CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

MACIEJ SZPUNAR

apresentadas em 14 de julho de 2022 (1)

Processo C354/21

R.J.R.

sendo interveniente

Registrų centras

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Lietuvos vyriausiasis administracinis teismas (Supremo Tribunal Administrativo da Lituânia)]

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Regulamento (UE) n.o 650/2012 — Certificado Sucessório Europeu — Efeitos do certificado — Limites — Inscrição de um bem da herança no registo predial — Recusa»






I.      Introdução

1.        Uma mulher vive na Alemanha, bem como o seu filho. Morre, deixando‑o como seu único herdeiro. Possuía imóveis na Alemanha e na Lituânia. O seu filho obtém um Certificado Sucessório Europeu emitido pelas autoridades alemãs que especifica que este é o único herdeiro da integralidade do património da falecida. Apresentou esse certificado às autoridades lituanas quando requereu a inscrição de um imóvel no registo predial. Essas autoridades recusaram deferir esse requerimento por entenderem que o referido certificado está incompleto.

2.        O presente pedido de decisão prejudicial suscita, portanto, a delicada questão da delimitação dos âmbitos de aplicação respetivos da lex successionis e da lex registrii e, mais concretamente, da repartição de competências entre a autoridade emissora de um Certificado Sucessório Europeu e a autoridade responsável pelo registo predial, situada noutro Estado‑Membro.

II.    Quadro jurídico

A.      Direito da União

1.      Regulamento (UE) n.o 650/2012

3.        O artigo 1.o do Regulamento (UE) n.o 650/2012 (2), sob a epígrafe «Âmbito de aplicação», determina:

«1.      O presente regulamento é aplicável às sucessões por morte. Não é aplicável às matérias fiscais, aduaneiras e administrativas.

2.      São excluídos do âmbito de aplicação do presente regulamento:

[…]

1.      k)      A natureza dos direitos reais; e

2)      Qualquer inscrição num registo de direitos sobre um bem imóvel ou móvel, incluindo os requisitos legais para essa inscrição, e os efeitos da inscrição ou não inscrição desses direitos num registo.»

4.        O capítulo VI desse regulamento, sob a epígrafe «Certificado Sucessório Europeu», inclui os seus artigos 62.o a 73.o

5.        O artigo 62.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Criação de um certificado sucessório europeu» dispõe, nos seus n.os 1 e 3:

«1.      O presente regulamento cria um certificado sucessório europeu (a seguir designado «certificado»), que deve ser emitido para fins de utilização noutro Estado‑Membro e produzir os efeitos enunciados no artigo 69.o

[…]

3.      O certificado não substitui os documentos internos utilizados para efeitos análogos nos Estados‑Membros. Todavia, uma vez emitido com vista a ser utilizado noutro Estado‑Membro, o certificado produz também os efeitos enunciados no artigo 69.o no Estado‑Membro cujas autoridades o emitiram por força do presente capítulo.»

6.        O artigo 63.o do mesmo regulamento, sob a epígrafe «Finalidade do certificado», prevê, nos seus n.os 1 e 2:

«1.      O certificado destina‑se a ser utilizado pelos herdeiros […] que necessitem de invocar noutro Estado‑Membro a sua qualidade ou exercer os seus direitos de herdeiros […].

2.      O certificado pode ser utilizado, nomeadamente, para comprovar um ou mais dos seguintes elementos específicos:

[…]

b)      A atribuição de um bem ou bens determinados específicos que façam parte da herança ao herdeiro ou herdeiros ou ao legatário ou legatários, consoante o caso, mencionados no certificado;

[…]»

7.        O artigo 67.o do Regulamento n.o 650/2012, sob a epígrafe «Emissão do certificado» prevê, no seu n.o 1:

«A autoridade emissora deve emitir sem demora o certificado, segundo o procedimento previsto no presente capítulo, caso os elementos a atestar tenham sido estabelecidos nos termos da lei aplicável à sucessão ou de qualquer outra legislação aplicável a elementos específicos. Utilizará o formulário estabelecido de acordo com o procedimento consultivo a que se refere o artigo 81.o, n.o 2.»

8.        O artigo 68.o desse regulamento, sob a epígrafe «Conteúdo do certificado», dispõe:

«Tanto quanto seja necessário para a finalidade da emissão, o certificado inclui as seguintes informações:

[…]

l)      A quota‑parte que cabe a cada herdeiro, bem como, se for caso disso, a lista dos bens e/ou direitos que cabem a um determinado herdeiro;

[…]»

9.        O artigo 69.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Efeitos do certificado», prevê:

«1.      O certificado produz efeitos em todos os Estados‑Membros sem necessidade de recurso a qualquer procedimento.

2.      Presume‑se que o certificado comprova com exatidão os elementos estabelecidos nos termos da lei aplicável à sucessão ou de qualquer outra legislação aplicável a determinados elementos. Presume‑se que quem o certificado mencionar como herdeiro […] tem a qualidade mencionada no certificado e/ou é titular dos direitos ou dos poderes indicados no certificado e que não estão associadas a esses direitos ou poderes outras condições e/ou restrições para além das referidas no certificado.

[…]

5.      O certificado constitui um documento válido para a inscrição de bens da sucessão no registo competente de um Estado‑Membro, sem prejuízo do disposto no artigo 1.o, n.o 2, alíneas k) e l).»

2.      Regulamento de Execução (UE) n.o 1329/2014

10.      O artigo 1.o, n.o 5, do Regulamento de Execução (UE) n.o 1329/2014 (3) enuncia:

«O formulário a utilizar para o certificado sucessório europeu referido no artigo 67.o, n.o 1, do [Regulamento n.o 650/2012] é indicado no anexo 5 como formulário V [a seguir “formulário V”].»

11.      O formulário V elenca uma série de anexos, entre os quais figura o anexo IV, intitulado «Qualidade e direitos do ou dos herdeiros (OBRIGATÓRIO se a finalidade do certificado consiste em comprovar estes elementos)».

