CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

PEDRO CRUZ VILLALÓN

apresentadas em 21 de fevereiro de 2013 (1)

Processo C‑648/11

MA

BT

DA

contra

Secretary of State for the Home Department

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela Court of Appeal (England & Wales) (Civil Division) (Reino Unido)]

«Regulamento (CE) n.° 343/2003 (Dublin II) ― Determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de asilo apresentado por menores não acompanhados, nacionais de um Estado terceiro ― Pluralidade de pedidos de asilo ― Interesse superior do menor»





1.        No contexto de um processo de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise dos pedidos de asilo apresentados por três nacionais de Estados terceiros que, além de serem menores, não se encontram acompanhados nem têm familiares que se encontrem legalmente no território da União, a Court of Appeal submete ao Tribunal de Justiça uma questão, até agora inédita, relativa à interpretação do artigo 6.°, segundo parágrafo, do Regulamento n.° 343/2003 (2).

2.        Com efeito, os critérios previstos no Regulamento n.° 343/2003 para determinar o Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de asilo podem dar origem a pontos de intersecção que, como o presente caso demonstra, não se solucionam facilmente com recurso ao teor literal das previsões do próprio regulamento, quase se podendo afirmar que esta hipótese nem sequer foi prevista.

3.        Consciente das dificuldades interpretativas da questão submetida, que resultam claramente das posições contrárias das partes neste processo, irei propor uma interpretação sistemática do artigo 6.°, segundo parágrafo, do Regulamento n.° 343/2003, que tenha primacialmente em conta o interesse superior da criança (artigo 24.°, n.° 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, a seguir «Carta») e dos objetivos de clareza e celeridade pretendidos pelo regulamento para o processo de determinação do Estado responsável pela análise de um pedido de asilo.

I ―    Quadro legal

A ―    Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

4.        Nos termos do artigo 24.°, n.° 2, Carta, «[t]odos os atos relativos às crianças, quer praticados por entidades públicas, quer por instituições privadas, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança».

B ―    Regulamento n.° 343/2003

5.        O terceiro, quarto e décimo quinto considerandos do Regulamento n.° 343/2003 declaram o seguinte:

«(3)      As conclusões do Conselho de Tampere precisaram […] que [o] sistema de asilo europeu comum deve incluir, a curto prazo, um método claro e operacional para determinar o Estado responsável pela análise de um pedido de asilo.

(4)      Esse método deve basear‑se em critérios objetivos e equitativos, tanto para os Estados‑Membros como para as pessoas em causa. Deve, nomeadamente, permitir uma determinação rápida do Estado‑Membro responsável, por forma a garantir um acesso efetivo aos procedimentos de determinação do estatuto de refugiado e a não comprometer o objetivo de celeridade no tratamento dos pedidos de asilo.

[…]

(15)      O presente regulamento respeita os direitos fundamentais e observa os princípios reconhecidos nomeadamente, pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Em particular, visa assegurar o pleno respeito do direito de asilo garantido pelo seu artigo 18.°»

6.        De acordo com o artigo 1.° do regulamento, este «estabelece os critérios e mecanismos para a determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de asilo apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro.»

7.        O artigo 2.° do regulamento contém as seguintes definições, relevantes para este processo, estabelecendo que, para os seus efeitos, se entende por:

«(c)      ‘Pedido de asilo’: o pedido apresentado por um nacional de um país terceiro que possa ser entendido como um pedido de proteção internacional a um Estado‑Membro, ao abrigo da Convenção de Genebra. […]

(d)      ‘Requerente’ ou ‘candidato a asilo’: o nacional de um país terceiro que apresentou um pedido de asilo que ainda não foi objeto de uma decisão definitiva;

[…]

(h)      ‘Menor não acompanhado’: pessoa solteira, menor de dezoito anos, que entre no território de um Estado‑Membro sem ser acompanhado por um adulto que por ele seja responsável, por força da lei ou do costume, e enquanto não for efetivamente tomado a cargo por esse adulto; estão incluídos os menores que ficam desacompanhados após a sua entrada no território do Estado‑Membro».

8.        Nos termos do artigo 3.° do mesmo regulamento:

«1.      Os Estados‑Membros analisarão todo o pedido de asilo apresentado por um nacional de um país terceiro a qualquer dos Estados‑Membros, quer na fronteira, quer no território do Estado‑Membro em causa. O pedido de asilo é analisado por um único Estado, que será aquele que os critérios enunciados no capítulo III designarem como responsável.

2.      Em derrogação do n.° 1, cada Estado‑Membro tem o direito de analisar um pedido de asilo que lhe seja apresentado por um nacional de um país terceiro, mesmo que essa análise não seja da sua competência por força dos critérios definidos no presente regulamento. Nesse caso, este Estado torna‑se o Estado responsável, na aceção do presente regulamento, e assume as obrigações inerentes a essa responsabilidade. Se for caso disso, informará o Estado‑Membro anteriormente responsável, aquele que conduz o processo de determinação do Estado responsável ou aquele que foi requerido para efeitos de tomada ou retomada a cargo.

[…]»

9.        De acordo com o n.° 1 do artigo 4.° do regulamento, «[o] processo de determinação do Estado‑Membro responsável […] tem início a partir do momento em que um pedido de asilo é apresentado pela primeira vez a um Estado‑Membro».

10.      No capítulo III (artigos 5.° a 14.°) do regulamento, intitulado «Hierarquia dos critérios», enunciam‑se os que são relevantes para determinar o «Estado‑Membro responsável» na aceção do artigo 3.°, n.° 1, acima transcrito:

Artigo 5.°:

«1.      Os critérios de determinação do Estado‑Membro responsável, aplicar‑se‑ão pela ordem em que são enunciados no presente capítulo.

