑se por preocupações semelhantes: a obrigação de garantir a fiabilidade da identificação dos advogados partes na comunicação eletrónica, nomeadamente, a confidencialidade das comunicações (27). Com efeito, nos termos do artigo 9.° do Decreto de 7 de abril de 2009, «[a] segurança da ligação dos advogados à RPVA é garantida por um dispositivo de identificação. Este dispositivo baseia‑se num serviço de certificação que garante a autenticação da qualidade de advogado pessoa singular».

60.      Neste sentido, o router RPVA e as modalidades relacionadas com a sua concessão contribuem para a boa administração da justiça e para a proteção do destinatário final do serviço jurídico.

b)      Quanto à idoneidade das medidas controvertidas para alcançar o objetivo reconhecido

61.      Além disso, estes meios — ou seja, o router RPVA e as modalidades relacionadas com a sua concessão — aparecem adequados para garantir estes objetivos na medida em que são igualmente as Ordens dos Advogados locais que têm a responsabilidade de inscrever os advogados no registo dos advogados, e de proceder à sua atualização e que a identificação do advogado que pretende ligar‑se à RPVA é efetuada através de um certificado eletrónico pessoal ligado à lista nacional dos advogados, atualizada automaticamente através de sincronização diária com as listas dos advogados de todas as Ordens dos Advogados francesas.

62.      Por conseguinte, o sistema permite que apenas os advogados que cumprem os requisitos necessários para serem autorizados a exercer a profissão possam ligar‑se à RPVA.

c)      Quanto à proporcionalidade das medidas controvertidas

63.      Em contrapartida, invocar a inexistência de uma lista dos advogados ao nível da União Europeia para justificar a recusa pura e simples de entrega de um router RPVA aos advogados não inscritos numa Ordem francesa parece‑me ir além do necessário para autenticar a qualidade de advogado e, consequentemente, garantir a proteção dos destinatários dos serviços jurídicos e a boa administração da justiça no âmbito dos processos em que a representação não é obrigatória.

64.      Com efeito, para responder à exigência de proporcionalidade, a medida apreciada não deve ir além do necessário para alcançar o objetivo legítimo prosseguido. Por outras palavras, a autoridade normativa deve escolher entre as diferentes opções possíveis aquela que é menos lesiva para o direito ou a liberdade em causa.

65.      Ora, embora seja inquestionável que a prova da identidade e da qualidade de advogado pode ser exigida como requisito prévio para a concessão de um router RPVA, a verificação diária desta qualidade afigura‑se excessiva uma vez que torna, apenas por motivos técnicos, impossível a utilização de um meio moderno, rápido e seguro de comunicação (28).

66.      A proibição que daí decorre é ainda mais desproporcionada na medida em que tem como consequência que a única possibilidade de comunicar com a Secretaria dos órgãos jurisdicionais envolvidos é a via postal. Tal forma de atuar não me parece coadunar‑se com os métodos de trabalho utilizados neste início de século XXI.

67.      Além disso, observo que, nesta última hipótese, a preocupação de assegurar uma boa administração da justiça e de garantir a proteção dos destinatários dos serviços jurídicos afigura‑se menos imperiosa, uma vez que a verificação da qualidade de advogado não parece ser exigida de forma sistemática e constante em caso de utilização da via postal.

68.      Nestas circunstâncias, o equilíbrio entre, por um lado, a livre prestação de serviços do advogado num mundo moderno e, por outro, a proteção dos destinatários dos serviços jurídicos e a boa administração da justiça poderia ser alcançado pela exigência de renovação da prova da qualidade de advogado periodicamente ou por ocasião de cada novo processo, por exemplo.

69.      É certo que não é possível excluir que se a França optasse por alargar o recurso ao advogado que atua de concerto aos processos em que a representação não é obrigatória (possibilidade prevista no artigo 5.° da Diretiva 77/249), a proibição de o advogado em regime de livre prestação de serviços utilizar um router RPVA poderia ser justificada (29).