12.      O ponto 9 desse anexo IV visa identificar o «[b]em ou bens atribuídos ao herdeiro e relativamente aos quais foi pedido um certificado». Também se requer que sejam especificados o bem ou bens e apresentados todos os elementos de identificação pertinentes. Além disso, a nota 13 relativa a esse ponto está redigida nos seguintes termos: «No caso de um bem registado, indicar as informações exigidas nos termos da lei do Estado‑Membro no qual é mantido o registo, de forma a permitir a identificação do bem (por exemplo, no que se refere aos bens imóveis, o endereço exato do bem, o registo predial, o número da parcela ou o número cadastral, a descrição do bem) (se necessário, anexar os documentos pertinentes).»

B.      Direito lituano

13.      A Lietuvos Respublikos nekilnojamojo turto registro įstatymas (Lei da República da Lituânia Relativa ao Registo Predial), conforme alterada pela Lei n.o XII‑1833, de 23 de junho de 2015 (a seguir «Lei do Registo Predial»), estabelece, no seu artigo 5.o, n.o 2, que a entidade encarregada do registo predial é responsável, nos termos dessa lei, pela exatidão e pela proteção dos dados recolhidos no Registo Predial. Essa entidade é apenas responsável pela conformidade dos dados inscritos no Registo Predial com os documentos com base nos quais esses dados foram inscritos.

14.      O artigo 22.o da referida lei define as bases jurídicas da inscrição no registo predial de direitos reais sobre imóveis, de ónus que afetem esses direitos e de factos jurídicos. Essa disposição elenca os documentos comprovativos da constituição de direitos reais sobre imóveis ou de factos jurídicos, com base nos quais esses direitos, os ónus que os afetam ou esses factos jurídicos serão inscritos no registo predial, referindo, entre outros, no ponto 1), as decisões das autoridades públicas, no ponto 2), os acórdãos, sentenças, despachos e decisões dos tribunais e, no ponto 5), as habilitações de herdeiros.

15.      O artigo 23.o dessa mesma lei, que define as regras a que deve obedecer a apresentação dos pedidos de inscrição de direitos reais sobre imóveis, de ónus que afetem esses direitos e de factos jurídicos, prevê, no n.o 2, que o requerimento deve ser acompanhado de documentos que comprovem a constituição dos direitos cujo registo é pedido, os eventuais ónus que afetem esses direitos e os respetivos factos jurídicos. O artigo 23.o, n.o 3, da Lei do Registo Predial especifica que os documentos com base nos quais os direitos sobre bens imóveis, os ónus que afetem esses direitos e os factos jurídicos são comprovados, constituídos, extintos, transmitidos ou onerados devem respeitar os requisitos legais e conter os dados necessários para serem registados no Registo Predial. Segundo o artigo 23.o, n.o 4, dessa lei, os documentos com base nos quais o registo é requerido devem ser legíveis e conter todos os nomes próprios, apelidos, denominações legais, endereços, números de identificação das pessoas relacionadas com o registo, bem como o número único do bem imóvel a que o registo diz respeito, que é atribuído em conformidade com o procedimento estabelecido pelo Lietuvos Respublikos nekilnojamojo turto kadastro nuostatai (Regulamento do Cadastro Predial da República da Lituânia).

16.      Segundo o artigo 29.o da referida lei, o organismo responsável pelo registo predial recusará o registo de direitos reais sobre imóveis, de ónus sobre esses direitos ou de factos jurídicos se, ao examinar o requerimento, verificar que o documento apresentado em apoio desse pedido não cumpre os requisitos dessa mesma lei, ou que o requerimento ou o documento apresentado a esse organismo não contém as informações previstas no Nekilnojamojo turto registro nuostatai (Regulamento do Registo Predial) (4), necessárias para identificar o bem imóvel ou os adquirentes do direito real sobre o imóvel.

17.      O Regulamento do Registo Predial refere, no ponto 14.2.2, que os dados de identificação do bem imóvel são 1) a área cadastral, o bairro cadastral e o número cadastral da parcela; 2) o número único (código de identificação) da parcela; 3) o número único (código de identificação) da estrutura, e 4) o número único (código de identificação) do apartamento ou das instalações.

III. Litígio no processo principal, questão prejudicial e tramitação do processo no Tribunal de Justiça

18.      O recorrente no processo principal é um cidadão que possui as nacionalidades lituana e alemã e que reside na Alemanha.

19.      Em 6 de dezembro de 2015, a mãe do recorrente no processo principal (a seguir «falecida»), cuja residência habitual era na Alemanha, faleceu. O recorrente no processo principal, único herdeiro, aceitou sem reservas a herança da falecida na Alemanha. Requereu ao tribunal alemão competente um Certificado Sucessório Europeu, pois a herança incluía bens situados não só na Alemanha, mas também na Lituânia.

20.      Em 24 de setembro de 2018, o Amtsgericht Bad Urach (Tribunal de Primeira Instância de Bad Urach, Alemanha) emitiu a favor do recorrente no processo principal o Certificado Sucessório n.o 1 VI 174/18 (a seguir «Certificado Sucessório»), no qual se indicava que G. R., que tinha falecido em 10 de maio de 2014, tinha deixado todo o seu património à falecida, sua única herdeira.

21.      Esse mesmo tribunal emitiu, no mesmo dia, o Certificado Sucessório Europeu n.o 1 VI 175/18 (a seguir «Certificado Sucessório Europeu»), no qual indicava que a falecida tinha deixado todo o seu património ao recorrente no processo principal, que era o seu único herdeiro e aceitava a herança sem reservas.

22.      Em 15 de março de 2019, o recorrente no processo principal apresentou no Registrų centras (Centro de Registos), entidade estatal responsável, entre outros, pelos cadastro e registo predial na Lituânia, um requerimento em que solicitava o registo dos seus direitos de propriedade sobre os bens imóveis situados na Lituânia que pertenceram à falecida. Conjuntamente com o requerimento, apresentou o Certificado Sucessório e o Certificado Sucessório Europeu emitidos pelo tribunal alemão.