2.      A determinação do Estado‑Membro responsável em aplicação dos referidos critérios é efetuada com base na situação existente no momento em que o candidato a asilo tiver apresentado pela primeira vez o seu pedido junto de um Estado‑Membro.»

Artigo 6.°:

«Se o requerente de asilo for um menor não acompanhado, o Estado‑Membro responsável pela análise do seu pedido será o Estado em que se encontrar legalmente um membro da família, desde que tal ocorra no interesse superior do menor.

Na ausência de um membro da família, é responsável pela análise do pedido o Estado‑Membro em que o menor apresentou o seu pedido de asilo.»

Artigo 13.°:

«Sempre que o Estado‑Membro responsável pela análise do pedido de asilo não possa ser designado com base nos critérios enumerados no presente regulamento, é responsável pela análise do pedido o primeiro Estado‑Membro em que este tenha sido apresentado.»

11.      O capítulo IV do regulamento, intitulado «Cláusula humanitária», contém um único preceito, o artigo 15.°, cujo n.° 3 prevê o seguinte:

«Se o candidato a asilo for um menor não acompanhado que tenha um ou mais familiares noutro Estado‑Membro que o possam tomar a cargo, os Estados‑Membros reuni‑los‑ão, se possível, desde que tal não contrarie o interesse superior do menor.»

C ―    Regulamento n.° 1560/2003

12.      O Regulamento (CE) n.° 1560/2003 da Comissão, de 2 de setembro de 2003, relativo às modalidades de aplicação do Regulamento n.° 343/2003 (3), dispõe, no seu artigo 12.°, o seguinte:

«1.      Quando a decisão de confiar um menor não acompanhado a um membro da sua família que não o seu pai, a sua mãe ou o seu tutor legal for suscetível de suscitar dificuldades específicas, nomeadamente quando o adulto em causa reside fora do território do Estado‑Membro em que o menor solicitou asilo, será facilitada a cooperação entre as autoridades competentes dos Estados‑Membros, em especial as autoridades ou os tribunais responsáveis pela proteção de menores, devendo ser tomadas as medidas necessárias para que estas autoridades possam pronunciar‑se com pleno conhecimento de causa sobre a capacidade de o(s) adulto(s) interessado(s) tomar(em) a seu cargo o menor em condições consentâneas com o interesse deste.

Para o efeito, são tomadas em consideração as possibilidades propiciadas no domínio da cooperação judiciária em matéria civil.

2.      O facto de a duração dos procedimentos relativos à colocação de um menor implicar que os prazos fixados nos n.os 1 e 6 do artigo 18.° e no n.° 4 do artigo 19.° do Regulamento (CE) n.° 343/2003, sejam excedidos não obsta forçosamente à prossecução do procedimento de determinação do Estado‑Membro responsável ou à execução da transferência.»

II ― Factos

13.      Os três processos aqui apensados são relativos a três menores, dois de nacionalidade eritreia (MA e BT) e um de nacionalidade iraquiana (e origem curda, DA).

14.      Uma vez que todos eles pediram asilo no Reino Unido, as autoridades britânicas chamaram a atenção para o facto de, em todos os casos, já anteriormente terem apresentado pedidos de asilo noutros Estados‑Membros: Itália (MA e BT) e Países Baixos (DA). Inicialmente, e em aplicação do previsto no artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 343/2003, foi decidida a transferência dos menores, respetivamente, para os indicados Estados‑Membros.

15.      No entanto, quer antes de essa transferência se efetuar (MA e DA), quer após ter sido efetuada (BT), as autoridades britânicas, no uso da faculdade prevista no artigo 3.°, n.° 2, do Regulamento n.° 343/2003, decidiram analisar elas próprias os pedidos de asilo. O que implicou que, no caso de BT, que tinha sido transferida para Itália, esta pôde regressar ao Reino Unido.

16.      MA e BT, tendo sido convidados a desistir dos recursos interpostos nos tribunais britânicos das decisões iniciais de transferência, recusaram‑se, ambos, a fazê‑lo. Pelo contrário, não consta que idêntico convite tenha sido feito no caso de DA.

17.      Por decisão de 21 de dezembro de 2010, a Administrative Court julgou improcedentes os diversos recursos interpostos pelos menores das decisões de transferência, concluindo pela aplicação ao caso do artigo 6.° do Regulamento n.° 343/2003.

18.      Interposto recurso na Court of Appeal (England & Wales) (Civil Division), esta decidiu submeter a presente questão prejudicial ao Tribunal de Justiça.

III ― Questão submetida

19.      A questão consiste numa única pergunta com o seguinte teor:

«No âmbito do Regulamento (CE) n.° 343/2003 do Conselho, de 18 de fevereiro de 2003, que estabelece os critérios e os mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de asilo apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro (JO L 50, p. 1), qual é o Estado‑Membro designado pelo artigo 6.°, segundo parágrafo, como responsável pelo exame do pedido de asilo quando o requerente de asilo seja um menor não acompanhado, que não tenha nenhum membro da sua família legalmente presente noutro Estado‑Membro e que tenha apresentado pedidos de asilo em mais de um Estado‑Membro?»

20.      Fundamentalmente, a dúvida da Court of Appeal consiste em saber se «o interesse superior do menor» ― que, nos termos do artigo 6.° do Regulamento n.° 343/2003, é determinante na indicação, como Estado responsável, daquele em que se encontrar legalmente um membro da sua família ― continua a ser o critério a aplicar quando não existe um familiar nessas circunstâncias. Sendo assim, o Estado responsável não teria que ser necessariamente aquele em que o menor apresentou o seu primeiro pedido de asilo. No entanto, em seu entender, o teor literal do segundo parágrafo do artigo 6.° do Regulamento n.° 343/2003 pode levar a pensar que o interesse do menor não deve ser tido em conta nesta segunda hipótese.