70.      Todavia, não há dúvida de que a própria pertinência deste modo de operar, concebido há mais de 40 anos, deve ser reavaliada à luz da prática moderna da profissão de advogado e das atuais exigências do particular, sem contudo sacrificar as garantias necessárias para a proteção deste último. Não obstante, tal exame excederia as funções do juiz pelo que, se for caso disso, é ao legislador que compete levá‑lo a cabo.

VII. Conclusão

71.      A recusa de entrega de um router RPVA a um advogado devidamente inscrito na Ordem dos Advogados de um Estado‑Membro apenas porque não está inscrito na Ordem dos Advogados do Estado‑Membro em que a RPVA está implementada constitui uma restrição à livre prestação de serviços.

72.      É certo que esta recusa se explica pela necessidade de assegurar a boa administração da justiça e a proteção do particular, destinatário final do serviço jurídico, garantindo a autenticação da qualidade de advogado. Todavia, tal medida vai além do necessário para alcançar os objetivos referidos.

73.      Por conseguinte, face ao exposto, proponho que o Tribunal de Justiça responda do seguinte modo à questão prejudicial submetida pelo presidente do tribunal de grande instance de Lyon (Tribunal de Primeira Instância de Lião, França):

«A recusa de entrega de um router de ligação à rede privada virtual dos advogados a um advogado devidamente inscrito na Ordem dos Advogados de um Estado‑Membro, pelo simples facto de não estar inscrito na Ordem dos Advogados do outro Estado‑Membro, onde pretende exercer a profissão de advogado em regime de livre prestação de serviços, viola o artigo 4.° da Diretiva 77/249/CEE do Conselho, de 22 de março de 1977, tendente a facilitar o exercício efetivo da livre prestação de serviços pelos advogados.»


1      Língua original: francês.


2      JO 1977, L 78, p. 17; EE 06 F1 p. 224.


3      JORF n.° 86, de 11 de abril de 2009, p. 6365.


4      V. p. 15 das observações do CNB. Esta convenção foi prorrogada duas vezes antes de ser substituída por uma nova convenção celebrada em 24 de junho de 2016.


5      V., neste sentido, acórdão de 18 de julho de 2013, Consiglio Nazionale dei Geologi (C‑136/12, EU:C:2013:489, n.os 29 a 31).


6      V. p. 5 do pedido de decisão prejudicial.


7      V. acórdãos de 21 de junho de 1974, Reyners (2/74, EU:C:1974:68), e de 3 de dezembro de 1974, van Binsbergen (33/74, EU:C:1974:131).


8      V., neste sentido, acórdão de 5 de dezembro de 2006, Cipolla e o. (C‑94/04 e C‑202/04, EU:C:2006:758, n.° 56).


9      V., neste sentido, acórdão de 5 de dezembro de 2006, Cipolla e o. (C‑94/04 e C‑202/04, EU:C:2006:758, n.° 57).


10      V., neste sentido, acórdão de 30 de novembro de 1995, Gebhard (C‑55/94, EU:C:1995:411, n.° 37).


11      Quanto ao alcance de uma questão prejudicial e ao papel do Tribunal de Justiça, v., nomeadamente, acórdão de 16 de outubro de 2014, Welmory (C‑605/12, EU:C:2014:2298, n.os 33 a 35).


12      V. Decreto de 7 de abril de 2009.


13      V. arrêté du 5 mai 2010 relatif à la communication par voie électronique dans la procédure sans représentation obligatoire devant les cours d’appel (Decreto de 5 de maio de 2010, relativo à comunicação por via eletrónica no processo sem representação obrigatória nos tribunais de segunda instância) (JORF de 15 de maio de 2010, p. 9041). Quanto a estes processos, afigura‑se que, após a entrada em vigor da Convenção de 24 de junho de 2016 entre o Ministério da Justiça e o CNB, em 1 de agosto de 2016, o recurso à comunicação eletrónica passou a ser obrigatório para os advogados que dispõem do acesso ao RPVA.