23.      Por Decisão de 20 de março de 2019, a Divisão de Tauragė do Departamento de «Registo Predial» do Serviço de Gestão dos Registos Prediais do Centro de Registos (a seguir «Divisão») indeferiu esse requerimento, pelo facto de o Certificado Sucessório Europeu apresentado não incluir as informações necessárias à identificação do imóvel previstas na Lei do Registo Predial, ou seja, não indicava os bens herdados pelo recorrente.

24.      O recorrente apresentou uma reclamação dessa decisão para a Comissão de Apreciação dos Litígios do Registo Central do Centro de Registos do Estado (a seguir «Comissão»), que, por Decisão de 9 de maio de 2019, confirmou a decisão da Divisão.

25.      O recorrente no processo principal interpôs recurso das decisões da Divisão e da Comissão no Regionų apygardos administracinio teismo Klaipėdos rūmai (Secção de Klaipėda do Tribunal Administrativo Regional, Lituânia), que, por Decisão de 30 de dezembro de 2019, negou provimento a esse recurso.

26.      O recorrente no processo interpôs recurso dessa decisão para o Lietuvos vyriausiasis administracinis teismas (Supremo Tribunal Administrativo da Lituânia). Esse órgão jurisdicional, pronunciando‑se em formação colegial alargada, considerou que o litígio que lhe foi submetido suscitava questões relativas à interpretação do Regulamento n.o 650/2012.

27.      Antes de mais, o órgão jurisdicional de reenvio observa que, por força do artigo 69.o, n.o 5, do Regulamento n.o 650/2012, o Certificado Sucessório Europeu constitui um documento válido para a inscrição de bens da sucessão no registo competente de um Estado‑Membro, sem prejuízo do disposto no seu artigo 1.o, n.o 2, alíneas k) e l), ou seja, esse certificado não é relevante para efeitos da aplicação do artigo 1.o, n.o 2, alínea l), desse regulamento.

28.      O órgão jurisdicional de reenvio sublinha que, na Lituânia, os documentos que podem servir de base para a inscrição de direitos reais no Registo Predial encontram‑se elencados no artigo 22.o da Lei do Registo Predial e que o artigo 23.o, n.os 2 a 4, dessa lei especifica de forma taxativa as informações e dados que esses documentos devem certificar. Esse órgão jurisdicional esclarece que a entidade responsável pelo registo predial, enquanto Administração Pública, apenas atua ao abrigo dos poderes que lhe são conferidos por lei, que não lhe reconhece o de verificar o alcance do direito de propriedade, nem o de reunir informações e provas que comprovem a existência, ou não, de determinados factos. Refere que, por conseguinte, por força do disposto na legislação nacional pertinente no caso em apreço, as informações necessárias à inscrição no registo predial apenas podem ser fornecidas nos documentos elencados no artigo 22.o da Lei do Registo Predial e que, quando as informações fornecidas são incompletas, a entidade responsável pelo registo predial não pode ter em conta outras informações.

29.      O órgão jurisdicional de reenvio alega igualmente, no que respeita às circunstâncias do processo principal, que o Certificado Sucessório Europeu foi emitido pelo tribunal alemão com recurso ao formulário V e inclui o anexo IV desse formulário, que certifica a qualidade e os direitos do herdeiro. Todavia, observa que no ponto 9 desse anexo não foi fornecida qualquer informação para identificar o bem ou bens atribuídos ao herdeiro e relativamente aos quais foi pedido um certificado.

30.      Esse órgão jurisdicional sublinha que os argumentos aduzidos pelo recorrente no processo principal, bem como a jurisprudência alemã que refere implicam não ter sido por inadvertência que a autoridade que emitiu o Certificado Sucessório Europeu não forneceu essas informações. O recorrente alegava, nomeadamente, que o direito sucessório alemão se rege pelo princípio da sucessão universal e que, por conseguinte, quando existe um único beneficiário, é‑lhe atribuído todo o património do falecido e, segundo a legislação alemã, não é possível indicar ou especificar de outra forma os bens da herança. Segundo ele, em conformidade com jurisprudência constante, os órgãos jurisdicionais alemães não aplicam o artigo 68.o, alínea l), do Regulamento n.o 650/2012, que dispõe que esse certificado indica a quota‑parte que cabe a cada herdeiro, bem como, se for caso disso, a lista dos bens e/ou direitos que cabem a um determinado herdeiro.

31.      Tendo em conta os objetivos prosseguidos pelo legislador da União ao criar o Certificado Sucessório Europeu, em especial o de decidir de uma forma célere, fácil e eficaz as sucessões com incidência transfronteiriça na União, o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à interpretação que se deve fazer do artigo 1.o, n.o 2, alínea l), e do artigo 69.o, n.o 5, do Regulamento n.o 650/2012, designadamente no que respeita à articulação dessas disposições com a legislação nacional do Estado‑Membro onde se situa o bem da herança que regula os requisitos para a inscrição de um direito de propriedade no registo predial.

32.      Foi nestas condições que o Lietuvos vyriausiasis administracinis teismas (Supremo Tribunal Administrativo da Lituânia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Devem o artigo 1.o, n.o 2, alínea l), e o artigo 69.o, n.o 5, do [Regulamento n.o 650/2012] ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma regulamentação do Estado‑Membro onde se situa o bem imóvel nos termos da qual os direitos de propriedade só podem ser inscritos no registo predial com base num Certificado Sucessório Europeu se todos os dados necessários para o registo constarem desse Certificado Sucessório Europeu?»

33.      Os Governos lituano, checo, alemão, espanhol, francês e húngaro e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas. Os Governos lituano, alemão, espanhol e a Comissão apresentaram as suas alegações na audiência que teve lugar em 4 de maio de 2022.

IV.    Análise

34.      Com a sua questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o Regulamento n.o 650/2012, em especial o artigo 1.o, n.o 2, alínea l), o artigo 68.o, alínea l), e o artigo 69.o, n.o 5, se opõe à aplicação de disposições de direito nacional por força das quais os imóveis adquiridos por um herdeiro único ao abrigo de uma legislação sucessória que se rege pelo princípio da sucessão universal só podem ser inscritos no registo predial do Estado‑Membro em cujo território se situam esses bens, com base num Certificado Sucessório Europeu, se todos os dados de identificação dos imóveis exigidos pelo legislação nacional desse Estado‑Membro figurarem nesse certificado.