21.      Não obstante, ainda se poderia colocar a questão de saber se esse interesse pode ser considerado a título facultativo, dado que o artigo 3.°, n.° 2, do Regulamento n.° 343/2003 permite que cada Estado‑Membro analise um pedido de asilo que lhe seja apresentado por um nacional de um país terceiro, ainda que esta análise não seja da sua competência segundo os critérios estabelecidos no próprio regulamento. Assim sendo, o interesse do menor podia perfeitamente ser o critério tomado em consideração por esse Estado para tomar a seu cargo o pedido.

IV ― Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

22.      A questão prejudicial deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 19 de dezembro de 2011.

23.      Por despacho de 7 de fevereiro de 2012 foi indeferido o pedido de tramitação acelerada.

24.      Apresentaram observações escritas os recorrentes no processo principal, o Advise on Individual Rights in Europe (a seguir «AIRE Centre») na qualidade de interveniente nesse processo, os Governos belga, britânico, checo, grego, húngaro, neerlandês, sueco e suíço, bem como a Comissão.

25.      Na audiência, realizada em 5 de novembro de 2012, compareceram, apresentando oralmente as suas observações, os recorrentes principais, o AIRE Centre, os Governos britânico, neerlandês e sueco, bem como a Comissão.

V ―    Alegações

26.      O Governo belga considera, em primeiro lugar, que a questão submetida não é relevante para o processo principal, uma vez que o Reino Unido acabou por aceitar analisar os pedidos de asilo, de forma que a dúvida suscitada pela Court of Appeal apenas teria valor de um ponto de vista académico e doutrinal.

27.      Já no que respeita ao mérito da questão, os recorrentes principais, o AIRE Centre, o Governo grego e a Comissão concordam em que o artigo 6.°, segundo parágrafo, do Regulamento n.° 343/2003 deve ser interpretado no sentido de que, nas circunstâncias do caso, o Estado‑Membro responsável pela análise do pedido de asilo é aquele em que foi apresentado o último pedido, isto é, aquele onde se encontra o menor, desde, de qualquer modo, que tal ocorra no seu interesse superior.

28.      Esta interpretação apoia‑se, com maior ou menor ênfase, consoante os casos, em várias razões, que sintetizamos da seguinte forma.

29.      Em primeiro lugar, na opinião das referidas partes, da génese e da economia do Regulamento n.° 343/2003 decorre que o legislador quis proporcionar aos menores um tratamento diferente do dos adultos, não sendo relevante o facto de o princípio do interesse do menor apenas ser mencionado no primeiro parágrafo do artigo 6.°, uma vez que o artigo 24.°, n.° 2, Carta obriga os Estados‑Membros a respeitar este princípio em todo e qualquer caso.

30.      Em segundo lugar, alegam que o objetivo do acesso efetivo aos procedimentos e à proteção dos menores deve ter primazia sobre o da prevenção da apresentação de vários pedidos. Uma conclusão que, em seu entender, é corroborada pelo facto de os menores não acompanhados ocuparem o primeiro lugar na hierarquia dos critérios fixados nos artigos 6.° a 13.° do regulamento.

31.      Por outro lado, são de opinião que, se não se quiser fazer do segundo parágrafo do artigo 6.° uma disposição supérflua, é preciso que a sua interpretação acrescente algo relativamente à norma subsidiária do artigo 13.°

32.      Finalmente, alegam que tanto o teor literal do artigo 6.°, segundo parágrafo, como a própria economia do regulamento devem interpretar‑se no sentido de que a expressão «apresentou» deve ser entendida como «apresentou em último lugar» e não como «apresentou pela primeira vez», salientando‑se o facto de que quando o legislador se quis referir ao primeiro pedido, fê‑lo expressamente, como aconteceu no caso do artigo 5.°, n.° 2, do regulamento.

33.      Por seu lado, os Governos britânico, checo, húngaro, neerlandês, sueco e suíço, bem como, a título subsidiário, o Governo belga, entendem que o Estado‑Membro responsável é aquele em que foi apresentado o primeiro pedido de asilo.

34.      São várias, também, as razões invocadas por estes Estados, sendo possível resumi‑las do seguinte modo.

35.      Por um lado, salientam que, dada a importância atribuída pelo regulamento ao Estado‑Membro em que se apresenta o primeiro pedido, o legislador teria especificado qualquer hipótese em que o pedido relevante fosse o mais recente.

36.      Por outro lado, alegam que uma interpretação sistemática dos artigos 5.° e 6.° do regulamento confirmaria que ambas as disposições só podem ser referentes ao primeiro pedido de asilo. Além disso, impondo o regulamento, como decorre dos seus artigos 3.°, n.° 1, e 4.°, n.° 1, que se designe um único Estado responsável, o início do processo no momento da apresentação do primeiro pedido não é consentâneo com o facto de um pedido posterior apresentado noutro Estado‑Membro prevalecer sobre o primeiro.

37.      Por fim, no entender destes Estados, não há nada no regulamento que permita defender que este quis estabelecer uma exceção ao regime geral, para todos os menores não acompanhados, além da expressamente contemplada no primeiro parágrafo do artigo 6.° A proteção concedida aos menores referidos no segundo parágrafo do artigo 6.° consistiria na introdução de uma exceção ao princípio que está subjacente aos artigos 7.° a 14.° do regulamento, segundo os quais o Estado‑Membro responsável é aquele que tenha tido o papel mais importante no acesso do requerente ao território da União.

38.      Em conclusão, os referidos governos estão de acordo em que a interpretação que defendem facilita, tanto no interesse dos menores, como no dos Estados, o objetivo de estabelecer «um método claro e operacional para determinar o Estado responsável» e de «nomeadamente, permitir uma determinação rápida do Estado‑Membro responsável, por forma a garantir um acesso efetivo aos procedimentos de determinação do estatuto de refugiado e a não comprometer o objetivo de celeridade no tratamento dos pedidos de asilo». Pelo contrário, se o critério determinante fosse o lugar de apresentação do último pedido seria impossível determinar de forma objetiva e uniforme um único Estado‑Membro responsável, dando azo a uma espécie de «forum shopping» e incitando‑se os menores não acompanhados a deslocar‑se entre os Estados‑Membros apresentando pedidos sucessivos.