14      V. arrêté du 21 juin 2013 portant communication par voie électronique entre les avocats et entre les avocats et la juridiction dans les procédures devant les tribunaux de commerce (Decreto de 21 de junho de 2013, relativo à comunicação por via eletrónica entre os advogados e entre os advogados e os órgãos jurisdicionais nos processos nos tribunais de comércio) (JORF de 26 de junho de 2013, p. 10526).


15      V. n.° 43 das presentes conclusões.


16      V. p. 14 das observações escritas do CNB.


17      V., neste sentido, acórdão de 11 de dezembro de 2003, AMOK (C‑289/02, EU:C:2003:669).


18      Acórdão de 5 de dezembro de 2006, Cipolla e o. (C‑94/04 e C‑202/04, EU:C:2006:758, n.° 61).


19      Acórdão de 5 de dezembro de 2006, Cipolla e o. (C‑94/04 e C‑202/04, EU:C:2006:758, n.° 64).


20      V., neste sentido, acórdãos de 3 de dezembro de 1974, van Binsbergen (33/74, EU:C:1974:131, n.° 12); de 12 de dezembro de 1996, Reisebüro Broede (C‑3/95, EU:C:1996:487, n.° 38); e de 19 de fevereiro de 2002, Wouters e o. (C‑309/99, EU:C:2002:98, n.° 97).


21      V., neste sentido, acórdãos de 18 de maio de 1982, AM & S Europe/Comissão (155/79, EU:C:1982:157, n.° 24); de 14 de setembro de 2010, Akzo Nobel Chemicals e Akcros Chemicals/Comissão e o. (C‑550/07 P, EU:C:2010:512, n.° 42); de 6 de setembro de 2012, Prezes Urzędu Komunikacji Elektronicznej/Comissão (C‑422/11 P e C‑423/11 P, EU:C:2012:553, n.° 23); e de 12 de junho de 2014, Peftiev (C‑314/13, EU:C:2014:1645, n.° 28).


22      V., neste sentido, acórdãos de 18 de maio de 1982, AM & S Europe/Comissão (155/79, EU:C:1982:157, n.° 24); de 14 de setembro de 2010, Akzo Nobel Chemicals e Akcros Chemicals/Comissão e o. (C‑550/07 P, EU:C:2010:512, n.° 42); e de 6 de setembro de 2012, Prezes Urzędu Komunikacji Elektronicznej/Comissão (C‑422/11 P e C‑423/11 P, EU:C:2012:553, n.° 24).


23      V., neste sentido, acórdãos de 18 de maio de 1982, AM & S Europe/Comissão (155/79, EU:C:1982:157, n.° 24); de 14 de setembro de 2010, Akzo Nobel Chemicals e Akcros Chemicals/Comissão e o. (C‑550/07 P, EU:C:2010:512, n.° 42); e de 6 de setembro de 2012, Prezes Urzędu Komunikacji Elektronicznej/Comissão (C‑422/11 P e C‑423/11 P, EU:C:2012:553, n.° 23).


24      Artigo 119.°, n.° 3, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.


25      Artigo 44.°, n.° 1, alínea b), do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.


26      V. documentos a juntar obrigatoriamente ao pedido de criação de uma conta de acesso na aplicação e‑curia no endereço seguinte: https://curia.europa.eu/e‑Curia/access‑request‑step1.faces?conversationContext=2.


27      V. artigo III. A, n.° 2, da Convenção de 16 de junho de 2010 entre o Ministério da Justiça e o CNB.


28      Segundo as explicações do representante do Governo francês, tais obstáculos técnicos deveriam, aliás, desaparecer em breve com a execução de um projeto de identificação dos advogados europeus sob a epígrafe «Find‑A‑Lawyer 2» implementado pelo CCBE e a Comissão.


29      Sem prejuízo da interpretação dada a esta possibilidade pelo Tribunal de Justiça no acórdão de 25 de fevereiro de 1988, Comissão/Alemanha (427/85, EU:C:1988:98).