35.      Esta questão diz respeito, por um lado, às exigências relativas ao Certificado Sucessório Europeu e, por outro, à delimitação entre o regime instituído pelo Regulamento n.o 650/2012 e o definido pela legislação nacional que regula a inscrição no registo de direitos sobre imóveis.

36.      Importa recordar que a falecida, que morreu em 2015, tinha sido a herdeira de seu marido (em 2014). Porém, tendo em conta os elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional de reenvio e a questão submetida, as presentes conclusões apenas se referem à herança da de cujus aceite por seu filho.

37.      A este propósito, importa, na minha opinião, distinguir a questão de saber se os bens da herança devem ou podem ser mencionados no Certificado Sucessório Europeu (5) da de saber se a autoridade de um Estado‑Membro responsável pelo registo pode recusar a inscrição desses bens por não virem mencionados no Certificado Sucessório Europeu (6). Antes de proceder à análise destas duas questões gostaria de, sucintamente, integrar o Certificado Sucessório Europeu no contexto da sistemática do Regulamento n.o 650/2012.

38.      Para não andar com rodeios, a fim de resolver a questão que se coloca no presente caso, ou incumbe às autoridades alemãs, por força do disposto no Regulamento n.o 650/2012, especificar no Certificado Sucessório Europeu o bem em questão, ou as autoridades lituanas estão obrigadas, por força do disposto no Regulamento n.o 650/2012, a deferir o pedido apresentado com base no Certificado Sucessório Europeu tal como elaborado pelas autoridades alemãs.

A.      Quanto ao Certificado Sucessório Europeu na sistemática do Regulamento n.o 650/2012

39.      Resulta do considerando 7 do Regulamento n.o 650/2012 que esse diploma visa facilitar o bom funcionamento do mercado interno suprimindo os entraves à livre circulação de pessoas que pretendam exercer os seus direitos no âmbito de uma sucessão com incidência transfronteiriça (7). Este regulamento inscreve‑se então no âmbito da criação de um espaço de liberdade, segurança e justiça no contexto do mercado interno e deve, portanto, ser interpretado à luz desses princípios (8).

40.      O Regulamento n.o 650/2012 não procede a uma harmonização do direito sucessório substantivo. Não inclui, em princípio (9), normas substantivas em matéria de sucessões. Em contrapartida, esse regulamento designa, através de normas de conflito, a lei (nacional) aplicável à sucessão (10). A este propósito, o artigo 21.o, n.o 1, do referido regulamento define como regra geral o princípio da aplicação, ao conjunto da sucessão, da lei do Estado onde o falecido tinha a sua residência habitual no momento do óbito. Além disso, segundo o artigo 22.o, n.o 1, desse mesmo regulamento, uma pessoa pode escolher como lei para regular toda a sua sucessão a lei do Estado de que é nacional no momento em que faz a escolha ou no momento do óbito. O âmbito da lei aplicável encontra‑se definido no artigo 23.o do Regulamento n.o 650/2012. Basta aqui sublinhar que a lei designada por força dos artigos 21.o e 22.o desse regulamento regula toda a sucessão (11), nomeadamente a transmissão dos bens (12).

41.      O Regulamento n.o 650/2012 regula não só o direito aplicável, mas também a competência judiciária e o reconhecimento e execução das decisões proferidas num Estado‑Membro.

42.      Os artigos 62.o e seguintes desse regulamento regulam uma das suas inovações‑chave (13): o Certificado Sucessório Europeu.

43.      Esse certificado destina‑se a desempenhar três funções principais em todos os Estados‑Membros (14): em primeiro lugar, legitimar o herdeiro perante autoridades com as do registo predial ou devedores privados da herança, como os bancos, em segundo lugar, fornecer uma presunção ilidível da exatidão e exaustividade do seu conteúdo e, em terceiro lugar, proteger os terceiros de boa‑fé que pagam prestações àquele que foi designado como herdeiro ou que lhe adquire um bem da herança.

44.      O Certificado Sucessório Europeu goza de um regime jurídico autónomo, definido nas disposições do capítulo VI do Regulamento n.o 650/2012 (15), destinado a garantir uma aplicação uniforme em todos os Estados‑Membros (16). Relativamente a esse certificado, os artigos 63.o a 69.o desse regulamento dizem respeito, designadamente, à sua finalidade, à competência para o emitir, às regras relativas ao pedido de certificado, à apreciação desse pedido e à sua emissão, bem como ao seu conteúdo e efeitos.

45.      Nos termos do artigo 63.o, n.o 1, do Regulamento n.o 650/2012, relativo à finalidade do Certificado Sucessório Europeu, este destina‑se a ser utilizado, nomeadamente, pelos herdeiros que necessitem de invocar a sua qualidade noutro Estado‑Membro, ou exercer aí os seus direitos de herdeiros.

46.      O artigo 63.o, n.o 2, alíneas a) e b), do Regulamento n.o 650/2012 especifica, a este respeito, que esse certificado pode ser utilizado, nomeadamente, para comprovar elementos como, respetivamente, a qualidade e/ou direitos de cada herdeiro ou a atribuição de um bem ou bens determinados que façam parte da herança ao herdeiro ou ao legatário, consoante o caso, mencionado no certificado.

B.      Quanto ao conteúdo do Certificado Sucessório Europeu

1.      Quanto ao artigo 68.o do Regulamento n.o 650/2012

47.      O artigo 68.o do Regulamento n.o 650/2012 elenca as informações que devem figurar no Certificado Sucessório Europeu «[t]anto quanto seja necessário para a finalidade da emissão», entre as quais figuram «[a] quota‑parte que cabe a cada herdeiro, bem como, se for caso disso, a lista dos bens e/ou direitos que cabem a um determinado herdeiro» (17).

a)      Quanto à obrigação de especificar o bem em causa

48.      A questão que se coloca é a seguinte: é a autoridade responsável pela emissão do Certificado Sucessório Europeu obrigada a especificar os bens e/ou direitos que cabem a um determinado herdeiro?