39.      Finalmente, os Governos belga, checo, húngaro, sueco e suíço salientam que, sem ser necessário distorcer o sentido do artigo 6.° do regulamento, os Estados‑Membros podem fazer uso da cláusula contida no seu artigo 3.°, n.° 2, cuja aplicação pode ser obrigatória em determinadas circunstâncias.

VI ― Apreciação

A ―    Quanto à admissibilidade da questão prejudicial

40.      Tal como acabei de referir, o Governo belga opõe‑se à admissão da presente questão por considerar que a mesma é meramente hipotética, dado que o Reino Unido já assumiu a qualidade de Estado‑Membro responsável nos termos do artigo 3.°, n.° 2, do Regulamento n.° 343/2003. Determinar agora se era ou não obrigado a assumir essa qualidade por força do disposto no artigo 6.° do mesmo regulamento é, para o Governo belga, uma questão com interesse académico ou doutrinal, mas irrelevante para a decisão do caso pendente na Court of Appeal, para cujos efeitos apenas importa que o Reino Unido tenha assumido a qualidade de Estado responsável que inicialmente recusou.

41.      Na minha opinião, a questão é admissível.

42.      É verdade que às decisões iniciais de transferência, adotadas pelo Governo britânico em aplicação do artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 343/2003, seguiram‑se outras decisões que, adotadas ao abrigo do artigo 3.°, n.° 2, do mesmo regulamento, deixavam sem efeito o inicialmente acordado. E a consequência foi a de que, finalmente, o Reino Unido assumiu a qualidade de Estado responsável para efeitos do Regulamento n.° 343/2003, tomando, assim, a seu cargo as obrigações decorrentes dessa responsabilidade.

43.      Do anteriormente exposto se infere que, de um ponto de vista material, se chegou ao mesmo resultado que se teria obtido com a aplicação do Regulamento n.° 343/2003 se o seu artigo 3.°, n.° 1, tivesse sido interpretado de uma forma diferente da prevista pelo Governo britânico neste processo e sobre cuja compatibilidade com o direito da União se questiona agora o Tribunal de Justiça. Resumindo, o resultado a que se chegou nestes caso foi fruto de uma decisão que, sendo discricionária e livre porque baseada na opção facultada pelo artigo 3.°, n.° 2, do Regulamento n.° 343/2003, seria imperativa se decorresse do previsto no artigo 6.° do mesmo regulamento.

44.      A questão que se coloca neste processo é, justamente, a de saber se o direito da União exige uma interpretação do Regulamento n.° 343/2003 da qual resulte que a decisão tomada pelo Reino Unido não era facultativa mas sim obrigatória. O facto de, neste caso, a solução encontrada ser materialmente idêntica à que se teria adotado se se entendesse que o Reino Unido não podia adotar uma solução diferente não retira o interesse da questão de mérito em análise, pois o seu objeto é precisamente a correção jurídica do fundamento legal da decisão das autoridades britânicas, para além das suas meras consequências práticas ou materiais.

45.      De qualquer forma e seja como for, o facto de o Reino Unido ter acabado por se tornar no Estado responsável para efeitos do Regulamento n.° 343/2003 não implica que a questão submetida pelo tribunal a quo tenha agora apenas um interesse doutrinal ou académico, uma vez que se encontram ainda pendentes na Court of Appeal os recursos das decisões governamentais que inicialmente declinaram a responsabilidade do Reino Unido para analisar os pedidos de asilo controvertidos. Independentemente do provimento destes recursos não poder seguramente prejudicar os efeitos das decisões tomadas posteriormente, por força do artigo 3.°, n.° 2, do regulamento, o certo é que a apreciação da correção jurídica das primeiras decisões é imprescindível para decidir o pedido de indemnização apresentado por um dos menores ― designadamente aquele que chegou a ser transferido para Itália (BT) ― com vista à reparação dos danos e prejuízos sofridos e delas decorrentes.

46.      Na medida em que, efetivamente, ainda hoje se mantém esse pedido de indemnização, como refere a Court of Appeal, não estamos perante uma questão eventual ou hipotética, como acontecia no caso do despacho de 10 de junho de 2011, Mohammad Imran (4), mas perante «a necessidade inerente à resolução efetiva de um litígio» (5).

B ―    Quanto ao mérito

47.      A Court of Appeal pergunta ao Tribunal de Justiça qual é, de acordo com o artigo 6.°, segundo parágrafo, do Regulamento n.° 343/2003, e no caso de sucessivos pedidos de asilo apresentados por uma mesma pessoa, o Estado‑Membro responsável pela respetiva análise quando o requerente é um menor não acompanhado, nacional de um Estado terceiro, que não tem nenhum membro da sua família a residir legalmente num Estado‑Membro.

48.      Com efeito, nos casos pendentes no tribunal nacional verificou‑se a existência de dois pedidos de asilo apresentados sucessivamente por cada um dos três menores implicados: um primeiro pedido apresentado num Estado‑Membro que não o Reino Unido, seguido de outro apresentado neste último.

49.      Colocando‑se a questão desta forma, convém partir do previsto no artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 343/2003, o qual contém duas declarações básicas. Por um lado, dispõe que o pedido de asilo «é analisado por um único Estado». Por outro, estabelece que esse Estado‑Membro «será aquele que os critérios enunciados no capítulo III [deste regulamento] designarem como responsável». Quer com isto dizer‑se que o problema que aqui se suscita é, concretamente, o de determinar, antes da apreciação do pedido quanto ao mérito, qual é o Estado‑Membro que deve analisar o pedido de asilo.

50.      Ao anteriormente exposto deve acrescentar‑se que o n.° 2 do artigo 3.° do Regulamento n.° 343/2003 introduz uma derrogação considerável ao previsto no n.° 1, que o Tribunal de Justiça já teve oportunidade de apreciar e que, como vimos, foi aplicada nos casos do processo a quo. Com efeito, por força do artigo 3.°, n.° 2, o disposto no artigo 3.°, n.° 1 só funciona se o Estado‑Membro em que foi apresentado um pedido de asilo não fizer uso da designada «cláusula de soberania» prevista no artigo 3.°, n.° 2, do Regulamento n.° 343/2003, nos termos da qual «cada Estado‑Membro tem o direito de analisar um pedido de asilo que lhe seja apresentado por um nacional de um país terceiro, mesmo que essa análise não seja da sua competência por força dos critérios definidos no presente regulamento» (6).

51.      O exercício dessa faculdade soberana converte‑o, segundo a mesma disposição, «[n]o Estado responsável, na aceção do presente regulamento», assumindo «as obrigações inerentes a essa responsabilidade». E assim é mesmo que exista um «Estado‑Membro anteriormente responsável» ou um Estado‑Membro «que condu[za] o processo de determinação do Estado responsável» ou, por fim, um Estado‑Membro «que [tenha sido] requerido para efeitos de tomada ou retomada a cargo». Perante estes Estados‑Membros, aquele que decide assumir a qualidade de Estado‑Membro responsável ao abrigo da «cláusula de soberania» não tem qualquer outra obrigação que não seja a de os informar da sua decisão, prima facie discricionária, embora, como se sabe, a jurisprudência decorrente do acórdão NS, já referido (7), tenha introduzido um princípio de limitação à liberdade dos Estados‑Membros se se verificar um risco grave de violação sistémica dos direitos fundamentais em situações que não são, todavia, as do caso aqui em análise.

52.      No entanto, deve salientar‑se, desde já, que o problema interpretativo suscitado em torno do artigo 6.°, segundo parágrafo, do Regulamento n.° 343/2003 não pode, em meu entender, reconduzir‑se ou ser transferido para o âmbito do artigo 3.°, n.° 2, do mesmo regulamento no sentido propugnado pelo acórdão NS, já referido. Aqui não nos encontramos perante um risco muito provável de violação sistémica de direitos fundamentais subsequente ao retorno da pessoa em causa, mas sim, de uma forma muito mais genérica, perante uma questão interpretativa fulcral do artigo 6.°, ou seja, a norma aplicável à determinação do Estado‑Membro que deve analisar o pedido de asilo apresentado por um menor.

53.      Para além disso, e subsidiariamente, no caso de não ser possível designar o Estado‑Membro responsável «com base nos critérios enumerados no presente regulamento, é responsável pela análise do pedido o primeiro Estado‑Membro em que este tenha sido apresentado» (artigo 13.° do Regulamento n.° 343/2003).

54.      Pode dizer‑se que a economia do regulamento se articula, assim, entre uma «cláusula de soberania», por um lado, e uma cláusula subsidiária, por outro. Entre ambas encontra‑se uma diversidade de eventuais soluções, arbitradas a partir de um dos critérios de determinação especificamente previstos no capítulo III do próprio regulamento.

55.      Convém salientar que, por exigência do artigo 5.°, n.° 1, do regulamento, tais critérios devem ser aplicados pela ordem em que se encontram no capítulo III, como refere expressamente o respetivo título («Hierarquia de critérios»).

56.      Por outro lado, os «critérios» em questão devem ser aplicados «com base na situação existente no momento em que o candidato a asilo tiver apresentado pela primeira vez (8) o seu pedido junto de um Estado‑Membro» (artigo 5.°, n.° 2, do regulamento). O primeiro pedido de asilo é, assim, determinante para identificar a situação relevante para efeitos de aplicação dos critérios do regulamento. Mas não para designar o primeiro Estado‑Membro que tenha recebido um pedido como o Estado que deve ser considerado responsável pela respetiva análise. Esta disposição limita‑se a estabelecer as condições em que devem ser aplicados os critérios do capítulo III, não se tratando aqui de antecipar o resultado decorrente da aplicação dos mesmos.

57.      O primeiro dos «critérios» estabelecidos no capítulo III é o previsto no artigo 6.°, relativo, na verdade, a uma situação concreta, a de o requerente ser, resumidamente, um menor não acompanhado. O critério aplicável à referida situação, que analisarei imediatamente a seguir, deve ser também o primeiro a ser aplicado, de acordo com o previsto no artigo 5.°, n.° 1, como já vimos.

58.      Convém começar por dizer que, sendo a única disposição que se refere especificamente a menores não acompanhados, entendo que é nos critérios contidos no artigo 6.° que se devem encontrar também os únicos aplicáveis à determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido apresentado por menores sem acompanhantes. Com efeito, os critérios estabelecidos nos restantes artigos do capítulo III visam sempre situações de facto ou jurídicas nas quais se pode encontrar qualquer requerente de asilo. Também, por conseguinte, os menores. Ora, se para os menores não acompanhados se prevê um critério específico no artigo 6.°, considero que, independentemente do facto de esses menores também se poderem encontrar em situações previstas noutras disposições, a única situação relevante, para os seus efeitos, é, justamente, a que os define como «menores não acompanhados». Como salientou na audiência o mandatário dos recorrentes no processo principal, o artigo 6.° do regulamento constitui uma espécie de «código especial» para os menores não acompanhados, nele se devendo encontrar as respostas a todas as situações em que se possam encontrar.