49.      O Certificado Sucessório Europeu está concebido como um instrumento apto a ser utilizado para comprovar diferentes elementos. Conforme resulta, designadamente, do artigo 68.o, primeiro parágrafo, do Regulamento n.o 650/2012, esse certificado contém informações necessárias ao fim a que se destina.

50.      É, portanto, o fim (concreto) a que se destina o Certificado Sucessório Europeu, como indicado pelo requerente em conformidade com o disposto no artigo 65.o, n.o 3, alínea f), do Regulamento n.o 650/2012, e a legislação nacional sucessória aplicável que determinam o conteúdo desse certificado. Resulta do artigo 63.o, n.o 2, alínea a), desse regulamento que a finalidade do referido certificado é, designadamente, comprovar a qualidade de «herdeiro». Conforme decorre do artigo 63.o, n.o 2, alínea b), desse regulamento, é óbvio que o mesmo certificado também pode ser utilizado para comprovar outras informações, como a atribuição de um bem ou bens determinados que façam parte da herança ao herdeiro/herdeiros. Na minha opinião, essas informações podem ser incluídas, na medida em que tal se justifique para bom funcionamento do Certificado Sucessório Europeu para que possa produzir plenamente os seus efeitos.

51.      Conforme pretendo demonstrar nos desenvolvimentos seguintes, não é necessário recorrer às informações indicadas no artigo 63.o, n.o 2, alínea b), do Regulamento n.o 650/2012 para se poder proceder à inscrição.

1)      Sucessão universal

52.      É pacífico que, nos termos do disposto no artigo 21.o, n.o 1, do Regulamento n.o 650/2012, a legislação sucessória nacional aplicável ao presente processo é a alemã. Por conseguinte, em conformidade com essa disposição, essa lei rege toda a sucessão, designadamente a transferência dos bens para o herdeiro (18).

53.      No presente caso, de acordo com o direito alemão aplicável, por força do §1922.o, n.o 1, do Bürgerliches Gesetzbuch (Código Civil), no momento da morte de uma pessoa (abertura da sucessão), a universalidade do seu património (sucessão) transmite‑se a uma ou mais pessoas (herdeiros). Trata‑se do princípio da sucessão universal. Conforme o Governo alemão indica, isso implica que o herdeiro sucede juridicamente ao falecido desde a ocorrência do facto que desencadeia a sucessão, ou seja, a morte deste.

54.      Importa sublinhar que o direito alemão apenas prevê a sucessão universal, o que implica não serem bens específicos que são transmitidos a título particular, mas o conjunto do património enquanto universalidade.

55.      Nestas condições, não é necessário incluir no Certificado Sucessório Europeu um inventário da sucessão, na medida em que a situação a que se refere o artigo 68.o, alínea l), do Regulamento n.o 650/2012, com a expressão «se for caso disso», ou seja, no caso de uma lista de bens que cabem a um determinado herdeiro, não se verifica.

56.      Com efeito, nesse caso, esse certificado indica que a pessoa em causa é o herdeiro de um determinado bem do falecido. Contudo, se o herdeiro for o herdeiro universal, não há necessidade de especificar um bem em especial no referido certificado.

57.      Neste contexto, tenho de refutar a tese segundo a qual a expressão «se for caso disso» devia ser entendida no sentido de que reflete apenas a vontade do requerente do Certificado Sucessório Europeu (19). Embora o requerente seja obrigado a informar a autoridade emissora desse certificado sobre o fim a que se destina (20), é porém a essa autoridade que cabe decidir, com base nessa informação, se o bem deve, ou não, ser especificado.

58.      Contudo, a Comissão afirma que essa abordagem não é conforme às exigências do Regulamento n.o 650/2012. Com efeito, segundo afirma, as informações a fornecer no Certificado Sucessório Europeu são determinadas em função não da legislação sucessória nacional aplicável, mas do artigo 68.o desse regulamento.

59.      Na minha opinião, esta abordagem da Comissão não tem em conta o facto de o Regulamento n.o 650/2012 definir não só a competência judiciária e o conteúdo do Certificado Sucessório Europeu, mas também, como referi, a legislação sucessória nacional aplicável a um processo, que afeta necessariamente o conteúdo desse certificado.

60.      É verdade que, o artigo 68.o do Regulamento n.o 650/2012 regula exaustivamente o conteúdo do Certificado Sucessório Europeu, mas isso não obsta a que a legislação sucessória nacional aplicável, conforme designada nos termos desse regulamento, possa ter impacto nesse conteúdo. Pelo contrário, a utilização das expressões «[t]anto quanto [as informações] seja[m] necessári[as] para a finalidade da emissão [do Certificado Sucessório Europeu]» e «se for caso disso», nessa disposição, revela a vontade do legislador da União de atender à legislação sucessória aplicável (o sublinhado é meu). Existe, portanto, uma clara interdependência entre o direito nacional e esse regulamento, na medida em que é a legislação sucessória aplicável que em primeiro lugar determina o conteúdo do certificado.

61.      Dito isto, a autoridade emissora deve, se for caso disso, fazer prova de uma certa flexibilidade e proceder de uma forma a que não está necessariamente habituada, especialmente quando tem de aplicar uma lei estrangeira. Não é isso, porém, o que se verifica no presente caso.

2)      Sucessão não universal

62.      Quando a situação não está compreendida no âmbito de aplicação de um direito nacional sucessório que se rege pelo princípio da sucessão universal (21) e quando a referida finalidade só pode ser alcançada pela menção da quota‑parte da herança que cabe à pessoa em questão, é muito provável que haja necessidade de especificar o bem em questão.