59.      Uma grande parte do debate travado entre as partes neste processo centrou‑se na questão de saber se o pedido mencionado no segundo parágrafo do artigo 6.° é o primeiro ou o último dos eventualmente apresentados pelo menor não acompanhado. No entanto, a minha opinião é de que a disposição se refere a um só pedido, sem especificar ou prever, de qualquer modo, a hipótese da apresentação de mais do que um pedido. É o que decorre tanto do teor literal da norma [«([…]) é responsável pela análise do pedido o Estado‑Membro em que o menor apresentou o seu pedido de asilo»] (9), como da sua própria economia.

60.      Com efeito, o artigo 6.° prevê, antes de mais, a situação mais simples: um menor não acompanhado que apresenta um pedido de asilo num Estado‑Membro. Esse Estado‑Membro, em aplicação do Regulamento n.° 343/2003, deve determinar qual o Estado‑Membro responsável pela análise desse pedido. Não obstante a eventual aplicação da «cláusula de soberania» (artigo 3.°, n.° 2, do regulamento), o Estado que tenha recebido o pedido deve verificar se o menor tem algum membro da sua família a residir legalmente em algum Estado‑Membro. Se assim for, em aplicação do primeiro parágrafo do artigo 6.°, o Estado‑Membro responsável pela análise do pedido será aquele em que reside o familiar do menor requerente, embora esta previsão se faça acompanhar de uma ressalva importante, que consiste no facto de isto ser assim «desde que […] ocorra no [seu] interesse superior». Caso contrário, isto é, não se provando a existência de um familiar nessas condições, o Estado‑Membro responsável será então aquele em que o menor «apresentou [o pedido]»; ou seja, o mesmo Estado‑Membro que está a determinar qual é o Estado‑Membro responsável, cuja intervenção é assim exigida por força dessa cláusula de salvaguarda.

61.      A norma de princípio é, por conseguinte, a de que a responsabilidade pela análise do pedido de asilo compete ao Estado‑Membro em que residam legalmente familiares do menor não acompanhado, se a tal não se opuser o interesse superior do menor. A título subsidiário ― seja porque o menor não tem familiares noutros Estados‑Membros, seja porque, tendo‑os, a designação do Estado‑Membro em que estes residem para analisar o pedido de asilo não é do seu interesse ― o seu pedido deverá ser analisado pelo Estado‑Membro em que o apresentou.

62.      De acordo com este regime, temos uma regra geral (competência do Estado‑Membro de residência dos familiares) passível de uma exceção (com base no interesse superior do menor) e na ausência da qual se aplica uma norma subsidiária (competência do Estado‑Membro que recebeu o pedido).

63.      É evidente que as coisas são muito diferentes quando, como acontece no presente caso, o menor não acompanhado apresentou sucessivos pedidos em mais do que um Estado‑Membro. Nesta hipótese, o facto de ter familiares noutro (ou noutros) Estados‑Membros pode permitir uma decisão face às eventuais alternativas, atribuindo a responsabilidade a um deles, sempre em função do interesse do menor e se esse interesse não excluir, precisamente, essa solução. Ora, tanto no caso de o interesse do menor não permitir que a responsabilidade seja atribuída ao Estado‑Membro em que residam os seus familiares como no caso de, pura e simplesmente, não ter familiares no território da União, suscita‑se a questão sub iudice, ou seja, a de determinar qual é, de entre todos os que receberam um pedido de asilo, o Estado‑Membro que deve assumir a responsabilidade de o analisar. Em suma, a questão de saber qual o Estado‑Membro que decide qual o Estado‑Membro que deve decidir sobre o pedido de asilo.

64.      Nestes termos, uma interpretação sistemática do regulamento conjugada com uma interpretação de acordo com os postulados da Carta, leva‑me a crer que o critério do interesse superior do menor não é só relevante para determinar se, na hipótese de um único pedido de asilo, o Estado‑Membro responsável deve ser aquele em que reside legalmente um familiar do menor ou aquele que, por ter recebido esse pedido, está a determinar qual é o Estado‑Membro responsável. Pelos motivos que irei expor em seguida, o interesse superior do menor também deve ser determinante para decidir qual o Estado‑Membro responsável de entre todos os que receberam um pedido de asilo.

65.      O teor literal do artigo 6.° do Regulamento n.° 343/2003 não prevê o caso em apreço neste processo. Como já referi, tal disposição parte da hipótese de que só houve um único pedido de asilo. Entendo que, nestas condições, o debate sobre se a própria redação da disposição determina desde logo se se trata do primeiro ou do último dos pedidos, pode prolongar‑se indefinidamente.

66.      Nestas condições, impõe‑se, na minha opinião, um esforço destinado a obter uma interpretação sistemática do artigo 6.°, na qual a própria economia do Regulamento n.° 343/2003 se conjugue com os postulados decorrentes sobretudo da Carta, fazendo‑se assim eco, expressamente, da referência ao interesse superior da criança no seu artigo 24.°, n.° 2.

67.      Neste sentido, o interesse superior do menor, presente no próprio regulamento, deve constituir o fundamento da interpretação do Regulamento n.° 343/2003 e, em consequência, a hipótese da existência de vários pedidos de asilo deve ser decidida, em princípio, dando preferência ao apresentado em último lugar, assumindo ser aí que melhor se avaliará esse interesse.

68.      Antes de continuar há que prevenir um equívoco. Do procedimento de reforma do Regulamento n.° 343/2003, que se encontra em curso, decorre que, por agora, o Parlamento Europeu não quis introduzir qualquer referência explícita ao último pedido (10), sendo que algumas das partes neste processo deram a entender que, nesse ponto, o regime não deve ser alterado e que, por conseguinte, este não atribui relevância, para este efeito, ao último pedido. No entanto, não creio que a este facto deva ser dada grande importância.

69.      Além do mais, tendo em conta os objetivos de clareza e celeridade na determinação do Estado‑Membro responsável, considero que, em concreto, a competência em questão deve ser atribuída ao Estado‑Membro que esteja em melhores condições para avaliar qual é o interesse superior do menor, e que, como em seguida explico, é normalmente aquele em que o menor se encontra, o qual, regra geral, é o Estado‑Membro que recebeu o último pedido de asilo. Dado que esta atribuição de responsabilidade não se baseia diretamente no critério do último pedido mas sim no do interesse do menor (que indiretamente levará, ainda que não necessariamente, ao último pedido), a minha proposta está claramente de acordo com a ideia de que não é conveniente estabelecer no artigo 6.° uma remissão incondicional para o Estado‑Membro em que foi apresentado o último pedido de asilo.

70.      Continuando a minha análise, convém começar por recordar que o próprio Regulamento n.° 343/2003 declara expressamente o seu respeito pelos direitos fundamentais e pelos princípios consagrados na Carta, referindo especificamente o direito de asilo (décimo quinto considerando) (11). Para além dessa declaração, o certo é que, com o valor jurídico qualificado que lhe confere o artigo 6.°, n.° 1, TUE, a Carta prevê que, «[t]odos os atos relativos às crianças, quer praticados por entidades públicas, quer por instituições privadas, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança» (artigo 24.°, n.° 2, Carta) (12).

71.      Por outro lado, essa previsão, nos termos do artigo 51.°, n.° 1, da própria Carta, obriga os Estados‑Membros quando apliquem o direito da União. Que, num caso como o dos autos, as entidades nacionais aplicam o direito da União, é algo que ficou completamente esclarecido no acórdão do Tribunal de Justiça de 21 de dezembro de 2011, NS, já referido, onde se afirmou que o artigo 3.°, n.° 2, do Regulamento n.° 343/2003, na medida em que «faz parte integrante dos mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável por um pedido de asilo previstos no referido regulamento […] apenas constitui um elemento do sistema europeu comum de asilo[, pelo que] deve considerar‑se que um Estado‑Membro que exerce [o] poder de apreciação [conferido por esse preceito] aplica o direito da União na aceção do artigo 51.°, n.° 1, da Carta» (n.° 68). O mesmo deverá dizer‑se, e pelas mesmas razões, do artigo 6.° do Regulamento n.° 343/2003.

72.      Consequentemente, o interesse superior do menor, por exigência do direito primário da União, deve ser tido «primacialmente em conta» por todos os que aplicam o direito da União e, no contexto em análise, do Regulamento n.° 343/2003 como um todo, pelas entidades nacionais chamadas a determinar o Estado‑Membro responsável por um pedido de asilo apresentado por um menor não acompanhado e sem familiares legalmente residentes no território da União.

73.      Sendo assim, e independentemente do teor literal do Regulamento n.° 343/2003, nos casos em que a entidade nacional tenha que decidir entre vários Estados‑Membros eventualmente responsáveis, de forma concorrente, de acordo com os critérios desse regulamento, para analisar o pedido de asilo apresentado por um menor não acompanhado, o direito da União obriga a que a opção por um ou outro desses Estados‑Membros seja sempre decidida em função do interesse superior do menor.

74.      Ora, chegados a este ponto convém acrescentar uma reflexão. Para determinar qual é, nas circunstâncias de cada caso concreto, o interesse superior do menor e ponderar qual a decisão mais adequada à satisfação desse interesse, é necessário contar com a intervenção do menor (13). Neste sentido, a localização do menor no momento em que se decide qual o Estado responsável pela análise do pedido de asilo deve merecer uma especial consideração, pois, em princípio, para a adequada defesa dos interesses do menor é preciso que qualquer decisão que lhe diga respeito seja adotada pela entidade que possa analisar de forma direta as circunstâncias em que se encontra.

75.      É certo que o requerente menor pode sempre ser devolvido ao Estado‑Membro em que apresentou o seu primeiro pedido. No entanto, entendo que, quer por questões de tempo, quer pelo facto de aos menores ser devido o melhor tratamento possível, convém não submeter estes requerentes de asilo a deslocações que possam ser evitadas. Recorde‑se, a este respeito, que o quarto considerando do Regulamento n.° 343/2003 sublinha a necessidade de o processo de determinação do Estado‑Membro responsável «[dever], nomeadamente, permitir uma determinação rápida do Estado‑Membro responsável, por forma a garantir um acesso efetivo aos procedimentos de determinação do estatuto de refugiado e a não comprometer o objetivo de celeridade no tratamento dos pedidos de asilo».

76.      Há que reconhecer, é claro, que a solução proposta pode produzir o efeito indesejado de uma espécie de «forum shopping», como salientaram diversas partes neste processo. Este risco potencial, que não é necessário nem deve ser aqui quantificado, encontra, todavia, justificação suficiente no facto de ser a única forma de dar a devida atenção ao interesse superior do menor, que deve ser tido, como tenho vindo a repetir, «primacialmente em conta», nos termos do artigo 24.°, n.° 2, Carta.

77.      A apreciação do menor e a possibilidade de atender à sua própria perceção sobre os seus interesses só estão ao alcance da entidade do Estado‑Membro em que o menor se encontra no momento de se decidir sobre o seu pedido de asilo (14). Por norma, esse Estado‑Membro será aquele em foi apresentado o último pedido, embora não se possam excluir outras hipóteses; daí a necessidade de atender às particularidades de cada caso, cuja apreciação só pode ser feita com pleno conhecimento pela jurisdição nacional respetiva.

78.      De qualquer forma, a própria aplicação da regra que, segundo o que proponho, atribui a responsabilidade ao Estado‑Membro em que se apresentou o último pedido pode ser derrogada se, mais uma vez, assim o exigir o interesse superior do menor. Se o artigo 6.°, primeiro parágrafo, do Regulamento n.° 343/2003, prevê que a responsabilidade do Estado‑Membro em que residam legalmente os familiares do menor pode ser objeto de derrogação se assim o exigir o interesse superior deste último, deve entender‑se que, no caso de vários pedidos, a responsabilidade do Estado‑Membro do último pedido também deve ser derrogada se assim o exigir esse mesmo interesse. Por outras palavras, o critério do último pedido só se justifica por ser o mais adequado, em princípio, à salvaguarda do interesse superior do menor, de modo que se, num determinado caso, essa regra geral for inadequada, é o próprio interesse do menor que exige a respetiva derrogação.