63.      As obrigações e os requisitos impostos nesse domínio podem diferir consoante os Estados‑Membros. Em especial, a legislação sucessória aplicável noutro Estado‑Membro pode exigir um inventário completo da herança, o que implica a obrigação de incluir essas informações num Certificado Sucessório Europeu. Essa situação correspondia à tida em vista pela expressão «se for caso disso», constante do artigo 68.o, alínea l), do Regulamento n.o 650/2012.

b)      Quanto à possibilidade de especificar o bem em causa

64.      Resta saber se, numa situação como a em causa no processo principal, a autoridade que emite o Certificado Sucessório Europeu tem liberdade, ou não, para incluir o bem imobiliário em causa nesse certificado, quando isso seja requerido pela pessoa em causa.

65.      Há que salientar, a este respeito, que, para que um Certificado Sucessório Europeu possa produzir plenamente os seus efeitos, exige‑se um certo grau de cooperação e de confiança mútua entre as autoridades dos Estados‑Membros. Isso pode implicar a obrigação de a autoridade emissora, num espírito de cooperação leal com as autoridades dos outros Estados‑Membros, ter em conta as exigências da lei relativa ao registo de outro Estado‑Membro, sobretudo se essa autoridade dispuser das informações e dos elementos pertinentes.

66.      Dito isto, essa cooperação é delicada, pois daí podem decorrer outros problemas jurídicos.

67.      Admitamos que, quando é feito um pedido nesse sentido, a indicação do bem em questão é facultativa para a autoridade emissora do Certificado Sucessório Europeu. Nessa situação, tal seria vinculativo para a autoridade responsável pelo registo que procede à inscrição desse bem, localizada noutro Estado‑Membro? Quid do artigo 69.o, n.o 2, do Regulamento n.o 650/2012, que prevê que se presume que esse certificado comprova com exatidão os elementos estabelecidos nos termos da lei nacional aplicável à sucessão ou de qualquer outra legislação aplicável a determinados elementos? Esta presunção estende‑se à propriedade dos bens em questão?

68.      Importa igualmente sublinhar que a questão de saber se determinados bens fazem parte da herança não se enquadra no direito sucessório, mas sim no direito de propriedade (22). Com efeito, a lei aplicável à sucessão que regula a questão da transferência de propriedade e a questão de saber quem vai ser o proprietário dos bens do de cujus deve distinguir‑se da de saber se se um determinado bem pertencia ao de cujus.

69.      Por último, cabe sublinhar que para poder indicar bens específicos, a autoridade emissora do Certificado Sucessório Europeu deve ter uma visão completa do património (23). Ora, isso pode revelar‑se complicado, como o demonstra o presente caso.

2.      Quanto ao formulário V

70.      O ponto 9 de anexo IV do formulário V destina‑se a identificar os bens atribuídos ao herdeiro e relativamente aos quais foi pedido um certificado e menciona ser necessário especificar os bens e indicar todos os dados identificativos relevantes (24).

71.      Contrariamente aos argumentos de algumas das partes no processo e à opinião de determinados autores (25), desse formulário não se pode retirar qualquer ensinamento.

72.      Com efeito, as informações a que esse ponto 9 se refere apenas devem ser prestadas quando seja necessário especificar o bem em causa (26). Ora, conforme já referi (27), não é isso o que se passa no presente caso, dado tratar‑se de uma sucessão universal.

73.      Além disso, há que recordar que tendo o Regulamento de Execução n.o 1329/2014 por (único) objetivo tornar exequíveis as disposições do Regulamento n.o 650/2012, nunca poderá ir além das disposições substantivas do Regulamento n.o 650/2012. Uma abordagem diferente equivaleria a pôr em causa o princípio do equilíbrio institucional. A Comissão, enquanto autora do Regulamento de Execução n.o 1329/2014, é, portanto, obrigada a respeitar a vontade do legislador. Dito de outro modo, esse Regulamento de Execução não pode impor, no formulário V, o fornecimento de informações que, à luz da finalidade do Certificado Sucessório Europeu, não são necessárias. Se assim não fosse, as disposições do Regulamento n.o 650/2012 ficariam indevidamente vazias de sentido.

74.      Por conseguinte, dado que a correta interpretação do artigo 68.o do Regulamento n.o 650/2012 leva a concluir que essa disposição não exige a identificação específica do bem lituano no Certificado Sucessório Europeu, nenhuma norma do Regulamento de Execução n.o 1329/2014 pode autorizar uma conclusão diversa. Por conseguinte, o referido Regulamento de Execução deve ser interpretado à luz do Regulamento n.o 650/2012.

C.      Quanto aos efeitos do Certificado Sucessório Europeu e à sua articulação com a legislação nacional sobre propriedade fundiária (artigo 1.o, n.o 2, alínea l), e artigo 69.o, n.o 5, do Regulamento n.o 650/2012)

75.      Nos termos do artigo 69.o, n.o 5, do Regulamento n.o 650/2012, o Certificado Sucessório Europeu constitui um documento válido para a inscrição de bens da sucessão no registo competente de um Estado‑Membro, sem prejuízo do disposto no artigo 1.o, n.o 2, alíneas k) e l), desse regulamento.

76.      O artigo 1.o, n.o 2, alínea l), do Regulamento n.o 650/2012, que visa delimitar os âmbitos de aplicação respetivos da lex successionis e da lex registrii, estabelece por seu lado que estão excluídos do seu âmbito de aplicação «[q]ualquer inscrição num registo de direitos sobre um bem imóvel ou móvel, incluindo os requisitos legais para essa inscrição, e os efeitos da inscrição ou não inscrição desses direitos num registo».

77.      O processo que deu origem ao Acórdão Kubicka (28) foi a única ocasião que o Tribunal de Justiça teve para interpretar o artigo 1.o, n.o 2, alínea l), do Regulamento n.o 650/2012. Nesse acórdão, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 1.o, n.o 2, alíneas k) e l), e o artigo 31.o desse regulamento devem ser interpretados no sentido de que se opõem à recusa do reconhecimento, por uma autoridade de um Estado‑Membro, dos efeitos reais do legado «vindicatório» reconhecido pelo direito aplicável à sucessão, pelo qual um testador optou em conformidade com o artigo 22.o, n.o 1, desse regulamento, quando essa recusa se baseie no facto de esse legado ter por objeto o direito de propriedade de um imóvel situado nesse Estado‑Membro, cuja legislação não reconhece o instituto do legado com efeitos reais imediatos no momento da abertura da sucessão.