79.      Em suma, e como regra geral decorrente de uma interpretação sistemática do artigo 6.° do Regulamento n.° 343/2003 e do artigo 24.°, n.° 2, Carta, proponho ao Tribunal de Justiça que, para ser tido primacialmente em conta, como o deve ser sempre, o interesse superior do menor, o Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de asilo que tenha sido objeto de vários requerimentos em diferentes Estados‑Membros seja, em princípio, aquele em que se apresentou o último desses requerimentos.

VII ― Conclusão

80.      Em face do exposto, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à questão prejudicial nos seguintes termos:

«No âmbito do Regulamento (CE) n.° 343/2003 do Conselho, de 18 de fevereiro de 2003, que estabelece os critérios e os mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de asilo apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro, quando o requerente de asilo seja um menor não acompanhado, que não tenha nenhum membro da sua família legalmente presente noutro Estado‑Membro e que tenha apresentado pedidos de asilo em mais de um Estado‑Membro, o Estado‑Membro designado pelo artigo 6.°, segundo parágrafo, como responsável pelo exame do pedido de asilo deve ser, em princípio, tendo em conta o interesse superior do menor, e a não ser que esse mesmo interesse exija outra solução, aquele em que se apresentou o último pedido.»


1 —      Língua original: espanhol.


2 —      Regulamento (CE) n.° 343/2003 do Conselho, de 18 de fevereiro de 2003, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de asilo apresentada num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro (JO L 50, p. 1) (a seguir «Regulamento n.° 343/2003» ou «regulamento»). Nos termos do artigo 3.° do Protocolo relativo à posição do Reino Unido e da Irlanda, anexo ao Tratado da União Europeia e ao Tratado que institui a Comunidade Europeia, o Reino Unido notificou, por carta de 30 de outubro de 2001, o seu desejo de participar na adoção e aplicação deste regulamento.


3 —      JO L 222, p. 3.


4 —      C‑155/11 PPU, p. I‑5095.


5 —      Idem (n.° 21).


6 —      O Tribunal de Justiça apreciou a cláusula do artigo 3.°, n.° 2, do Regulamento n.° 343/2003 no acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o. (C‑411/10 e C‑493/10, Colet., p. I‑13905, n.os 65 a 68). Sobre a designada «cláusula humanitária» estabelecida no artigo 15.° do mesmo regulamento e que funciona como uma variante da prevista no artigo 3.°, n.° 2, foi proferido acórdão de 6 de novembro de 2012, K (C‑245/11, n.os 27 a 54).


7 —      N.os 75 a 86 e 95 a 108.


8 —      O sublinhado é meu.


9 —      Expressão inequívoca também noutras versões linguísticas do artigo 6.° do Regulamento n.° 343/2003: «[…] celui dans lequel le mineur a introduit sa demande d’asile»; «[…] that where the minor has lodged his or her application for asylum»; «[…] in dem der Minderjährige seinen Asylantrag gestellt hat […]»; «[…] in cui il minore ha presentato la domanda d’asilo»; «[…] en el que el menor la haya presentado».


10 —      Projeto de reforma da Comissão [COM(2008) 820] e resolução legislativa do Parlamento Europeu (A6‑0284/2009).


11 —      Mesmo sem se referir expressamente aos direitos fundamentais do menor enunciados no artigo 24.° Carta, como faz o Regulamento (CE) n.° 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.° 1347/2000 (JO L 338, p. 1), pode dizer‑se, relativamente ao Regulamento n.° 343/2003, como se disse daquele no acórdão de 5 de outubro de 2010, J. McB (processo C‑400/10 PPU, Colet., p. I‑8965, n.° 60), que as suas disposições «não podem ser interpretadas de modo a violar o referido direito fundamental[,] cujo respeito se confunde incontestavelmente com o superior interesse da criança». A declaração genérica de respeito pelos direitos reconhecidos na Carta tem o mesmo valor, para este efeito, que a referência específica a um direito concreto.


12 —      Como se refere nas Anotações relativas à Carta (JO 2007, C 303, p. 17), o artigo 24.° Carta baseia‑se na Convenção de Nova Iorque sobre os Direitos da Criança, assinada em 20 de novembro de 1989 e ratificada por todos os Estados‑Membros, cujo artigo 3.° dispõe que «[t]odas as decisões relativas a crianças, adotadas por instituições públicas ou privadas de proteção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança».


13 —      O próprio artigo 24.° Carta prevê, no seu n.° 1, que a opinião expressa livremente pelos menores «será tomada em consideração nos assuntos que lhes digam respeito, em função da sua idade e maturidade». Já me pronunciei a este respeito nas conclusões do processo X contra Y (acórdão de 21 de dezembro de 2011, C‑507/10, Colet., p. I‑14241, n.os 46 a 49), trazendo à colação acórdão de 22 de dezembro de 2010, Aguirre Zarraga (C‑491/10 PPU, Colet., p. I‑14247, n.os 64 a 67).


14 —      A esta mesma ideia corresponde também, na minha opinião, o artigo 12.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1560/2003, ao dispor que a decisão de confiar um menor não acompanhado a um membro da sua família que não o seu pai, a sua mãe ou o seu tutor legal e residente noutro Estado‑Membro deve ser precedida da adoção das medidas necessárias para que as autoridades do Estado‑Membro em que resida o familiar «possam pronunciar‑se com pleno conhecimento de causa sobre a capacidade de o(s) adulto(s) interessado(s) tomar(em) a seu cargo o menor em condições consentâneas com o interesse deste».