78.      Esse Acórdão Kubicka conduziu a que a lei alemã em causa no processo principal não fosse aplicada à transmissão de propriedade. Ora, as normas relativas ao registo predial não estavam em causa. A legislação nacional sobre propriedade fundiária de um Estado‑Membro pode, portanto, estabelecer requisitos adicionais de natureza processual, mas apenas se esses requisitos adicionais não puserem em causa a qualidade atestada pelo Certificado Sucessório Europeu.

79.      Conforme o advogado‑geral Y. Bot sublinhou nas Conclusões que apresentou no processo Kubicka (29), na prática, podem ser exigidos outros documentos ou informações em complemento do Certificado Sucessório Europeu, quando, por exemplo, este não inclui elementos suficientemente precisos para identificar o bem cuja transmissão de propriedade deve ser registada.

80.      Contudo, há que observar que, no presente caso, as autoridades lituanas dispõem de todas as informações necessárias para proceder a uma inscrição no registo predial: estão em condições de identificar a quem pertence ou pertencia o bem em causa e, através do Certificado Sucessório Europeu, garantir a qualidade de herdeiro do recorrente no processo principal.

81.      Nessa situação, o efeito útil do Certificado Sucessório Europeu ficaria comprometido se a legislação sobre propriedade fundiária da Lituânia pudesse impor obrigações adicionais ao requerente.

82.      Com efeito, mesmo que o bem concreto adquirido por sucessão não venha mencionado no Certificado Sucessório Europeu, a sua aquisição pode ficar demonstrada através desse certificado. Nessa lógica, não é a identificação do bem no referido certificado que constitui o fundamento da alteração do registo predial, mas a qualidade de herdeiro da pessoa em causa (30). A este respeito, o mesmo certificado constitui e prova da sucessão universal ocorrida ao abrigo da legislação alemã, que também abrange os imóveis que a de cujus possuía no estrangeiro. Cabe à autoridade responsável pelo registo predial verificar se o bem em causa faz parte da herança, e, portanto, se pertencia à de cujus. A autoridade deve retirar todas as consequências decorrentes das informações constantes do Certificado Sucessório Europeu, ou seja, que a pessoa mencionada como herdeiro da de cujus é o seu herdeiro universal.

83.      Por conseguinte, não existe nenhuma razão legítima para as autoridades lituanas exigirem, para efeitos do registo, elementos adicionais para determinar se a pessoa em causa é o herdeiro do bem em causa. Obrigá‑lo a solicitar às autoridades alemãs que especifiquem o bem em causa é de um formalismo que não se justifica.

84.      Para concluir, desde que o efeito útil do Regulamento n.o 650/2012 e, no presente caso, o do Certificado Sucessório Europeu instituído por esse regulamento, não fique comprometido, os Estados‑Membros podem legislar no domínio do direito fundiário. Porém, o artigo 1.o, n.o 2, alínea l), do referido regulamento não pode comprometer o efeito útil de um Certificado Sucessório Europeu, certificado que, conforme recordei, constitui, por força do artigo 69.o, n.o 5, do mesmo diploma, um documento válido para a inscrição de um bem da herança no registo competente de um Estado‑Membro.

85.      Dito de outro modo, embora as condições relativas à aquisição dos bens da herança não possam, em princípio, ser ignoradas pela legislação nacional sobre o registo predial (31), um Certificado Sucessório Europeu que comprove a sucessão tem, todavia, caráter vinculativo e deve servir de base para a inscrição no registo, independentemente de o seu conteúdo corresponder ou não à prática habitualmente adotada para emitir tal certificado (ou um documento nacional comparável) no Estado‑Membro do registo predial (32). Só quando seja objetivamente impossível determinar o objeto do requerimento no contexto da inscrição no registo predial é que pode ser necessário completar o Certificado Sucessório Europeu para fazer prova do património geral do de cujus através de documentos adicionais necessários à identificação exata dos bens herdados (33).

D.      Quanto à cooperação entre as autoridades (artigo 66.o, n.o 5, do Regulamento n.o 650/2012)

86.      O artigo 66.o do Regulamento n.o 650/2012, que trata da apreciação do pedido de Certificado Sucessório Europeu, dispõe, no n.o 5, que, para efeitos dessa apreciação, a autoridade competente de um Estado‑Membro deve, mediante pedido, facultar à autoridade emissora de outro Estado‑Membro informações contidas, nomeadamente, nos registos prediais, nos registos civis e nos registos de que constam documentos e factos pertinentes para a sucessão ou para o regime matrimonial de bens ou regime de bens equivalente do falecido, caso a legislação nacional autorize a referida autoridade competente a facultar tais informações a outra autoridade nacional.

87.      A Comissão considera que, no presente caso, cabe à autoridade alemã emissora do Certificado Sucessório Europeu contactar as autoridades lituanas para se informar sobre o imóvel em causa no contexto da apreciação do pedido de Certificado Sucessório Europeu.

88.      Embora seja evidente que o mecanismo de cooperação instituído pelo artigo 66.o, n.o 5, do Regulamento n.o 650/2012 desempenha um papel primordial no bom funcionamento do processamento de um pedido e, ulteriormente, na entrega do certificado, não compartilho, porém, a perspetiva da Comissão, pela simples razão de a cooperação apenas se impor quando necessária.

89.      Como ficou demonstrado nas presentes conclusões, não é isso o que se passa no caso em apreço, em que a autoridade responsável pelo registo dispõe de toda a informação necessária para proceder ao registo.

V.      Conclusão

90.      Tendo em conta todas as considerações que precedem, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à questão prejudicial do Lietuvos vyriausiasis administracinis teismas (Supremo Tribunal Administrativo da Lituânia) nos seguintes termos:

O artigo 1.o, n.o 2, alínea l), o artigo 68.o, alínea l), e o artigo 69.o, n.o 5, do Regulamento (UE) n.o 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu, opõem‑se à aplicação de disposições do direito nacional por força das quais um bem imóvel adquirido por um herdeiro único ao abrigo de um direito sucessório que se rege pelo princípio da sucessão universal, só pode ser inscrito no registo predial do Estado‑Membro em cujo território esse bem está situado com base num Certificado Sucessório Europeu se todos os dados de identificação do imóvel exigidos pelo direito nacional desse Estado‑Membro figurarem nesse certificado.


1      Língua original: francês.


2      Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho de 4 de julho de 2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu (JO 2012, L 201, p. 107).


3      Regulamento de Execução da Comissão de 9 de dezembro de 2014, que estabelece os formulários referidos no Regulamento (UE) n.o 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu (JO 2014, L 359, p. 30).


4      Regulamento aprovado pela Resolução n.o 379 do Governo da República da Lituânia, de 23 de abril de 2014.


5      Trata‑se aqui da interpretação do artigo 68.o do Regulamento n.o 650/2012.


6      Esta questão diz respeito à interpretação do artigo 1.o, n.o 2, alínea l), e do artigo 69.o, n.o 5, do Regulamento n.o 650/2012.


7      V. Acórdão de 12 de outubro de 2017, Kubicka (C‑218/16, EU:C:2017:755, n.o 56).


8      V., neste sentido, Baldus, Ch., in Gebauer, M., Wiedmann, T., Europäisches Zivilrecht, 3.a ed., C.H. Beck, Munich, 2021, capítulo 44 («Europäische Erbrechtsverordnung»), artigo 1.o, ponto 4.


9      V., no entanto, artigos 32.o e 33.o do Regulamento n.o 650/2012.


10      V. capítulo III do Regulamento n.o 650/2012.


11      V. artigo 23.o, n.o 1, do Regulamento n.o 650/2012.


12      V. artigo 23.o, n.o 2, alínea e), do Regulamento n.o 650/2012.


13      Esse certificado é de importância capital para efeitos do processamento prático das sucessões transfronteiriças; v., detalhadamente, Hess, B., Europäisches Zivilprozessrecht, 2e éd., De Gruyter, Berlin/Boston, ponto 7.220. V., igualmente, Wautelet, P., in Bonomi, A., Wautelet, P., Le droit européen des successions. Commentaire du Règlement (UE) n o 650/2012 du 4 juillet 2012, 2.a ed., Bruylant, Bruxelas, 2016, artigo 62.o, n.os 1 e segs.


14      V. Kleinschmidt, J., «Optionales Erbrecht: Das Europäische Nachlasszeugnis als Herausforderung an das Kollisionsrecht», Rabels Zeitschrift für ausländisches und internationales Privatrecht, 2013, vol. 4, n.o 77, pp. 723 a 785, em especial, p. 726. V., igualmente, Stamatiadis, D., in Pamboukis, H.P., EU Succession Regulation N o 650/2012. A Commentary, Nomiki Bibliothiki/C.H. Beck/Hart/Nomos, Athènes/Munich/Oxford/Baden‑Baden, 2017, artigo 62.o, n.os 26 e segs.


15      V. Acórdãos de 21 de junho de 2018, Oberle (C‑20/17, EU:C:2018:485, n.o 46), e de 16 de julho de 2020, E. E. (Competência jurisdicional e lei aplicável às sucessões) (C‑80/19, EU:C:2020:569, n.o 70).


16      V. Conclusões que apresentei no processo Oberle (C‑20/17, EU:C:2018:89, n.o 90).


17      V. artigo 68.o, alínea l), do Regulamento n.o 650/2012. O sublinhado é meu.


18      V. artigo 23.o, n.o 2, alínea e), do Regulamento n.o 650/2012.


19      V., igualmente, neste sentido, Semelová, M., «Praktische Probleme mit dem (deutschen) Europäischen Nachlasszeugnis in der Tschechischen Republik», Zeitschrift für das Privatrecht der Europäischen Union (GPR), 2018, n.o 4, pp. 200 a 203, em especial p. 201.


20      V. artigo 65.o, n.o 3, alínea f), do Regulamento n.o 650/2012.


21      Tratar‑se‑ia, portanto, de uma situação diferente da do presente caso.


22      V., igualmente, neste sentido, Raff, Th., «Praktische Probleme mit dem (deutschen) Europäischen Nachlasszeugnis in der Tschechischen Republik — Stellungnahme», Zeitschrift für das Privatrecht der Europäischen Union (GPR), 2018, pp. 203 a 205, especialmente p. 204.


23      V., igualmente, neste sentido, Wautelet, P., op. cit., artigo 68.o, ponto 26.


24      No que respeita ao teor da nota 13 relativa a esse ponto 9, v. n.o 12 das presentes conclusões.


25      V., designadamente, Semelová, M., op. cit., p. 203.


26      V., igualmente, neste sentido, Raff, Th., op. cit., p. 203, bem como Budzikiewicz, Ch., in Calvo Caravaca, A.‑L., Davì, A., Mansel, H.‑P., The EU Succession Regulation. A Commentary, Cambridge University Press, 2016, artigo 68.o, ponto 19.


27      V. n.o 53 das presentes conclusões.


28      V. Acórdão de 12 de outubro de 2017 (C‑218/16, EU:C:2017:755, parte decisória).


29      C‑218/16, EU:C:2017:387, n.o 67.


30      V., igualmente, neste sentido, Nordmeier, C. F., «Die Aufnahme einzelner Nachlassgegenstände in das Europäische Nachlasszeugnis — zum durch den Todesfall bedingten Rechtserwerb und zur Reichweite der Art. 68 lit. 1 und m EuErbVO», Praxis des Internationalen Privat und Verfahrensrechts (IPrax), 2019, pp. 306 a 312, em especial p. 311.


31      V. Acórdão de 12 de outubro de 2017, Kubicka (C‑218/16, EU:C:2017:755, n.o 54).


32      V., igualmente, neste sentido, Margoński, M., Europejskie poświadczenie spadkowe, Wolters Kluwer, Varsóvia, 2022, p. 429.


33      V., igualmente, neste sentido, Margoński, M., op. cit., p. 429.